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CRÓNICA<br />
CRÓNICA<br />
Por Ricardo Silva<br />
Bernardh Sclink - O Leitor, Edições ASA, 1999<br />
Só houve oportunidade agora. Ler “O Leitor”<br />
(1995) só aumentou a minha culpa por não o ter<br />
feito mais cedo. E é um romance em que a culpa<br />
está presente noutros moldes. Mais um livro<br />
que deu um bom argumento para o cinema. Foi<br />
adaptado, em 2008, pelo realizador britânico<br />
Stephen Daldry permitindo a Kate Winslet uma<br />
interpretação memorável que a fez vencer o<br />
Óscar de Melhor Atriz desse mesmo ano.<br />
A história é contada em três partes distintas<br />
sendo que na primeira assistimos ao início e<br />
desenvolvimento da relação amorosa entre o<br />
adolescente Michael Berg, 15 anos, e Hanna<br />
Schmitz, de 36 anos. Vivem, a partir de um<br />
acaso, um período de descoberta sentimental<br />
e afetiva, sobretudo, para o jovem Michael<br />
considerando a sua idade.<br />
Numa narrativa na primeira pessoa, na<br />
personagem de Michael, e com uma escrita<br />
sóbria, em que diálogos e descrições são<br />
suficientes é na Alemanha do pós-guerra, anos<br />
60, que tal história se desenvolve. Esta primeira<br />
parte é marcada pela contextualização do<br />
jovem Michael em termos familiares, sociais e<br />
académicos. Neste tripé de espaços, Michael,<br />
consegue arranjar sempre tempo para se<br />
encontrar com Hanna, passear com<br />
ela e ter uma experiência afetiva –<br />
tanto física e emocionalmente – que<br />
o torna mais forte, distanciando-o<br />
dos amigos e amigas neste capítulo e<br />
marcando-o indelevelmente para o<br />
resto da vida.<br />
A curiosidade está no analfabetismo<br />
de Hanna que não sabendo ler e<br />
escrever, oculta esta falha – para ela<br />
um ferrete estigmatizador – de forma<br />
sábia nunca a revelando ao jovem<br />
Michael. Contudo, revela-se uma<br />
atenta e profunda ouvinte pedindo<br />
ao jovem que leia cada vez mais<br />
num deleite que ele próprio também<br />
experimenta. Ele torna-se o leitor e ela<br />
a ouvinte!<br />
A segunda parte do livro é a mais<br />
bonita e reflexiva. Nela se faz a grande<br />
introspeção que a Alemanha viveu<br />
depois do nazismo, designadamente<br />
a geração que nasce no fim da guerra<br />
e que nos anos 60 confronta os seus<br />
ascendentes – pais e avós – pela<br />
implicação e responsabilidade em tal<br />
horrendo regime. Para estupefação<br />
de Michael, Hanna é acusada como<br />
criminosa de guerra, por ter sido<br />
guarda num campo de concentração<br />
com responsabilidades na morte<br />
de muitas mulheres. A admiração<br />
de Michael é de toda uma geração.<br />
São questões com que uma geração<br />
se debate. Como foi possível o<br />
extermínio de judeus, ciganos,<br />
adversários políticos, experiências<br />
médicas bárbaras, etc.? Como<br />
ficamos nós para além do espanto,<br />
emudecidos pelo horror e carregados<br />
pela vergonha e culpa? Temos direito<br />
a compreender e a não aceitar; temos<br />
força para rebelar-nos contra pais,<br />
familiares e instituições; temos de<br />
viver com esta ignomínia e com<br />
esta culpa, conquanto não fomos<br />
responsáveis por uma guerra que nos<br />
envergonha; ou somos, hoje, aqueles<br />
que podem repensar a Alemanha<br />
de um futuro diferente? Todas estas<br />
questões foram discutidas, debatidas<br />
e vividas em movimentos académicos<br />
e sociais e que estão presentes no<br />
processo judicial de Hanna Schmitz.<br />
São as questões da geração alemã dos<br />
anos 60, mais vigorosas, certamente,<br />
0106 NOFEV21<br />
NOFEV21 0107