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NOREVISTA FEVEREIRO 2021

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CRÓNICA<br />

CRÓNICA<br />

Por Ricardo Silva<br />

Bernardh Sclink - O Leitor, Edições ASA, 1999<br />

Só houve oportunidade agora. Ler “O Leitor”<br />

(1995) só aumentou a minha culpa por não o ter<br />

feito mais cedo. E é um romance em que a culpa<br />

está presente noutros moldes. Mais um livro<br />

que deu um bom argumento para o cinema. Foi<br />

adaptado, em 2008, pelo realizador britânico<br />

Stephen Daldry permitindo a Kate Winslet uma<br />

interpretação memorável que a fez vencer o<br />

Óscar de Melhor Atriz desse mesmo ano.<br />

A história é contada em três partes distintas<br />

sendo que na primeira assistimos ao início e<br />

desenvolvimento da relação amorosa entre o<br />

adolescente Michael Berg, 15 anos, e Hanna<br />

Schmitz, de 36 anos. Vivem, a partir de um<br />

acaso, um período de descoberta sentimental<br />

e afetiva, sobretudo, para o jovem Michael<br />

considerando a sua idade.<br />

Numa narrativa na primeira pessoa, na<br />

personagem de Michael, e com uma escrita<br />

sóbria, em que diálogos e descrições são<br />

suficientes é na Alemanha do pós-guerra, anos<br />

60, que tal história se desenvolve. Esta primeira<br />

parte é marcada pela contextualização do<br />

jovem Michael em termos familiares, sociais e<br />

académicos. Neste tripé de espaços, Michael,<br />

consegue arranjar sempre tempo para se<br />

encontrar com Hanna, passear com<br />

ela e ter uma experiência afetiva –<br />

tanto física e emocionalmente – que<br />

o torna mais forte, distanciando-o<br />

dos amigos e amigas neste capítulo e<br />

marcando-o indelevelmente para o<br />

resto da vida.<br />

A curiosidade está no analfabetismo<br />

de Hanna que não sabendo ler e<br />

escrever, oculta esta falha – para ela<br />

um ferrete estigmatizador – de forma<br />

sábia nunca a revelando ao jovem<br />

Michael. Contudo, revela-se uma<br />

atenta e profunda ouvinte pedindo<br />

ao jovem que leia cada vez mais<br />

num deleite que ele próprio também<br />

experimenta. Ele torna-se o leitor e ela<br />

a ouvinte!<br />

A segunda parte do livro é a mais<br />

bonita e reflexiva. Nela se faz a grande<br />

introspeção que a Alemanha viveu<br />

depois do nazismo, designadamente<br />

a geração que nasce no fim da guerra<br />

e que nos anos 60 confronta os seus<br />

ascendentes – pais e avós – pela<br />

implicação e responsabilidade em tal<br />

horrendo regime. Para estupefação<br />

de Michael, Hanna é acusada como<br />

criminosa de guerra, por ter sido<br />

guarda num campo de concentração<br />

com responsabilidades na morte<br />

de muitas mulheres. A admiração<br />

de Michael é de toda uma geração.<br />

São questões com que uma geração<br />

se debate. Como foi possível o<br />

extermínio de judeus, ciganos,<br />

adversários políticos, experiências<br />

médicas bárbaras, etc.? Como<br />

ficamos nós para além do espanto,<br />

emudecidos pelo horror e carregados<br />

pela vergonha e culpa? Temos direito<br />

a compreender e a não aceitar; temos<br />

força para rebelar-nos contra pais,<br />

familiares e instituições; temos de<br />

viver com esta ignomínia e com<br />

esta culpa, conquanto não fomos<br />

responsáveis por uma guerra que nos<br />

envergonha; ou somos, hoje, aqueles<br />

que podem repensar a Alemanha<br />

de um futuro diferente? Todas estas<br />

questões foram discutidas, debatidas<br />

e vividas em movimentos académicos<br />

e sociais e que estão presentes no<br />

processo judicial de Hanna Schmitz.<br />

São as questões da geração alemã dos<br />

anos 60, mais vigorosas, certamente,<br />

0106 NOFEV21<br />

NOFEV21 0107

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