Chicos - 69 de 13.07.2022
Chicos é uma publicação literária que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar gratuitamente nossas edições. A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.
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Chicos
Os saudosos e esquecidos
*Ronaldo Brito
Não lembro quando começou essa sensação
de falta. Uma noite eu voltava para
casa e notei as ruas que sempre atravessei,
as pedras, o calçamento, as janelas de certas
casas, os telhados mais distantes, as estrelas
que começavam a brilhar sobre o céu ainda
claro do lusco-fusco. E tudo era quase igual
ao que foi antes, tudo era velho e conhecido,
mas algo tinha mudado, algo que eu não
conseguia precisar.
Andei sobre a velha ponte, como andei
desde criança, mas era como se não fosse a
ponte, meus pés não assentavam no mesmo
piso, não adivinhei o calor ressecante do
concreto nem o vento úmido que subia do
rio. Ou talvez eu os sentisse de outra maneira,
como que pálidos e remotos, vindo pela
memória, não pela pele, pelos poros e narinas
como a realidade. Então pisei as calçadas.
Os ladrilhos continuavam os mesmos e,
no entanto, eram mais escuros ou brilhantes,
mais lisos ou ásperos ou desbotados. Sei que
não pareciam os mesmos. A árvore, a calçada,
a rua, tudo era quase igual, mas que diferença
era essa que me escapava, que pairava
no ar, como que anterior aos sentidos e
ao entendimento?
Meus filhos falavam comigo e eu os
compreendia, mas era como se fosse em outra
língua, com outra tonalidade, as vozes
eram mais agudas ou graves, os olhos, mais
brilhantes ou foscos, mais distantes, mais
indecifráveis. Quando eu era jovem, caminhava
pela cidade e distinguia com precisão
as vozes dos alto-falantes. Agora ouço pessoas
como que gritando de longe, e olho para
os rostos em busca de lábios que se movem,
mas não vejo os lábios se moverem,
não vejo olhos que me fitem, não adivinho o
sentimento por trás dos óculos ou das sobrancelhas.
Não era aqui que tinha uma árvore
que diziam ser brasileira? Não era no
final dessa rua que tinha uma palmeira que
veio do México ou do Paquistão?
Os bares são agora dos chineses, não
encontro meus amigos, ninguém entende
aquele sinal para colocar na conta. Num
mundo tão diferente, como posso tomar um
cafezinho? Aguardo o pôr do sol para voltar
para casa, e ando cabisbaixo como um cão a
farejar o nada. Sinto pessoas ao meu lado,
como as que pareavam comigo há anos, mas
não ouso falar com elas. São talvez estrangeiros,
em busca de um mundo melhor, ou
moradores que se mudaram recentemente,
ou ainda turistas para quem a velha cidade
tenha o brilho hipnótico da novidade. Serão
eles que me dão esse incômodo sentimento
de que algo terá mudado? Talvez eles saibam
diferir as coisas, talvez enxerguem nitidamente
o novo calçamento, que trocaram
pelas pedras rústicas que pisei na juventude,
desavisado e afoito, rumo ao primeiro emprego
ou ao encontro do amor. Será que
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