13.07.2022 Views

Chicos - 69 de 13.07.2022

Chicos é uma publicação literária que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar gratuitamente nossas edições. A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.

Chicos é uma publicação literária que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar gratuitamente nossas edições.
A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Chicos

Os saudosos e esquecidos

*Ronaldo Brito

Não lembro quando começou essa sensação

de falta. Uma noite eu voltava para

casa e notei as ruas que sempre atravessei,

as pedras, o calçamento, as janelas de certas

casas, os telhados mais distantes, as estrelas

que começavam a brilhar sobre o céu ainda

claro do lusco-fusco. E tudo era quase igual

ao que foi antes, tudo era velho e conhecido,

mas algo tinha mudado, algo que eu não

conseguia precisar.

Andei sobre a velha ponte, como andei

desde criança, mas era como se não fosse a

ponte, meus pés não assentavam no mesmo

piso, não adivinhei o calor ressecante do

concreto nem o vento úmido que subia do

rio. Ou talvez eu os sentisse de outra maneira,

como que pálidos e remotos, vindo pela

memória, não pela pele, pelos poros e narinas

como a realidade. Então pisei as calçadas.

Os ladrilhos continuavam os mesmos e,

no entanto, eram mais escuros ou brilhantes,

mais lisos ou ásperos ou desbotados. Sei que

não pareciam os mesmos. A árvore, a calçada,

a rua, tudo era quase igual, mas que diferença

era essa que me escapava, que pairava

no ar, como que anterior aos sentidos e

ao entendimento?

Meus filhos falavam comigo e eu os

compreendia, mas era como se fosse em outra

língua, com outra tonalidade, as vozes

eram mais agudas ou graves, os olhos, mais

brilhantes ou foscos, mais distantes, mais

indecifráveis. Quando eu era jovem, caminhava

pela cidade e distinguia com precisão

as vozes dos alto-falantes. Agora ouço pessoas

como que gritando de longe, e olho para

os rostos em busca de lábios que se movem,

mas não vejo os lábios se moverem,

não vejo olhos que me fitem, não adivinho o

sentimento por trás dos óculos ou das sobrancelhas.

Não era aqui que tinha uma árvore

que diziam ser brasileira? Não era no

final dessa rua que tinha uma palmeira que

veio do México ou do Paquistão?

Os bares são agora dos chineses, não

encontro meus amigos, ninguém entende

aquele sinal para colocar na conta. Num

mundo tão diferente, como posso tomar um

cafezinho? Aguardo o pôr do sol para voltar

para casa, e ando cabisbaixo como um cão a

farejar o nada. Sinto pessoas ao meu lado,

como as que pareavam comigo há anos, mas

não ouso falar com elas. São talvez estrangeiros,

em busca de um mundo melhor, ou

moradores que se mudaram recentemente,

ou ainda turistas para quem a velha cidade

tenha o brilho hipnótico da novidade. Serão

eles que me dão esse incômodo sentimento

de que algo terá mudado? Talvez eles saibam

diferir as coisas, talvez enxerguem nitidamente

o novo calçamento, que trocaram

pelas pedras rústicas que pisei na juventude,

desavisado e afoito, rumo ao primeiro emprego

ou ao encontro do amor. Será que

54

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!