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Chicos - 69 de 13.07.2022

Chicos é uma publicação literária que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar gratuitamente nossas edições. A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.

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Chicos

leem romances, fotonovelas e sabem de cor todas

as músicas da temporada. Nenhuma pode

andar “de bonde” com outro rapaz, ou seja, lado

a lado. Quando casam, ganham do pai uma

máquina de costura, para não dependerem totalmente

do marido. Algumas, não encontrando

pretendentes até os vinte anos, passam a ser

chamadas de coroas e intensificam o fervor religioso.

Zezé e Osmar, da Dorcelina, conhecida

como dona Dôrce, trazem na carroça um barril

de mel para embarcar no trem e ficam de vigia,

posto que, certa vez, os moleques deram um

jeito de enfiar um talo de mamona e se fartaram.

O sítio dela é pequeno, mas produz cereais,

frutas, hortaliças, muitos criadouros de abelhas

que, com a venda do mel, somada à de linguiça,

aves e ovos, dão para o gasto.

Perto dela mora uma gente não muito simpática,

basta dizer que a caçula de um vizinho se

aproximou da casa e comeu algumas pitangas.

Súbito, uma das moças chegou com um machado

e pôs abaixo a pitangueira. Com o tempo,

amansou, foi até afilhada da mãe da caçula, a

quem um dia visitou e desabafou: “Tô disgostosa

da vida, madrinha, vô bebê veneno”. Estava

ficando “coroa”. Uma prima sua, cujo pai matou

o irmão para ser o único herdeiro, tomou soda

cáustica, não morreu, mas sofreu o diabo. Seu

estômago rejeitava até água, uma tristeza só.

Outros espetavam caroço de milho num

anzol para fisgar alguma galinha do vizinho de

bobeira do outro lado da cerca. Estes só saíram

da propriedade do pai da menina por despejo, o

pessoal da pitangueira, na “paz”.

Agora, no rádio, uma quase tragédia,

na garganta de Gardel:

...pero estas penas hondas de amor y desengano,

como las hierbas malas, son duras de arrancar.

Versão brasileira:

...mas estas penas minhas, de amor e desenganos,

como as ervas daninhas, são duras de arrancar.

Osmar é cego e outro Zé um dia lhe pediu

colo. Aproveitando a cegueira do pobre coitado,

deu uma boa mijada nele e pulou fora. Menino

do cu riscado, brincava de fazer sexo com a irmã,

ambos pelados, e a dividia com os amiguinhos,

no “esconderiz”, uma moita de capim alto.

O pai, ferroviário, foi transferido para Piraúba

e não se teve mais notícia. Os ferroviários,

por sinal, são os que bebem cerveja na venda, o

resto, só cachaça. Outro que se mudou foi o Zezim

mamador, entenda o leitor a razão do apelido,

e dele e sua família também não mais se

soube.

Chegam a noite e o trem. O vagão de passageiros,

com suas janelas iluminadas por dentro,

uma vaga lembrança de fita de cinema. Às

vezes, novidades, um ou outro passageiro com

histórias para contar na venda. Todos dormem

cedo, menos um – “essa ausência de amores”,

como cantou Ângela. E vem a angústia: casa às

escuras, estalo de madeira ressecada, pio de coruja,

cães acuando (longe, lenta agonia), quem

sabe, o Satanás (ele mesmo!) em pessoa. Rezar,

fechar os olhos, não adianta. Os pais deveriam

dormir com seus filhotes, como fazem os bichos.

P.S.: quando eu escrevia para jornal impresso,

as coisas da roça eram as preferidas dos

leitores, porém, o assunto se esgota aqui. Em

boa hora. Na foto acima, ruínas da parada do

trem. Onde? Não importa, o Brasil não se interessa

pelo seu passado.

* Antônio Jaime Soares

Nasceu em Cataguases MG, lá na Chave. Participou de um dos movimentos culturais

mais ativos dos anos 60 em Cataguases, o CAC. Depois de morar um

longo tempo no Rio de Janeiro, onde entre outras foi redator de publicidade.

Retornou a Cataguases direto para a Vila. Poeta e cronista publicou Pedra que

não quebra (2011)

60

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