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edição de 17 de julho de 2023

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opinião<br />

Divulgação<br />

Pelé ven<strong>de</strong>ndo whisky<br />

A<br />

recriação por inteligência artificial da cantora<br />

Elis Regina no comercial da VW está dando o que<br />

falar a ponto <strong>de</strong> o Conar ter aberto uma representação<br />

ainda a ser julgada.<br />

Duas são as questões éticas a que o Conar se dispôs<br />

corretamente a enfrentar. A utilização <strong>de</strong> pessoas falecidas<br />

– Elis faleceu em 1982 – em publicida<strong>de</strong> por meio<br />

<strong>de</strong> tecnologia e a confusão que isso gera em crianças<br />

e adolescentes para discernir que não se trata <strong>de</strong> uma<br />

pessoa real, mas sim <strong>de</strong> uma ressuscitação digital.<br />

A música do Belchior foi muito bem escolhida, em<br />

que pesem as típicas críticas das re<strong>de</strong>s sociais. Mas vale<br />

registrar que as mesmas re<strong>de</strong>s sociais também receberam<br />

muitos elogios.<br />

O roteiro, maravilhoso. Direção <strong>de</strong> arte impecável.<br />

Trabalho que revela o talento <strong>de</strong> uma agência como a<br />

AlmapBBDO, que consegue se manter em alto nível <strong>de</strong><br />

criativida<strong>de</strong>, bom gosto e execução perfeita.<br />

A notória qualida<strong>de</strong> da Almap não é <strong>de</strong> agora. Vem<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o comando do genial Alex Periscinoto, pioneiro<br />

ao implementar na Almap o conceito <strong>de</strong> dupla <strong>de</strong> criação,<br />

método <strong>de</strong> trabalho até então inédito no Brasil.<br />

Depois do saudoso Alex, vieram Marcello Serpa e José<br />

Luiz Ma<strong>de</strong>ira, período em que a direção <strong>de</strong> arte da<br />

agência sempre se <strong>de</strong>stacou em premiações como<br />

Cannes pelo bom gosto e estética impecável das peças<br />

publicitárias.<br />

Os atuais sócios Luiz Sanchez, que se transferiu para a<br />

se<strong>de</strong> da BBDO em NY, e Filipe Bartholomeu, responsável<br />

pelo dia a dia da agência em SP, têm conseguido honrar<br />

esse legado. Os dois e toda a equipe da AlmapBBDO<br />

passam para quem está <strong>de</strong> fora a percepção <strong>de</strong> que há<br />

naquele lugar um fio condutor das gerações <strong>de</strong>ssa agência<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1950, quando foi fundada. Um DNA.<br />

Como uma família em que você nota no neto traços visuais<br />

e do caráter do avô.<br />

Que assim continue, AlmapBBDO!<br />

Voltando ao comercial da Kombi com a Elis Regina, a<br />

questão que me pega, talvez pela minha formação em<br />

direito, é a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sabermos se a pessoa falecida<br />

aceitaria participar da peça publicitária que seu<br />

avatar digital fez. Nunca saberemos e essa para mim é<br />

a questão central.<br />

Os filhos da Elis terem concordado não me parece argumento<br />

suficiente. Há direitos que não se transferem<br />

aos her<strong>de</strong>iros. São os chamados direitos <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong><br />

ou direitos personalíssimos. Só se transferem, a meu<br />

ver, por meio <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> expressa<br />

como, por exemplo, num testamento.<br />

Elis Regina faleceu décadas antes <strong>de</strong> a humanida<strong>de</strong><br />

vislumbrar a criação <strong>de</strong> avatares por meio da tecnologia.<br />

Era impossível ela saber que um dia seria recriada<br />

em áudio e ví<strong>de</strong>o.<br />

Sem essa <strong>de</strong>claração expressa <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixando<br />

claro aos her<strong>de</strong>iros o que po<strong>de</strong>rá ou não ser feito com<br />

sua persona post mortem, em áudio e ví<strong>de</strong>o, o melhor<br />

seria não se criar avatares <strong>de</strong> quem faleceu.<br />

Assim, seus <strong>de</strong>sejos não <strong>de</strong>clarados não correm o<br />

risco <strong>de</strong> serem contrariados. Porque ninguém, nem os<br />

filhos da Elis Regina, têm absoluta certeza <strong>de</strong> que ela iria<br />

querer participar <strong>de</strong>ssa campanha publicitária.<br />

E não é pertinente levantar a suspeita <strong>de</strong> que ela não<br />

concordaria em fazer publicida<strong>de</strong> para uma empresa<br />

que contribuiu com o governo militar no Brasil. Essa linha<br />

<strong>de</strong> raciocínio, levada à exaustão nas re<strong>de</strong>s sociais,<br />

se insere no campo do achismo. Outras pessoas po<strong>de</strong>m<br />

dizer que a Elis Regina não toparia participar porque, na<br />

ida<strong>de</strong> que teria hoje, ela não <strong>de</strong>sejaria mais aparecer, o<br />

que não é incomum no mundo artístico. Muitos preferem<br />

se recolher ao esquecimento.<br />

Enfim, não dá para saber se Elis Regina aceitaria um<br />

dia ser recriada por AI. O mais acertado, portanto, do ponto<br />

<strong>de</strong> vista ético, seria não a recriar.<br />

Pelé, por exemplo, nunca fez publicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cigarros<br />

e bebidas alcoólicas, portanto, recriar seu avatar para<br />

isso seria uma afronta à sua personalida<strong>de</strong>.<br />

Quanto à Elis, como nunca houve um episódio em<br />

que ela teria aceitado ou recusado participar <strong>de</strong> alguma<br />

peça publicitária <strong>de</strong> automóveis ou da VW, jamais saberemos<br />

se este comercial se alinhou ou se distanciou da<br />

sua personalida<strong>de</strong>. Jamais.<br />

Tiago Ferrentini<br />

é diretor-executivo do<br />

propmark<br />

tamf@referencia-ge.com.br<br />

“A questão que me<br />

pega, talvez pela minha<br />

formação em Direito,<br />

é a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

sabermos se a pessoa<br />

falecida aceitaria<br />

participar da peça<br />

publicitária”<br />

34 <strong>17</strong> <strong>de</strong> <strong>julho</strong> <strong>de</strong> <strong>2023</strong> - jornal propmark

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