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MARCUS, o imortal<br />
Penetramos na praça. Saímos por ruas enxovalhadas; a multidão era um tapete.<br />
Mas a dúvida <strong>de</strong> que caminho tomar e por on<strong>de</strong> ir para encontrar Alexandrino nos<br />
<strong>de</strong>ixava irritados.<br />
Decidimos que o certo seria ir para a já conhecida casa <strong>de</strong> Virgínia, novamente,<br />
afinal tudo acontecera por aquelas cercanias. E ela estava lá. Casa e Virgínia. Parecia que<br />
nos esperavam.<br />
- Vocês estão atrasados. O amigo <strong>de</strong> vocês está insuportável. Não pára <strong>de</strong> pedir que<br />
mand<strong>em</strong>os mensagens. Mas a hora é imprópria... Cada um <strong>de</strong> vocês entre <strong>em</strong> cada um<br />
<strong>de</strong>sses quartos... você, Marcus, v<strong>em</strong> comigo.<br />
Novamente estava no interior da casa, mas a mulher <strong>de</strong>saparecera. Outras<br />
portas se abriram e eu me vi no meio <strong>de</strong> um salão com um taco <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira na mão. Era<br />
sonho ou <strong>de</strong>lírio, difícil <strong>de</strong> afirmar, como s<strong>em</strong>pre o foi naquelas circunstâncias.<br />
O taco era liso, ma<strong>de</strong>ira b<strong>em</strong> lisa, parecia com as lanças <strong>de</strong> caçar upires, sendo<br />
que o manípulo fincava-se <strong>em</strong> um punho <strong>de</strong> metal que eu sabia só produzir<strong>em</strong> nas<br />
florestas <strong>de</strong> Grunewald, na Alsácia.<br />
Nisso, enquanto música <strong>de</strong> trombetas estridulava no ambiente, uma bola passou<br />
raspando pela minha cabeça. Eu me vi preocupado <strong>em</strong> rebater a bola para b<strong>em</strong> longe.<br />
Do outro lado da sala alguém atirava a pelota, que era uma esfera <strong>de</strong> chumbo<br />
não tratado, <strong>de</strong> 7 cm <strong>de</strong> diâmetro, extr<strong>em</strong>amente polida, <strong>de</strong> modo que a minha<br />
obrigação era <strong>de</strong>sviar o objeto esférico para os cantos do salão forrado <strong>de</strong> espelhos. A<br />
bola <strong>de</strong>veria penetrar <strong>em</strong> sua própria imag<strong>em</strong>... num dos tais espelhos. Depen<strong>de</strong>ndo do<br />
tipo <strong>de</strong> espelho – quadrado, ovalado, elipsói<strong>de</strong>, mercurado, argentado, – eu via que uma<br />
caixa calculadora como um ábaco ia dando pontos e selecionando números... Se o<br />
espelho se quebrasse, os pontos reverteriam para o adversário, que eu não enxergava<br />
qu<strong>em</strong> era, por causa da névoa. Aliás, aí é que entrava a perícia dos jogadores. Fazer<br />
com que a bola se mesclasse à sua própria imag<strong>em</strong> e se fundisse <strong>em</strong> um abraço<br />
platinado. E pontuar. Havia uma platéia que gritava. Eram uivos. Dei, a meu ver, uma<br />
excelente tacada e os aplausos <strong>de</strong>sceram da platéia <strong>em</strong> forma <strong>de</strong> cascata, alguns, e<br />
como granizo <strong>em</strong> campos <strong>de</strong> milho, outros.<br />
Parece que eu vencera.<br />
O adversário veio me cumprimentar . Um sujeito alto, com roupa <strong>de</strong> corte grego.<br />
Fui levado, s<strong>em</strong> controle, para outro vasto salão repleto <strong>de</strong> alimentos e bebidas.<br />
Auxiliares me tomavam pelos braços. Todos riam. As pessoas se refestelavam e durante<br />
horas Virgínia me abraçou e beijou sobre a mesa. O t<strong>em</strong>po corria <strong>de</strong> imenso e eu me vi<br />
num alvoroço <strong>de</strong> sensações.<br />
Virgínia me falava da resolução dos contrários. Falava como podia, pois minha<br />
língua se enfiava <strong>em</strong> sua boca macia. E todos sab<strong>em</strong>os que essa resolução é a atração<br />
máxima <strong>de</strong> todos os gnósticos. Eu n<strong>em</strong> queria mais saber <strong>de</strong>ssa conversa... não era o<br />
momento. Místico, esotérico e loquaz eu me preocupava com o gozo dos sentido e da<br />
carne. L<strong>em</strong>brei-me <strong>de</strong> Siger. A cor do ambiente mudou três vezes. Azul, opalino, lilás.<br />
- Me larga. É hora. Estamos já atrasados e você não me larga.<br />
- Atrasados para quê?<br />
- O quê? – ela perguntou, enquanto abaixava a túnica <strong>de</strong> linho marroquino.<br />
- Nada... nada. Vamos. Alguma coisa sobre Alexandrino, ao menos?<br />
A manhã prometia <strong>de</strong>lícias, mas ela não me quis mais dar as mãos. Fiz <strong>de</strong> tudo<br />
para não irmos ao t<strong>em</strong>plo. Queria ficar <strong>em</strong> seu quarto... Eu mesmo tinha mais o que<br />
fazer, mas preferia ficar com Virgínia.<br />
Mas, no t<strong>em</strong>plo, que nos esperava, o povo se alvoroçava para ver sacerdotisas<br />
s<strong>em</strong>i-nuas e uma <strong>de</strong>las era Virgínia. O povo. Os moradores do burgo, das vilas, das<br />
cavernas... Besta colossal. Substância-chave, substância-vida <strong>em</strong> que se permitia superar<br />
as contradições da natureza humana. Mas pensar naquilo não ficava b<strong>em</strong> com tanta<br />
estrela para ouvir segredos. E no meu caso, o povo era a chave enigmática para a chama<br />
da liberda<strong>de</strong>.<br />
- Como é que você po<strong>de</strong> ser assim? Ativo e cont<strong>em</strong>plativo ao mesmo t<strong>em</strong>po ?– Virgínia<br />
perguntou e me pareceu lev<strong>em</strong>ente zangada.<br />
- É que sou poeta e filósofo. E <strong>de</strong>pois, essa mudança <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po e espaço... esse<br />
escorregar para dimensão <strong>de</strong>sconhecida tira minha sensação <strong>de</strong> segurança... Tenho<br />
minha linha <strong>de</strong> atuação, mas raciocino livr<strong>em</strong>ente.<br />
Coelho De Moraes 77