Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
www.nead.unama.br<br />
Aos embates da madria toda a construção abala-se. A hélice, umas vezes<br />
aprofunda-se, outras vezes, no levantar da popa, gira rápida no vácuo e toda a nave<br />
estremece, range convulsamente sacudida.<br />
Remergulha. Faz-se tão rasa com o oceano crespo que parece ir em<br />
soçobro. Surge a ímpeto, arfando; eleva-se mostrando a quilha, torna de chapa ao<br />
abismo, bate estrondosamente e, com o choque, demora um instante a pique no<br />
côncavo das vagas. Um vagalhão sustem-na, põe-na a flux.<br />
Ei-la a escorrer dos flancos cachoeira mar espumarento, ginga às tontas,<br />
cambaleia ringindo e o terror cresce entre os homens e os escarcéus cada vez mais<br />
se enfurecem, tudo é desespero. E a máquina trabalha.<br />
Assim também procede o coração na angústia.<br />
Sofra o coração, embora!<br />
Sofra! Mas viva! Mas bata<br />
Cheio, ao menos, da alegria<br />
De viver, de viver!<br />
A alegria de viver! Isso não torna ao coração. As máquinas de aço e bronze,<br />
se conseguem vencer os temporais, quando os navios chegam ao porto são<br />
examinadas peça por peça e, nem por serem de metais fortíssimos, deixam de<br />
trazer mossa.<br />
Entram, porém, os artífices com o trabalho e, onde encontram falhas,<br />
reparam; onde descobrem eiva, corrigem; se um êmbolo ou mancal sofreu dano,<br />
logo o substituem e a máquina, refeita, torna ao seu oficio, íntegra como dantes e<br />
nela nem sal das ondas se conserva porque tudo é limpo, lixado e ajustado.<br />
O coração, esse... Quando chega ao porto de bonança, serenando, é que<br />
mais sofre.<br />
Amaina-se o temporal, limpam-se os ares, abre-se o céu em luz, abranda-se<br />
em brisa o vendaval, tudo torna à calma do bom tempo, o coração quebrado, esse...<br />
quem o conserta?<br />
Que artífice é capaz de substituir nele as peças que a tormenta inutilizou?<br />
Move-se, vive e bate... Mas como vive. Ai! Dele... Bate. De que lhe serve<br />
bater?<br />
Ao sair do estaleiro o navio corre ao mar e a hélice contra as águas e<br />
revolve-as e, cada volta em que gira, leva-a para diante.<br />
O coração, inclinado sobre o abismo, bate em vão, porque toda a sua força<br />
perde-se no vácuo, como a da hélice, quando o navio mergulha no côncavo das vagas.<br />
O navio prossegue, singra mar em fora, vai a novos rumos, a novas praias.<br />
O coração, de que lhe serve bater se não sai do vazio da saudade?<br />
Mas é preciso viver... Pois seja! Que o coração faça o seu ofício:<br />
O QUE RESTA<br />
Sofra! Mas viva! Mas bata<br />
Cheio, ao menos, da alegria<br />
De viver, de viver!<br />
Leva a tempestade o ninho e a ave, órfã e desabrigada, esvoaça tonta e aflita.<br />
Vai de árvore a árvore, salta de ramo em ramo ansiosa; eleva-se no ar, libra-se em<br />
pairo, torna ao chão, olha, pesquisa e, do que foi, nem a mais tênue achega encontra.<br />
25