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Mano - Unama

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www.nead.unama.br<br />

Nunca a pena com que lavro abriu sulco para má semente: cova para<br />

protérvias, esconderijo para amealhar suborno. O que dela vem a flux pouco é, mas<br />

desse pouco é puro, sem cizânia, e sempre me bastou, e jamais dele me servi com<br />

remorso.<br />

Mal amanhece busco-a e ponho-me logo a trabalhar e, assim como o<br />

lavrador enche os carros de ceifa, assim vou enchendo páginas com os meus<br />

sonhos.<br />

E a imaginação, como as abelhas e as borboletas, que trazem pólen para<br />

fecundar as flores, traz, igualmente, para os meus devaneios, imagens e alegorias<br />

com que se ornamenta o agro dos meus escritos.<br />

Nessa mesa fundei alicerces e levantei construções: ela é o meu pequeno<br />

império, o meu domínio, o meu diversório e o meu celeiro, o meu retiro de paz e o<br />

meu horto de oliveiras.<br />

Sete palmos! Toda uma vida no espaço que tomou, estendido, um corpo<br />

morto: o teu, meu filho!<br />

Foi nessa mesa que passaste a tua derradeira noite em nossa companhia,<br />

em tua casa, casa de teus pais e de teus irmãos.<br />

Foi nesse campo de trabalho, transformado em essa, que ficaste exposto<br />

aos nossos olhos toda uma noite, a última e definitiva, noite subterrânea,<br />

impermeável à luz.<br />

Ficaste onde ficam meus livros, na banca em que exerço o meu labor ingrato<br />

à qual, em pequenino, vinhas engatinhando e distraias-me com os teus tartareios<br />

infantis, que eram como botões das palavras que, pouco a pouco, se te<br />

desabrochavam na boca.<br />

Foi nessa mesa que aprendeste a ler com tua mãe e garranchastes, de mão<br />

adunca. os primeiros gatafunhos.<br />

E, quanta vez, à noite, enquanto eu trabalhava e ela sorria, contemplando-te<br />

de longe, escondida na sombra, tu, com os teus soldadinhos de chumbo,<br />

improvisavas batalhas, e o meu tinteiro era fortaleza e eram os meus livros e mais<br />

objetos espalhados, baluartes pugnacíssimos contra os quais impelias os teus<br />

batalhões de estanho.<br />

E eu, suspendendo o que fazia, entrava no teu brinquedo, mais pueril do que<br />

tu, porque tomava a sério os combates e, a golpes de caneta ou espátula, arrasava<br />

as hostes que sitiavam um dicionário ou que procuravam escalar o porta-cartas.<br />

E como terminavam as guerras das tuas conquistas? Com os soldados<br />

espalhados e os tachos da cabeleira do general no campo da batalha, porque a<br />

cabecinha linda, que tantos planos terríveis engendrara, não resistia ao sono e,<br />

inclinando-se sobre os bracinhos enrodilhados, ali ficava como a dos anjos<br />

rafaelitas, até que a ama, tomando ao colo o herói, que eras tu, deixava a mesa sem<br />

o seu gracioso ornato.<br />

Agora, quando me sento para trabalhar, o que logo me aparece aos olhos é<br />

o teu corpo imóvel, rígido, vestido de negro, cercado de flores, entre círios, com um<br />

crucifixo nas mãos enclavinhadas. E depois no caixão em que te levaram de nós...<br />

Por fim, desfeita a visão a mesa reaparece, disposta, como outrora, antes do<br />

desastre, com os apetrechos de trabalho.<br />

Tu é que és agora a minha inspiração, tudo me vem de ti e, assim como o teu<br />

corpo enche o âmbito da cova, a tua imagem ocupa a minha mesa, como se nela<br />

houvesse ficado impressa e a saudade, que é o que me resta de ti, enche-me a alma.<br />

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