You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
www.nead.unama.br<br />
Sonhando, anda que em vigília, — porque recordar é sonhar de olhos<br />
abertos — vê o que foi, reconstitui, um a um, os dias venturosos até aquele que<br />
ficou eterno na memória, como jazem imóveis sobre as horas que não soam mais os<br />
ponteiros de um relógio cuja máquina parou.<br />
O PIANO<br />
Seis meses já haviam passado e, todavia, ninguém ousava abrir o piano.<br />
Mais do que escrúpulo havia medo.<br />
Como que se temia o instrumento: negro, alongado a um canto da sala, em<br />
forma de altar, tendo sempre em cima um vaso de flores.<br />
Rondávamo-lo sem ânimo de o tocar. De quando em quando uma das<br />
meninas folheava um álbum, de preferência o colecionado por ele, com as peças de<br />
sua predileção. Marejavam-se os olhos e, em silêncio, tornavam os volumes aos<br />
seus lugares, na estante.<br />
E o piano permanecia mudo.<br />
Um dia, porém, com receio de que as cordas se estragassem, abrimo-lo e a<br />
enervação metálica do instrumento rebrilhou ao sol.<br />
Levantada a tampa do teclado, como um lábio que se arregaçasse em riso<br />
irônico, o fio das teclas apareceu ebúrneo.<br />
Acercamo-nos todos do piano, olhando-o como se o víssemos pela primeira<br />
vez e dele esperássemos pressagamente revelação de segredo sombrio. Um<br />
momento ali ficamos, tácitos e quedos.<br />
A mãe foi a primeira a afastar-se; as meninas seguiram-na às surdas, como<br />
se temessem, com o rumor dos passos, despertar o mistério. Bem sabiam elas que<br />
o instrumento havia de as fazer sofrer e a mim, e a todos, à própria casa que ele,<br />
dantes, alegrava com as suas melodias.<br />
Seria pelo som? Se por tal fosse por que não nos comoveriam as vozes de<br />
tantos outros pianos que soam na vizinhança e só a daquele nos havia de entristecer?<br />
É que as outras são vozes alheias, de outros lares. Nunca soaram para ele,<br />
nunca ele as despertara fazendo-as traduzir o que trazia na memória.<br />
Ali passava ele horas e horas recordando trechos ou, entre nós, recolhido<br />
em êxtase, ouvia a mãe repassar as melodias que tanto amava.<br />
E como as sentia! Com que enlevo, verdadeiramente religioso, ficava a ouvilas,<br />
quieto, imóvel, sonhando. Enfim...<br />
Um dia — era necessário que a casa retomasse o rumo na serenidade,<br />
reentrando na vida costumeira — abriram o piano e as cordas, que dormiam,<br />
despertaram.<br />
Um frêmito percorreu todas a casa, a própria luz tornou-se tíbia e pálida,<br />
como acontece com a das lâmpadas de vigília quando entra na alcova o sol, e todos<br />
os olhos velaram-se de lágrimas.<br />
Foi como se ele houvesse tornado: sentimo-lo presente.<br />
E o instrumento gemia, soluçava. A própria musica, tão alegre outrora, vinha<br />
em pranto.<br />
Seria o instrumento que a modificava ou os nossos corações? Eles, decerto.<br />
O mesmo seria trasfegarmos de fonte a vasos que contivessem ou<br />
houvessem contido essência a água pura que logo se infundiria em aroma.<br />
A música, impregnando-se de saudade, recordava e, com tal transporte, já<br />
não ouvíamos o instrumento, senão a ele, a voz dele e víamo-lo, sentíamo-lo,<br />
29