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bruxas e feiticeiras em novelas de cavalaria do ciclo arturiano

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ<br />

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES<br />

MESTRADO EM LETRAS<br />

CRISTINA HELENA CARNEIRO<br />

BRUXAS E FEITICEIRAS EM NOVELAS DE CAVALARIA DO CICLO<br />

ARTURIANO: O REVERSO DA FIGURA FEMININA?<br />

MARINGÁ - PR<br />

2006


CRISTINA HELENA CARNEIRO<br />

BRUXAS E FEITICEIRAS EM NOVELAS DE CAVALARIA DO CICLO<br />

ARTURIANO: O REVERSO DA FIGURA FEMININA?<br />

Dissertação <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong> apresentada à<br />

Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Maringá, como<br />

requisito parcial para a obtenção <strong>do</strong> título <strong>de</strong><br />

Mestre <strong>em</strong> Letras, área <strong>de</strong> concentração:<br />

Estu<strong>do</strong>s Literários.<br />

Orienta<strong>do</strong>r: Profª. Drª. Clarice Zamonaro<br />

Cortez<br />

MARINGÁ<br />

2006


Dedico este trabalho aos Mentores <strong>de</strong> Luz, velhos<br />

amigos da Espiritualida<strong>de</strong>, que, com a permissão <strong>de</strong><br />

Deus, se dignaram a estar junto a mim, iluminan<strong>do</strong><br />

meus pensamentos, ajudan<strong>do</strong> a coor<strong>de</strong>nar minhas<br />

idéias, partilhan<strong>do</strong> conhecimentos.


AGRADECIMENTOS<br />

A Deus, que permitiu a realização <strong>de</strong>ste trabalho, que proveu meu espírito <strong>de</strong> perseverança,<br />

paciência, tolerância e otimismo.<br />

À minha família, Wellington, Mirian e Agatha, e ao meu pai (in m<strong>em</strong>orian), que estiveram<br />

comigo durante toda a trajetória; que suportaram os momentos <strong>de</strong> incerteza e <strong>de</strong> <strong>de</strong>salento;<br />

que vibraram comigo nos instantes <strong>de</strong> finalização <strong>de</strong> cada capítulo; que <strong>em</strong>prestaram seus<br />

corações aos meus objetivos.<br />

À professora Clarice, querida orienta<strong>do</strong>ra, que <strong>de</strong>dicou parte <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po a ensinar os<br />

caminhos da pesquisa; que iluminou as rotas obscuras <strong>do</strong> conhecimento com a luz <strong>do</strong> seu<br />

sorriso, com a brandura <strong>do</strong> seu olhar, com a vivacida<strong>de</strong> e ve<strong>em</strong>ência <strong>de</strong> suas palavras.


RESUMO<br />

A Ida<strong>de</strong> Média é um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> questionamentos quanto à <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> e o seu papel<br />

entre seus s<strong>em</strong>elhantes. Este trabalho t<strong>em</strong> <strong>em</strong> vista situar a figura da feiticeira no universo<br />

místico das narrativas <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>, evi<strong>de</strong>ncian<strong>do</strong> as diferentes <strong>de</strong>scrições e abordagens das<br />

personagens consi<strong>de</strong>radas <strong>bruxas</strong>, no intuito <strong>de</strong> revelar comportamentos que as colocam <strong>em</strong><br />

posição diversa da mulher medieval. É avaliada a importância histórica que o perío<strong>do</strong><br />

medieval possui no panorama da evolução humana, através da focalização <strong>do</strong> papel das<br />

mulheres na criação e patrocínio das artes, as <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>, retratan<strong>do</strong> a realida<strong>de</strong><br />

social <strong>do</strong>s séculos medievais, b<strong>em</strong> como a figura mística da feiticeira e suas possíveis<br />

interpretações. O corpus da pesquisa refere-se às obras: Amadis <strong>de</strong> Gaula e A D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong><br />

Santo Graal. De cunho bibliográfico, a investigação fundamenta-se na leitura e resenha <strong>de</strong><br />

textos teóricos, críticos, analíticos e históricos que propici<strong>em</strong> suporte à pesquisa. Na análise<br />

literária, serão <strong>de</strong>staca<strong>do</strong>s os el<strong>em</strong>entos estruturais da narrativa, com enfoque no estu<strong>do</strong> da<br />

personag<strong>em</strong>, distinguin<strong>do</strong>-se a figura histórica da mulher medieval da figura histórica e<br />

literária da feiticeira ou bruxa. Segun<strong>do</strong> estudiosos, a certeza <strong>de</strong> as mulheres eram seres<br />

d<strong>em</strong>oníacos foi conceito configura<strong>do</strong> na d<strong>em</strong>onologia, que favoreceu a construção da imag<strong>em</strong><br />

das <strong>bruxas</strong> no inconsciente popular <strong>do</strong> medievo. Assim, o reverso da figura f<strong>em</strong>inina está<br />

representa<strong>do</strong> na D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal, cuja t<strong>em</strong>ática religiosa apresenta-se mais pr<strong>em</strong>ente<br />

e a misoginia medieval mais aparente. Na obra Amadis <strong>de</strong> Gaula não se po<strong>de</strong> atribuir essa<br />

mesma imag<strong>em</strong> às <strong>feiticeiras</strong>, uma vez que o sobrenatural ocorre <strong>de</strong> forma natural, <strong>de</strong>notan<strong>do</strong><br />

um resgate pacífico <strong>do</strong>s valores folclórico-pagãos. A s<strong>em</strong>elhança com a realida<strong>de</strong> contribui<br />

para que a verossimilhança assuma o papel <strong>de</strong> credibilida<strong>de</strong> sobre as personagens. A maior<br />

similarida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma personag<strong>em</strong> feiticeira com as concepções reais da feiticeira medieval<br />

reveste a obra <strong>de</strong> um singular e fictício registro <strong>do</strong>cumental <strong>de</strong> costumes.<br />

PALAVRAS-CHAVE: Novelas <strong>de</strong> Cavalaria – Universo Místico – Figura F<strong>em</strong>inina – Bruxas<br />

e <strong>feiticeiras</strong>.


ABSTRACT<br />

Middle Age is a period full of questions about man <strong>de</strong>finition and his role among others. The<br />

aim of this paper is centered on the figure of sorceresses in the mystic universe of cavalry<br />

narratives. Both different <strong>de</strong>scriptions and approaches of characters consi<strong>de</strong>red as witches are<br />

presented in or<strong>de</strong>r to reveal behaviors that distinguish th<strong>em</strong> from medieval women. It is<br />

necessary to appraise the historic meaning of this period in human evolution context, focusing<br />

women role in creation and improv<strong>em</strong>ent of arts, cavalry romances that portray social reality<br />

from Middle Ages and also the mysterious figure of sorceresses and their possible<br />

interpretations. The corpus of this paper is: Amadis <strong>de</strong> Gaula and A D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal.<br />

As a bibliographic study, all investigation is based on theoretical, critical and historic texts.<br />

The structural el<strong>em</strong>ents of narrative will be presented in literary analysis, focusing character<br />

study. The historical medieval woman will be pointed out in contrast with historical and<br />

literary figure of sorceresses. According to some scholars, witches were consi<strong>de</strong>red as evil<br />

women and this i<strong>de</strong>a is related to d<strong>em</strong>onology which favored the construction of the witch<br />

image in medieval mind. Thus, a f<strong>em</strong>inine reverse is represented in A D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo<br />

Graal, whose religious th<strong>em</strong>atic is intense and medieval misogyny more visible. In Amadis <strong>de</strong><br />

Gaula it is not possible to attribute the same image to the sorceress because all supernatural<br />

el<strong>em</strong>ents occur in a natural way. This reflects a pacific retaking of pagan values. The<br />

res<strong>em</strong>blance with real life helps verisimilitu<strong>de</strong> to get credibility over the characters. A great<br />

similarity of a witch character with real conceptions about medieval sorceresses or witches<br />

gives the romances a unique and fictional <strong>do</strong>cumental sign of traditions.<br />

KEY WORDS: Cavalry romances – mystic universe – f<strong>em</strong>inine figure – witches and<br />

sorceresses.


SUMÁRIO<br />

INTRODUÇÃO............................................................................................................. 07<br />

1 A NARRATIVA ROMANESCA E O ESTUDO DA PERSONAGEM................... 12<br />

1.1 ROMANCE E HISTÓRIA............................................................................................. 16<br />

1.2 CLASSIFICAÇÃO TIPOLÓGICA DO ROMANCE.................................................... 22<br />

1.2.1 Aspectos narrativos...................................................................................................... 23<br />

1.2.1.1 Narra<strong>do</strong>r.......................................................................................................................... 28<br />

1.2.1.2 Narratário........................................................................................................................ 30<br />

1.3 PERSONAGEM............................................................................................................. 31<br />

1.3.1 Personag<strong>em</strong>: aspectos que estreitam a relação realida<strong>de</strong>-ficção.............................. 37<br />

1.3.2 Personag<strong>em</strong>: aspectos que distanciam a relação realida<strong>de</strong>-ficção........................... 42<br />

2 DA CULTURA CELTA À CULTURA MEDIEVAL – BREVE REVISÃO DA<br />

HISTÓRIA.....................................................................................................................<br />

2.1 OS CELTAS E OS POVOS BÁRBAROS...................................................................... 46<br />

2.1.1 Os Celtas......................................................................................................................... 46<br />

2.1.2 Os povos bárbaros......................................................................................................... 49<br />

2.2 IDADE MÉDIA: DAS DIVISÕES CRONOLÓGICAS À ARTE E CULTURA.......... 52<br />

2.2.1 Cultura e arte medieval................................................................................................. 57<br />

2.2.1.1 Primeira Ida<strong>de</strong> Média e Alta Ida<strong>de</strong> Média................................................................. 57<br />

2.2.1.1.1 Literatura e arte............................................................................................................... 58<br />

2.2.1.2 Ida<strong>de</strong> Média Central e Baixa Ida<strong>de</strong> Média................................................................. 60<br />

2.2.1.2.1 Literatura.......................................................................................................................... 61<br />

3 A MULHER NA IDADE MÉDIA – FEITICEIRAS E BRUXAS COMO<br />

FIGURAS DA MARGINALIDADE............................................................................<br />

3.1 A FAMÍLIA E A MULHER............................................................................................ 68<br />

3.2 MODELOS E REPRESENTAÇÕES FEMININAS....................................................... 73<br />

3.3 FEITICEIRAS E BRUXAS: FIGURAS DA MARGINALIDADE FEMININA........... 80<br />

3.3.1 A feitiçaria...................................................................................................................... 82<br />

3.3.2 A bruxaria...................................................................................................................... 88<br />

4 O REVERSO DA FIGURA FEMININA NAS OBRAS: AMADIS DE GAULA E<br />

A DEMANDA DO SANTO GRAAL.............................................................................<br />

4.1 NOVELAS DE CAVALARIA........................................................................................ 96<br />

4.1.1 Amadis <strong>de</strong> Gaula............................................................................................................ 101<br />

4.1.2 A D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal.......................................................................................... 104<br />

4.2 CONHECENDO OS REVERSOS.................................................................................. 107<br />

4.2.1 Conceito <strong>de</strong> reverso........................................................................................................ 108<br />

4.2.2 Mulher e bruxa: reversos?............................................................................................ 110<br />

4.3 AMADIS DE GAULA: UM OLHAR SOBRE URGANDA............................................ 113<br />

4.3.1 Personag<strong>em</strong> e História: aspectos narrativos, formativos e comportamentais......... 115<br />

4.3.2 Influências pagãs e cristãs presentes na construção da personag<strong>em</strong>........................ 131<br />

4.4 A DEMANDA DO SANTO GRAAL: UMA LUZ NA OPACIDADE.............................. 137<br />

4.4.1 Personag<strong>em</strong> e História: aspectos narrativos, formativos e comportamentais......... 139<br />

4.4.2 Influências pagãs e cristãs presentes na construção das personagens...................... 159<br />

4.5 CONFRONTANDO AS OBRAS: CONFIGURAÇÃO DAS CONVERGÊNCIAS E<br />

DIVERGÊNCIAS............................................................................................................<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................ 165<br />

REFERÊNCIAS............................................................................................................. 170<br />

46<br />

67<br />

95<br />

161


INTRODUÇÃO<br />

As <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>, representantes <strong>do</strong> gênero narrativo da Era Medieval, são aventuras<br />

guerreiras que exaltam a valentia, a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao soberano e a <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>s fracos. O cavaleiro,<br />

personag<strong>em</strong> concebida segun<strong>do</strong> os padrões da Igreja Católica, revela castida<strong>de</strong>, fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> e<br />

<strong>de</strong>dicação, apresentan<strong>do</strong>-se s<strong>em</strong>pre disposto a qualquer sacrifício para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a honra cristã.<br />

Des<strong>de</strong> o t<strong>em</strong>po das Cruzadas, está diretamente liga<strong>do</strong> à luta <strong>em</strong> <strong>de</strong>fesa da Europa oci<strong>de</strong>ntal<br />

contra os inimigos da cristanda<strong>de</strong>. Por outro la<strong>do</strong>, essa concepção opõe-se à <strong>do</strong> cavaleiro da<br />

corte, geralmente sedutor, galantea<strong>do</strong>r, dividi<strong>do</strong> entre os prazeres da luta e os prazeres da<br />

carne, freqüent<strong>em</strong>ente envolvi<strong>do</strong> <strong>em</strong> relacionamentos ilícitos.<br />

Nas obras selecionadas para este trabalho A D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal e Amadis <strong>de</strong> Gaula,<br />

ambas as concepções <strong>do</strong> cavaleiro medieval são encontradas. Esses aspectos servirão <strong>de</strong> base<br />

à investigação das personagens f<strong>em</strong>ininas tidas como <strong>bruxas</strong>, presentes nas <strong>novelas</strong> e na vida<br />

<strong>do</strong>s cavaleiros. As concepções acerca <strong>do</strong> cavaleiro i<strong>de</strong>al po<strong>de</strong>rão se tornar índices na<br />

construção das personagens f<strong>em</strong>ininas, que provocam diferentes efeitos na recepção <strong>de</strong><br />

leitura. Segun<strong>do</strong> Cândi<strong>do</strong> (1985), essa carga <strong>de</strong> efeitos (ou <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s) parte da relação<br />

existente entre o ser vivo e o ser fictício, isto é, a manifestação da personag<strong>em</strong> que concretiza<br />

a comunicação e/ou interação que ocorre, no ato da leitura, entre o leitor e as personagens <strong>de</strong><br />

uma <strong>de</strong>terminada história. As ações e o enre<strong>do</strong> traduz<strong>em</strong> ao leitor a capacida<strong>de</strong> ou não <strong>de</strong><br />

aceitação da verda<strong>de</strong> transmitida pela personag<strong>em</strong> numa obra <strong>de</strong> ficção.<br />

Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-se a personag<strong>em</strong> um ser fictício, o probl<strong>em</strong>a da verossimilhança no romance<br />

acaba por <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r da possibilida<strong>de</strong> da personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> ficção criar a impressão da mais pura<br />

realida<strong>de</strong>. Cândi<strong>do</strong> expõe claramente as s<strong>em</strong>elhanças entre o ser vivo real e o ser fantástico,<br />

ficcional, cria<strong>do</strong> pela mente <strong>de</strong> um escritor, não <strong>de</strong>scartan<strong>do</strong> a inserção <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> no<br />

outro, como troca <strong>de</strong> essências que fortalece o real e o imaginário. Ressalta também o caráter<br />

fragmentário da personag<strong>em</strong>, por meio da comparação com o ser humano, ao esclarecer que o<br />

conhecimento <strong>do</strong> autor sobre a personag<strong>em</strong> criada é limita<strong>do</strong> e que esta característica é<br />

comum ao hom<strong>em</strong>.<br />

Na vida real esta é uma condição inerente ao ser humano, porque não é da<strong>do</strong> ao hom<strong>em</strong><br />

conhecer por completo a essência <strong>de</strong> outro, n<strong>em</strong> mesmo saber o que lhe acontecerá até o fim<br />

7


<strong>de</strong> sua vida. Já na criação <strong>de</strong> uma personag<strong>em</strong>, esse aspecto é estabeleci<strong>do</strong> racionalmente pelo<br />

escritor, caben<strong>do</strong> somente a ele <strong>de</strong>cidir o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> suas personagens, b<strong>em</strong> como as estruturas<br />

<strong>em</strong>ocionais <strong>de</strong> cada uma, suas complexida<strong>de</strong>s ou simplicida<strong>de</strong>s.<br />

Para Rosenfeld (1985), a literatura é concebida através <strong>de</strong> seu caráter ficcional. Apesar <strong>de</strong> este<br />

caráter ser um <strong>do</strong>s aspectos distintivos da literatura, não é capaz <strong>de</strong> restringir o campo<br />

literário. A existência <strong>do</strong> caráter fictício da literatura mostra o mun<strong>do</strong> retrata<strong>do</strong> num romance<br />

como um universo <strong>de</strong> objectualida<strong>de</strong>s imaginárias e intencionais, constituídas <strong>de</strong> palavras. É,<br />

portanto, imanente à obra o cunho ficcional e as relações entre realida<strong>de</strong> e ficção com ênfase<br />

nas limitações entre as duas esferas. A verossimilhança, segun<strong>do</strong> Rosenfeld, v<strong>em</strong> pautar-se<br />

numa representação <strong>do</strong> real pelo imaginário e não <strong>em</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> s<strong>em</strong>elhança entre<br />

estes <strong>do</strong>is universos. Partin<strong>do</strong>-se <strong>de</strong>ssas idéias, esta pesquisa se propõe a investigar a<br />

construção das personagens f<strong>em</strong>ininas, consi<strong>de</strong>radas <strong>bruxas</strong> e <strong>feiticeiras</strong>, analisan<strong>do</strong>-as <strong>em</strong><br />

posição favorável ou <strong>de</strong>sfavorável à realida<strong>de</strong> histórica presente e antece<strong>de</strong>nte às <strong>novelas</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>cavalaria</strong>.<br />

A síntese teórica exposta acima <strong>de</strong>verá unir-se às informações históricas, permitin<strong>do</strong> um<br />

entrelaçamento <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s na análise das personagens sob o enfoque da verossimilhança das<br />

influências recebidas por aqueles que prosificaram e compilaram as lendas pagãs cantadas <strong>de</strong><br />

geração a geração. A Ida<strong>de</strong> Média possui muitos mistérios. Historicamente, as invasões<br />

bárbaras persistiram durante séculos e a segurança resvalou-se <strong>em</strong> torres, castelos e paliçadas.<br />

Guerreiros, solda<strong>do</strong>s e cavaleiros lançaram-se <strong>em</strong> diversas batalhas por diversos motivos,<br />

<strong>de</strong>ntre eles a proteção <strong>de</strong> suas vidas e o sustento <strong>de</strong> sua família: “A <strong>cavalaria</strong> impera na<br />

Europa <strong>do</strong>s camponeses, <strong>do</strong>s pastores e <strong>do</strong>s bate<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s bosques” (DUBY, 1988, p. 5).<br />

A expressão <strong>do</strong> progresso técnico volta-se, principalmente, ao aperfeiçoamento <strong>do</strong>s materiais<br />

bélicos. A metalurgia esforça-se <strong>em</strong> criar meios <strong>de</strong> invulnerar os combatentes, tecen<strong>do</strong>-lhes<br />

malhas especiais, capacetes e elmos que pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> revestir os cavaleiros para as duras<br />

guerras. Entretanto, os materiais <strong>de</strong> batalha que este t<strong>em</strong>po mais se <strong>em</strong>penhou <strong>em</strong> mo<strong>de</strong>lar<br />

foram as espadas. Cingidas <strong>de</strong> uma simbologia mágica, eram muito mais que um instrumento<br />

<strong>de</strong> repressão: representavam uma superiorida<strong>de</strong> social; concediam aos cavaleiros, muito mais<br />

que os cavalos, a distinção entre os outros homens. A espada também trazia, <strong>em</strong> seu passa<strong>do</strong><br />

nebuloso, muito anterior ao perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> cristianização e evangelho, a crença <strong>de</strong> que eram<br />

fabricadas por mãos divinas, por s<strong>em</strong>i<strong>de</strong>uses, especialmente aquelas <strong>de</strong>stinadas a reis ou<br />

8


príncipes. Esta t<strong>em</strong>ática é bastante recorrente nas <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>. As histórias<br />

relacionadas à vida <strong>do</strong> Rei Artur traz<strong>em</strong> a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Excalibur, espada mágica que conce<strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>res especiais a um hom<strong>em</strong> comum.<br />

Esse perío<strong>do</strong> da história é visto por muitos como um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> incertezas, <strong>de</strong> dúvidas e<br />

questionamentos quanto à <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> e o seu papel entre seus s<strong>em</strong>elhantes,<br />

incluin<strong>do</strong>-se a <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong> “Ida<strong>de</strong> das Trevas”. Tal preconceito, segun<strong>do</strong> Franco Júnior<br />

(1988), refere-se ao “<strong>de</strong>sprezo indisfarça<strong>do</strong> pelos séculos localiza<strong>do</strong>s entre a Antigüida<strong>de</strong><br />

Clássica e o século XVI”. Entre as principais razões <strong>de</strong> se escolher a Ida<strong>de</strong> Média e os seus<br />

personagens está o gran<strong>de</strong> lega<strong>do</strong> artístico <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> às gerações futuras, <strong>de</strong>stacan<strong>do</strong>-se as<br />

<strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> que apresentam um horizonte mais próximo da vida social naqueles<br />

séculos.<br />

As confrontações <strong>de</strong> culturas diversas, no ambiente medieval <strong>de</strong> criação <strong>de</strong>ssas <strong>novelas</strong>,<br />

tornam-se objeto <strong>de</strong> investigação no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> constatar e averiguar as tendências e os<br />

aspectos <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> pagã e <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> cristã. A t<strong>em</strong>ática <strong>de</strong>ssas <strong>novelas</strong> (ou romances) <strong>de</strong><br />

<strong>cavalaria</strong> traz, <strong>em</strong> suas narrativas, sentimentos <strong>de</strong> imaterialida<strong>de</strong> e incerteza, próprios<br />

daqueles t<strong>em</strong>pos, configuran<strong>do</strong> a convivência <strong>de</strong> culturas diferentes (impostas ou não),<br />

resultantes <strong>do</strong> gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> invasões e diferentes hábitos culturais, o que contribui à<br />

in<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> medieval. Se o ambiente confuso e nebuloso <strong>do</strong> hom<strong>em</strong><br />

medieval é refleti<strong>do</strong> nas <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>, cabe analisar a forma <strong>de</strong> construção e<br />

apresentação das personagens f<strong>em</strong>ininas, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> até que ponto a convivência <strong>do</strong><br />

cristianismo com o paganismo interfere ou contribui na sua formação.<br />

As <strong>novelas</strong> A D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal e Amadis <strong>de</strong> Gaula (corpus da pesquisa) pertenc<strong>em</strong> à<br />

Matéria da Bretanha composta <strong>do</strong>s po<strong>em</strong>as ingleses Beowulf, Sir Gawain e o Cavaleiro<br />

Ver<strong>de</strong>, <strong>do</strong> romance <strong>de</strong> Alexandre e Lancelot, <strong>de</strong> Chrétien <strong>de</strong> Troyes, entre outros, constituin<strong>do</strong><br />

o Ciclo Arturiano. Posteriormente, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à s<strong>em</strong>elhança t<strong>em</strong>ática, Amadis <strong>de</strong> Gaula também<br />

foi incluída no <strong>ciclo</strong> por apresentar similarida<strong>de</strong>s com as obras anteriormente citadas.<br />

O objetivo <strong>de</strong>ste trabalho é relacionar as imagens produzidas pelas das figuras f<strong>em</strong>ininas<br />

consi<strong>de</strong>radas <strong>bruxas</strong> ou <strong>feiticeiras</strong>, portanto, pagãs, com o perfil f<strong>em</strong>inino i<strong>de</strong>aliza<strong>do</strong> e<br />

construí<strong>do</strong> com base nos valores cristãos. Partin<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta investigação, há que se discutir se a<br />

9


figura da feiticeira é o reverso da figura f<strong>em</strong>inina da Ida<strong>de</strong> Média, o el<strong>em</strong>ento transgressor <strong>do</strong>s<br />

padrões sociais impostos pela Igreja.<br />

As narrativas s<strong>em</strong>pre envolv<strong>em</strong> combates, aventuras, animais fantásticos, criaturas<br />

sobrenaturais, personagens com po<strong>de</strong>res excêntricos, honra e proteção às damas. Po<strong>de</strong>-se<br />

perceber que, além da figura imponente <strong>do</strong> protagonista cavaleiro, há to<strong>do</strong> um conjunto <strong>de</strong><br />

figuras dramáticas especiais que amparam o <strong>de</strong>senvolvimento da narrativa. Personagens com<br />

po<strong>de</strong>res exóticos, como <strong>feiticeiras</strong> e <strong>bruxas</strong>, aparec<strong>em</strong> com muita freqüência nas <strong>novelas</strong> <strong>do</strong><br />

Ciclo Arturiano. Geralmente, elas têm papel importante nas tramas, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>an<strong>do</strong> fatos,<br />

intrigas, vidências, avisos, proteção e até mesmo representan<strong>do</strong> a sabe<strong>do</strong>ria, a secularida<strong>de</strong> e<br />

os rituais pagãos, a partir <strong>de</strong> atuações como sacer<strong>do</strong>tisas.<br />

Justificam-se o questionamento sobre a inserção <strong>de</strong>stes seres, meio humanos, meio<br />

fantásticos, nas histórias <strong>de</strong> feitos cavaleirescos que envolv<strong>em</strong> conhecimentos <strong>de</strong> orig<strong>em</strong><br />

duvi<strong>do</strong>sa e as influências da religião cristã que, ainda nos primórdios da Ida<strong>de</strong> Média,<br />

principalmente na Grã-Bretanha, estava <strong>em</strong> processo <strong>de</strong> estabelecimento. Conhecimentos<br />

ocultos, ditos pagãos, muitas vezes atribuí<strong>do</strong>s ao povo Celta, aos sacer<strong>do</strong>tes Druidas e à<br />

Deusa, a Gran<strong>de</strong> Mãe são r<strong>em</strong>iniscências <strong>de</strong> um passa<strong>do</strong> que o Cristianismo procurou,<br />

ve<strong>em</strong>ent<strong>em</strong>ente, apagar da m<strong>em</strong>ória <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> medieval. É, no entanto, inevitável avaliar o<br />

caminho percorri<strong>do</strong> pela Igreja Católica para impor seus <strong>do</strong>gmas acima das crenças, já tão<br />

arraigadas e enraizadas.<br />

As <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> atravessaram séculos <strong>de</strong> vida levan<strong>do</strong> seus i<strong>de</strong>ais a vários países da<br />

Europa, como França, Portugal, Grã-Bretanha, Al<strong>em</strong>anha, Espanha e outros, mostran<strong>do</strong> essa<br />

gama <strong>de</strong> personagens tão diversos que perduraram por muito t<strong>em</strong>po, conviven<strong>do</strong> la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong><br />

com os preceitos da Igreja. É fato que esses personagens (os cavaleiros, as <strong>bruxas</strong>, os magos,<br />

os dragões, entre outros) eram muito mais atraentes ao povo <strong>do</strong> que histórias <strong>de</strong> cunho<br />

didático ou religioso. Tais el<strong>em</strong>entos não-cristãos, provenientes <strong>de</strong> culturas pagãs, aparec<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong> maneira diversificada <strong>em</strong> cada obra, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser simples acessórios, à marg<strong>em</strong> da<br />

estrutura narrativa ou constituir o fio condutor <strong>do</strong> texto; ainda assim, pod<strong>em</strong>-se apresentar <strong>de</strong><br />

forma mais oculta, atribuin<strong>do</strong> um ar <strong>de</strong> mistério e suspense aos personagens e ao <strong>de</strong>senrolar<br />

<strong>do</strong>s acontecimentos.<br />

10


O presente trabalho está organiza<strong>do</strong> <strong>em</strong> quatro capítulos assim distribuí<strong>do</strong>s: o primeiro,<br />

intitula<strong>do</strong> A narrativa romanesca e o estu<strong>do</strong> da personag<strong>em</strong>, apresenta uma trajetória teórica<br />

sobre o romance e a personag<strong>em</strong> na literatura, através <strong>de</strong> um panorama da historicida<strong>de</strong><br />

literária <strong>do</strong> gênero romance como expressão da narrativida<strong>de</strong>, os el<strong>em</strong>entos da narrativa,<br />

ressaltan<strong>do</strong> a personag<strong>em</strong>.<br />

O segun<strong>do</strong>, Da cultura celta à cultura medieval – breve revisão da História, busca<br />

contextualizar as <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>, traçan<strong>do</strong> um breve perfil histórico <strong>de</strong> sua criação e a<br />

tradição oral. Apresenta noções <strong>do</strong>s povos antigos que originaram as lendas pagãs que<br />

resultaram as <strong>novelas</strong> <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> <strong>arturiano</strong>, justifican<strong>do</strong> a profunda in<strong>de</strong>finição interior <strong>do</strong><br />

hom<strong>em</strong> medieval.<br />

O terceiro capítulo A mulher na Ida<strong>de</strong> Média – <strong>feiticeiras</strong> e <strong>bruxas</strong> como figuras da<br />

marginalida<strong>de</strong> é <strong>de</strong>dica<strong>do</strong> à mulher na Ida<strong>de</strong> Média. Traçan<strong>do</strong> a silhueta da figura f<strong>em</strong>inina,<br />

nos mol<strong>de</strong>s históricos, este capítulo procura apresentar a mulher medieval <strong>em</strong> seus aspectos<br />

sociais, econômicos e religiosos. Ressalta, igualmente, a visão masculinizada <strong>do</strong> universo<br />

f<strong>em</strong>inino, a inferiorização sofrida pelas mulheres e, conseqüent<strong>em</strong>ente, a marginalida<strong>de</strong> social<br />

das <strong>bruxas</strong> e <strong>feiticeiras</strong>.<br />

O quarto capítulo intitula<strong>do</strong> O reverso da figura f<strong>em</strong>inina nas <strong>novelas</strong> Amadis <strong>de</strong> Gaula e A<br />

D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal relaciona as imagens produzidas pelas <strong>bruxas</strong> e <strong>feiticeiras</strong> com o<br />

perfil i<strong>de</strong>aliza<strong>do</strong> e construí<strong>do</strong> sob as perspectivas eclesiásticas. Discute-se a questão <strong>do</strong><br />

“reverso” e <strong>do</strong> el<strong>em</strong>ento transgressor <strong>do</strong>s padrões sociais impostos pela Igreja, partin<strong>do</strong>-se da<br />

caracterização das personagens e <strong>do</strong>s aspectos narrativos, comportamentais e formativos, b<strong>em</strong><br />

como das influências pagãs e cristãs presentes na sua construção. Um confronto <strong>do</strong>s<br />

resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s pelas análises das duas obras confirma a hipótese <strong>de</strong> que apresentam<br />

características diferenciadas da mulher e da figura fantástica da bruxa e da feiticeira.<br />

11


1 A NARRATIVA ROMANESCA E O ESTUDO DA PERSONAGEM<br />

12<br />

“O que se passa” na narrativa não é, <strong>do</strong><br />

ponto <strong>de</strong> vista referencial (real), à letra:<br />

nada: “o que sobrevém”, é apenas a<br />

linguag<strong>em</strong>, a aventura da linguag<strong>em</strong>, cuja<br />

vinda não cessa <strong>de</strong> ser festejada”.<br />

Roland Barthes.<br />

« Introduction à l´analyse struturale <strong>de</strong>s<br />

récits ». In: Communications, 8 (1966).<br />

A narrativa, seja como gênero literário ou como um contar histórias, é repleta <strong>de</strong> vínculos<br />

com o meio social e está intrinsecamente conjugada ao contexto <strong>de</strong> produção histórico, social<br />

e i<strong>de</strong>ológico. Po<strong>de</strong>r-se-ia dizer que os contextos <strong>de</strong> épocas estão diretamente associa<strong>do</strong>s aos<br />

gêneros literários, caben<strong>do</strong> afirmar que a vida normal <strong>de</strong> um ser humano é composta <strong>de</strong><br />

inúmeros eventos que ocorr<strong>em</strong> cronologicamente e a sensação trazida pela narrativa é <strong>de</strong><br />

autêntica i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. O conjunto <strong>de</strong> acontecimentos <strong>de</strong> um conto, <strong>de</strong> um romance ou <strong>de</strong> uma<br />

novela po<strong>de</strong> representar um quadro, outrora, real. Culler (1999) afirma que as histórias<br />

constitu<strong>em</strong> o meio mais efetivo <strong>de</strong> compreensão das coisas da vida, seja da própria ou da <strong>de</strong><br />

outr<strong>em</strong>.<br />

O romance, o conto e a novela galgaram um espaço <strong>de</strong> extr<strong>em</strong>a importância na produção<br />

literária. Para Aguiar e Silva (1973, p. 247) o gênero narrativo é “(...) a mais importante e<br />

mais complexa forma <strong>de</strong> expressão literária <strong>do</strong>s t<strong>em</strong>pos mo<strong>de</strong>rnos”. O que surgiu <strong>do</strong>s<br />

primórdios da “oratura” 1 acabou <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong> ser apenas um meio <strong>de</strong> distração <strong>em</strong> família ou<br />

amigos para se tornar veículo <strong>de</strong> t<strong>em</strong>as liga<strong>do</strong>s à humanida<strong>de</strong>, interior e exteriormente; <strong>de</strong><br />

maneira ampla ou mais estreita, levan<strong>do</strong> abordagens e características humanas à avaliação e<br />

juízo <strong>de</strong> valor via representações <strong>de</strong> personagens.<br />

O contar histórias das narrativas é, segun<strong>do</strong> D’Onófrio (1997) uma forma da qual o artista se<br />

dispõe para compreen<strong>de</strong>r o mun<strong>do</strong>. “Fictício não significa falso, mas apenas historicamente<br />

inexistente” (D’ONÓFRIO, 1997, p. 9). Os eventos relata<strong>do</strong>s <strong>em</strong> histórias e a sucessão <strong>do</strong>s<br />

fatos faz<strong>em</strong> parte da fantasia <strong>do</strong> autor que, a partir da observação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> ao seu re<strong>do</strong>r, cria<br />

um ambiente imaginário on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>, inclusive, inventar e reinventar a sua própria existência.<br />

Desta forma, segun<strong>do</strong> o autor, o texto literário, então fictício, é a fonte mais fascinante <strong>de</strong><br />

1<br />

Termo adapta<strong>do</strong> das palavras “literatura” e “oralida<strong>de</strong>” para <strong>de</strong>signar a literatura ancestral, herdada <strong>de</strong> geração<br />

a geração, através da transmissão oral.


conhecimento da realida<strong>de</strong>. É por isso que, ao contrário <strong>do</strong>s po<strong>em</strong>as <strong>do</strong> Trova<strong>do</strong>rismo, as<br />

<strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> proporcionam uma cont<strong>em</strong>plação mais próxima <strong>do</strong> que foi o cotidiano <strong>do</strong><br />

hom<strong>em</strong> medieval. Entre os vários estudiosos que <strong>de</strong>tiveram sua atenção sobre o romance, é<br />

interessante discutir e comentar os pensamentos <strong>de</strong> Roland Bourneuf e Real Ouellet<br />

veicula<strong>do</strong>s <strong>em</strong> O universo <strong>do</strong> romance 2 , on<strong>de</strong> tratam, <strong>de</strong>talhadamente, <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os aspectos e<br />

el<strong>em</strong>entos compositivos da narrativa romanesca.<br />

Segun<strong>do</strong> os autores, a mágica da narrativa <strong>em</strong> forma <strong>de</strong> romance v<strong>em</strong> da própria palavra <strong>em</strong><br />

si; é repleta <strong>de</strong> conotações leves e agradáveis, passível <strong>de</strong> pronta i<strong>de</strong>ntificação. É, muitas<br />

vezes, entendida como uma forma <strong>de</strong> lazer, uma maneira <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso para a mente através <strong>de</strong><br />

ativida<strong>de</strong> intelectual capaz <strong>de</strong> redirecionar o pensamento, livran<strong>do</strong>-o <strong>do</strong>s aborrecimentos<br />

diários provenientes da rotina <strong>de</strong> trabalho. Tal concepção, relacionada à leitura <strong>de</strong> romances, é<br />

mais freqüente entre os leitores comuns. Porém, entre os mais atentos, é provável que o<br />

romance traga uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atingir melhor a própria realida<strong>de</strong>, conhecen<strong>do</strong>-a mais<br />

profundamente e, através da posição <strong>de</strong> observa<strong>do</strong>r <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> fictícia análoga à real,<br />

po<strong>de</strong> mesmo operar transformações na sua leitura <strong>de</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

A palavra romance, no <strong>de</strong>correr <strong>do</strong>s séculos, sofreu alterações <strong>em</strong> seu senti<strong>do</strong> primeiro. No<br />

século XII, a palavra significava, ao mesmo t<strong>em</strong>po, um escrito <strong>em</strong> verso e a língua na qual o<br />

verso era escrito. Posteriormente <strong>de</strong>u orig<strong>em</strong> ao verbo romancear, que inicialmente<br />

significava traduzir <strong>do</strong> latim para o francês e, mais tar<strong>de</strong>, nos primórdios <strong>do</strong> século XV,<br />

passou a significar contar <strong>em</strong> francês. Com o t<strong>em</strong>po, a palavra esten<strong>de</strong>u-se para <strong>de</strong>finir<br />

qualquer obra escrita <strong>em</strong> língua vulgar, <strong>de</strong> caráter ficcional s<strong>em</strong> bases históricas, qualquer<br />

matéria que se opusesse à literatura oral e, já nos fins da Ida<strong>de</strong> Média, romance abarcava,<br />

inclusive, as canções <strong>de</strong> gesta.<br />

Somente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> três séculos as narrativas <strong>em</strong> verso ce<strong>de</strong>ram espaço à prosa e o público <strong>do</strong><br />

século XVI ainda se <strong>de</strong>leitava com as histórias <strong>de</strong> valentes cavaleiros e damas <strong>de</strong> rara beleza<br />

viven<strong>do</strong> aventuras fantásticas, se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bran<strong>do</strong> <strong>em</strong> proezas heróicas para alcançar a honra, o<br />

merecimento <strong>do</strong> rei ou salvar alguém <strong>em</strong> extr<strong>em</strong>o perigo.<br />

2 BOURNEUF, Roland & OUELLET, Réal. O universo <strong>do</strong> romance. Coimbra: Almedina, 1976.<br />

13


No século seguinte, essas <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> per<strong>de</strong>ram muito <strong>do</strong> seu encanto, após centenas<br />

<strong>de</strong> anos ininterruptos <strong>de</strong> magia, e o romance pastoril apareceu para mostrar a beleza <strong>do</strong><br />

ambiente bucólico. No século XVIII, já às voltas com o Iluminismo, ele é caracteriza<strong>do</strong> por<br />

um espírito <strong>de</strong> luta. Autores imortais como Voltaire, Rousseau e Montesquieu criaram um<br />

universo <strong>de</strong> uma época <strong>em</strong> que a força da realida<strong>de</strong> vivida pelos autores é test<strong>em</strong>unhada por<br />

personagens que representavam uma filosofia <strong>de</strong> vida.<br />

O romance mo<strong>de</strong>rno muda <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>. Os autores <strong>do</strong> século XX encarnam uma literatura<br />

engajada; além disso, faz<strong>em</strong> <strong>do</strong> <strong>em</strong>preendimento literário o único mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> alcançar<strong>em</strong> a<br />

verda<strong>de</strong>ira vida. Ex<strong>em</strong>plificam as obras <strong>de</strong> Virginia Woolf e James Joyce que exploram<br />

profundamente os meandros <strong>do</strong> psiquismo humano. Outros dão test<strong>em</strong>unhos <strong>de</strong> lutas<br />

individuais e sociais, buscan<strong>do</strong> vencer os sofrimentos <strong>de</strong> ord<strong>em</strong> pessoal, econômica, política e<br />

também as dúvidas humanas mais comuns, como a morte e a religiosida<strong>de</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>.<br />

Paralela a estas tendências, há uma corrente <strong>de</strong> autores que expõ<strong>em</strong> os seus processos <strong>de</strong><br />

composição, os seus artifícios, contribuin<strong>do</strong> para que a crítica literária acompanhe a criação<br />

romanesca. São os chama<strong>do</strong>s grupos Tel Quel ou Change. Para estes autores o processo <strong>de</strong><br />

criação é tão importante quanto o produto acaba<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong> suas convicções, escrever um<br />

romance é uma experiência lingüística, um meio <strong>de</strong> conhecimento da linguag<strong>em</strong> e, até mesmo<br />

um pretexto para a teorização.<br />

O que ainda se faz presente na mente <strong>do</strong>s estudiosos, entretanto, é a dúvida freqüente quanto<br />

ao gênero narrativo romance. Apesar <strong>de</strong> tantas diversificações, na linha <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po, na<br />

narrativa romanesca, será possível conceber ou pelo menos se falar <strong>em</strong> romance como um<br />

gênero literário i<strong>de</strong>ntificável? É difícil <strong>de</strong>finir o romance como gênero literário autônomo.<br />

Segun<strong>do</strong> os autores, apesar <strong>de</strong> o romance aten<strong>de</strong>r a diversos chama<strong>do</strong>s <strong>do</strong> ser humano <strong>em</strong> sua<br />

realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> investigar o real e criar o fictício, <strong>de</strong> reproduzir formas fixas e <strong>de</strong> inventar o<br />

possível, permanece à mercê da imag<strong>em</strong> da palavra e estabelece o seu esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> expansão<br />

contínua.<br />

Vale ressaltar o seu aspecto físico e material no que concerne à relação econômica <strong>do</strong>s leitores<br />

e à difusão livresca no <strong>de</strong>correr <strong>do</strong>s séculos. Durante muitos anos, apenas os abasta<strong>do</strong>s<br />

podiam se dar ao luxo <strong>de</strong> comprar livros; o público leitor era reduzi<strong>do</strong>. Os possui<strong>do</strong>res <strong>de</strong><br />

fartos salários sustentavam o hábito <strong>de</strong> adquirir livros, mas a gran<strong>de</strong> maioria da população,<br />

que sobrevivia com salários ínfimos não tinha acesso aos livros. Não era esse, porém, o único<br />

14


obstáculo existente para a popularização <strong>do</strong> livro: contava-se também com a ausência <strong>de</strong><br />

lazeres nas classes sociais mais numerosas, com a <strong>de</strong>ficiência <strong>de</strong> luz durante a noite e com a<br />

falta <strong>de</strong> bibliotecas que disponibilizass<strong>em</strong> o <strong>em</strong>préstimo <strong>de</strong> livros. Os leitores <strong>em</strong> potencial no<br />

século XVIII eram os nobres, os burgueses e, principalmente, as mulheres. Aos homens eram<br />

reservadas outras ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> entretenimento como a caça, a vida noturna, o álcool e a<br />

bo<strong>em</strong>ia. Estes são fatores que <strong>de</strong>terminaram o sucesso ou o fracasso, <strong>em</strong> cada época, <strong>do</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> um gênero literário.<br />

A composição das histórias, das personagens e suas experiências estão <strong>em</strong> consonância com a<br />

vida real <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong>. O autor, como parte da socieda<strong>de</strong> não po<strong>de</strong> ignorar o público<br />

que o lê. Segun<strong>do</strong> Sartre 3 , ele é cúmplice <strong>do</strong> seu público. O romancista busca nos mo<strong>de</strong>los<br />

reais <strong>de</strong> vivência a inspiração, as idéias, as características que moldarão a sua obra. O leitor,<br />

na mesma proporção, <strong>em</strong> posição inversa, busca o <strong>de</strong>vaneio, a fuga, às vezes o abrigo <strong>de</strong> sua<br />

situação real na ficção inventada pelo autor, sorven<strong>do</strong> assim, uma recriação da própria<br />

imag<strong>em</strong> da vida real. Tornam-se, então, cúmplices nesse processo “autor-criação-obra-leitor”.<br />

O século XIX foi test<strong>em</strong>unha <strong>de</strong> uma expansão no campo da educação e da instrução, o que<br />

proporcionou um aumento consi<strong>de</strong>rável <strong>do</strong> público leitor. O custo <strong>do</strong>s livros foi reduzi<strong>do</strong><br />

graças às máquinas rotativas <strong>de</strong> impressão e os jornais passaram a veicular o romancefolhetim,<br />

proporciona<strong>do</strong> pelo aumento das vendagens <strong>de</strong> jornais. Esta forma <strong>de</strong> literatura<br />

compôs, por muito t<strong>em</strong>po, o único contato literário entre as pessoas <strong>de</strong> renda mais baixa, da<strong>do</strong><br />

o seu mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> divulgação.<br />

O século XX veio trazer ao romance um fenômeno cultural n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre positivo: a<br />

massificação. As vendas cresceram e a diversida<strong>de</strong> da criação impressa <strong>de</strong>stinada ao romance<br />

proliferou <strong>de</strong> tal maneira (com os livros <strong>de</strong> bolso, impressos <strong>em</strong> paperback, por ex<strong>em</strong>plo) que<br />

exerceu uma nova força comercial aos livros, popularizan<strong>do</strong> a leitura. Essa massificação<br />

generalizou o estilo romance, fazen<strong>do</strong> com que circulasse por to<strong>do</strong>s os lugares comuns, como<br />

quiosques, bancas <strong>de</strong> jornal, estações <strong>de</strong> tr<strong>em</strong>, aeroportos, postos <strong>de</strong> venda, etc. Criou-se um<br />

espaço amplo à aparição t<strong>em</strong>ática extr<strong>em</strong>amente variada, muitas vezes, não obe<strong>de</strong>cen<strong>do</strong> a<br />

rigores literários, mas difundin<strong>do</strong>-se com rapi<strong>de</strong>z. Encontram-se os romances policiais,<br />

romances <strong>de</strong> espionag<strong>em</strong> e contos eróticos, entre outros.<br />

3 SARTRE, Jean-Paul. Qu’est-ce que la literature? Paris: Gallimard, 1964.<br />

15


1.1 ROMANCE E HISTÓRIA<br />

Segun<strong>do</strong> Aguiar e Silva (1973), o romance foi, muitas vezes, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> como um her<strong>de</strong>iro<br />

direto das canções <strong>de</strong> gesta 4 . Entretanto, muito há que se <strong>de</strong>stacar <strong>em</strong> suas <strong>de</strong>sconformida<strong>de</strong>s.<br />

Suas diferenças alcançam tanto el<strong>em</strong>entos formais como os <strong>de</strong> conteú<strong>do</strong>. A canção <strong>de</strong> gesta<br />

era uma composição direcionada, como já supõe o nome, ao canto, enquanto que o romance<br />

<strong>de</strong>veria ser li<strong>do</strong> ou recita<strong>do</strong>.<br />

Ainda esclarecen<strong>do</strong> os supostos <strong>de</strong>sencontros entre estes <strong>do</strong>is gêneros literários, o autor<br />

esclarece que o herói das canções <strong>de</strong> gesta personifica uma ação coletiva através <strong>de</strong> suas<br />

aventuras e façanhas que permanec<strong>em</strong> como quadro da tradição <strong>de</strong> um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> lugar,<br />

representan<strong>do</strong> o conjunto <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s e comportamentos <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong>. Já o herói <strong>do</strong><br />

romance assume uma posição mais individualizada <strong>em</strong> relação ao grupo <strong>em</strong> que é inseri<strong>do</strong>. As<br />

aventuras vividas por este herói são as <strong>de</strong> uma personag<strong>em</strong>, criada pela ficção, e apresentam<br />

um cunho <strong>de</strong>scritivo-narrativo. Segun<strong>do</strong> Zumthor (1972, apud AGUIAR E SILVA, 1973) a<br />

narrativa, por estar livre das contrições <strong>do</strong> canto, encontra as suas dimensões próprias e cresce<br />

por si mesma, alargan<strong>do</strong> seus horizontes e per<strong>de</strong>n<strong>do</strong> gran<strong>de</strong> parte da sua função poética,<br />

abarcan<strong>do</strong> para si <strong>do</strong>is planos da existência <strong>do</strong> texto: a ficção e a escrita.<br />

S<strong>em</strong> um passa<strong>do</strong> completamente <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>, é interessante constatar que se encontram mais<br />

diferenças <strong>do</strong> que similarida<strong>de</strong>s entre as canções <strong>de</strong> gesta e o romance. É difícil estabelecer a<br />

gênese <strong>de</strong>ste que se tornou a mais popular forma literária. O romance venceu muitos<br />

obstáculos durante sua trajetória na história literária <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, tornan<strong>do</strong> mais relevante o<br />

estu<strong>do</strong> da sua estrutura, abrangência e <strong>do</strong>s efeitos que é capaz <strong>de</strong> exercer sobre os leitores por<br />

meio <strong>de</strong> suas personagens.<br />

Bourneuf & Ouellet (1976) comentam que o romance narra uma história, um<br />

<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> fatos ocorri<strong>do</strong>s num t<strong>em</strong>po e lugar leva<strong>do</strong>s a cabo por suas personagens.<br />

Já para Aguiar e Silva (1973), o romance medieval “encontra-se profundamente liga<strong>do</strong> à<br />

historiografia (...)” (p.249). Sabe-se, então, que nos séculos XII e XIII os termos roman e<br />

estoire, na França, eram equivalentes, confirman<strong>do</strong> a ligação intrínseca existente entre a<br />

4 Do francês chansons <strong>de</strong> geste, po<strong>em</strong>as épicos medievais franceses escritos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a segunda meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século<br />

XI até o século XIII, cuja ação transcorria especialmente no t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> Carlos Magno (Geste du Roi). Destaca-se<br />

a Chanson <strong>de</strong> Roland , uma das mais conhecidas.<br />

16


ealida<strong>de</strong> (como fonte inspira<strong>do</strong>ra) e a ficção (como representação <strong>de</strong>ssa realida<strong>de</strong>) veiculada<br />

pelo romance.<br />

Percebe-se daí a forte i<strong>de</strong>ntificação sentida pelo leitor <strong>em</strong> relação a uma personag<strong>em</strong> ou a uma<br />

situação vivida por uma ou mais personagens. A história, seja relatada cronologicamente ou<br />

não, representa uma referência à ficção. Tal assertiva combate os estudiosos que <strong>de</strong>fend<strong>em</strong> a<br />

nítida separação da criação literária <strong>do</strong> ambiente real vivi<strong>do</strong> pelo autor. Por mais que um autor<br />

crie, invente personagens, situações, ações e atitu<strong>de</strong>s completamente originadas por sua<br />

mente, não há como fugir <strong>do</strong>s mo<strong>de</strong>los sociais pré-existentes. Apesar da relação intrínseca<br />

entre estas duas esferas, é importante salientar que se trata apenas <strong>de</strong> uma relação. A história,<br />

seja <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong> ou <strong>de</strong> uma pessoa apenas, não constitui matéria real num romance.<br />

Não são a mesma coisa a vida real e o que se reflete na ficção romanesca, entretanto, esta<br />

recebe reflexos daquela que a faz<strong>em</strong> s<strong>em</strong>elhante e passível <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação.<br />

Bourneuf & Ouellet (1976) explicam que a história narrada é fictícia e <strong>de</strong>stacam a habilida<strong>de</strong><br />

<strong>do</strong> autor <strong>em</strong> utilizar o verda<strong>de</strong>iro e transformá-lo <strong>em</strong> ficção: “Dificilmente se po<strong>de</strong> conceber<br />

um romance puro, on<strong>de</strong> tu<strong>do</strong> seria fabrica<strong>do</strong>, <strong>de</strong>sliga<strong>do</strong> da realida<strong>de</strong> (...)” (p.31). Do mesmo<br />

mo<strong>do</strong>, questionam a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> existir uma narrativa bruta, <strong>em</strong> que tu<strong>do</strong> fosse conforme<br />

a realida<strong>de</strong>. Ainda assim estaria <strong>em</strong> conformida<strong>de</strong> com a realida<strong>de</strong>, não seria outra forma <strong>de</strong><br />

realida<strong>de</strong>: “(...) o romance atua s<strong>em</strong> cessar na fronteira ambígua <strong>do</strong> real e da ficção. Se o<br />

romancista dá a sua história por verda<strong>de</strong>ira, engana pouco ou muito o seu leitor, mas porque<br />

este o admite e nisso sente prazer...” (p.32).<br />

Ressaltan<strong>do</strong> ainda o papel da história na narrativa romanesca, <strong>de</strong>ve-se, então, constar que nas<br />

literaturas européias medievais, extensas composições romanescas apareceram com bastante<br />

freqüência e contribuíram para a construção da imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> uma época por <strong>de</strong>scrições e<br />

narrações da vida cotidiana comum, como também da vida da Corte. Aguiar e Silva (1973)<br />

esclarece que se po<strong>de</strong> encontrar duas correntes <strong>de</strong>ssa literatura: o romance <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> e o<br />

romance sentimental. O romance <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>, segun<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo constituí<strong>do</strong> pelas obras <strong>de</strong><br />

Chrétien <strong>de</strong> Troyes, revela uma vivência nobre e ao mesmo t<strong>em</strong>po guerreira, apresentan<strong>do</strong><br />

uma estrutura pautada <strong>em</strong> duas vertentes: o amor e a aventura.<br />

Vale l<strong>em</strong>brar que Zumthor (1972, apud AGUIAR E SILVA, 1973) <strong>de</strong>fine o significa<strong>do</strong><br />

específico <strong>do</strong> termo “aventura” no romance <strong>de</strong> Chrétien <strong>de</strong> Troyes e <strong>de</strong> outros romancistas<br />

17


medievais, <strong>de</strong>signan<strong>do</strong> a aventura como uma prova (ou uma série <strong>de</strong> provas) <strong>em</strong> que o herói<br />

passa <strong>de</strong> um esta<strong>do</strong> menor a uma posição superior, restabelecen<strong>do</strong> a ord<strong>em</strong> comum. Já o<br />

romance sentimental apresentava um caráter muito mais erótico ou acentuadamente mais<br />

sentimentalista. O romance <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> se valia das peripécias amorosas para alavancar e<br />

conce<strong>de</strong>r importância às aventuras, que propiciavam às personagens finais felizes pelo<br />

sucesso das façanhas, tarefas ou missões <strong>em</strong>preendidas pelo herói cavaleiresco. Também vale<br />

ressaltar que os <strong>de</strong>sfechos <strong>do</strong>s romances sentimentais, com freqüência, não acompanhavam os<br />

romances <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>, pois apresentavam fins trágicos, acentuan<strong>do</strong> seu caráter dramático.<br />

Aguiar e Silva (1973) explicita que, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista técnico, o romance <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong><br />

apresentou uma capacida<strong>de</strong> muito maior <strong>de</strong> expansão <strong>de</strong> suas seqüências narrativas, haja vista<br />

as várias e conhecidas continuações ou novas aventuras envolven<strong>do</strong> os mesmos personagens<br />

já narra<strong>do</strong>s <strong>em</strong> aventuras anteriores. A literatura medieval não é restrita apenas a estas<br />

narrativas. Encontram-se outras formas literárias, tais como as moralida<strong>de</strong>s, as ex<strong>em</strong>pla, as<br />

farsas, os fabliaux, a novela e o conto. Entre estas formas menores, <strong>de</strong>stacam-se a novela e o<br />

conto.<br />

Segun<strong>do</strong> Bourneuf & Ouellet (1976), a novela e o conto possu<strong>em</strong> uma estreita ligação com o<br />

romance, porém n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre fácil <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r, dadas as diferentes concepções que estas<br />

formas literárias receberam <strong>em</strong> diversas épocas. A novela sofreu alterações várias <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o seu<br />

aparecimento, no século XV, na França. Formou-se <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com as modas e os costumes,<br />

procuran<strong>do</strong> ligar-se à crônica cotidiana ou à reconstituição histórica, muitas vezes satírica e<br />

outras tantas filosófica, registran<strong>do</strong> tradições e hábitos, como também se abrin<strong>do</strong> ao<br />

fantástico. Estruturalmente, a novela era uma narrativa curta, <strong>de</strong>scomplicada, não dada a<br />

longas <strong>de</strong>scrições “se esforçava por contar um fato ou um inci<strong>de</strong>nte impressionante, <strong>de</strong> tal<br />

mo<strong>do</strong> que se tivesse a sensação <strong>de</strong> um acontecimento real; esse inci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>veria parecer mais<br />

importante <strong>do</strong> que as personagens que o viv<strong>em</strong>” (JOLLES, 1972, p.251, apud Aguiar e Silva,<br />

1973).<br />

Gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque ganhou a novela no século XIV na literatura pré-renascentista italiana, cujo<br />

mo<strong>de</strong>lo fixou-se com Boccacio, com o seu Decameron, novela escrita com pouca matéria e<br />

mais objetiva <strong>em</strong> sua narrativa. Não se distancia <strong>do</strong> romance apenas <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à extensão <strong>de</strong> sua<br />

história: “a sua própria natureza é diferente, isto é, o objetivo <strong>do</strong> autor, a construção, o ritmo,<br />

o tom que ele a<strong>do</strong>ta” (BOURNEUF & OUELLET, 1976, p.33). Foi a partir da literatura<br />

18


italiana que a novela irradiou-se pela Europa. Da mesma forma como Jolles explica a<br />

sensação <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> transmitida pela novela, também Bourneuf & Ouellet (1976) expõ<strong>em</strong> o<br />

fato <strong>de</strong> a novela apresentar histórias curtas, a complexida<strong>de</strong> da vida que o autor busca<br />

transparecer torna-se mais <strong>de</strong>nsa e edificada.<br />

Em relação ao conto, há controvérsias quanto a sua caracterização, b<strong>em</strong> como as suas<br />

s<strong>em</strong>elhanças e diferenças com a novela. Exist<strong>em</strong> autores que não diferenciam essas formas<br />

literárias, atribuin<strong>do</strong> as possíveis varieda<strong>de</strong>s a uma terminologia apenas. Entretanto, há outros<br />

estudiosos que procuram <strong>de</strong>limitar certas características à novela inexistentes no conto ou<br />

vice-versa. Paul Zumthor (1972, apud AGUIAR E SILVA, 1973) esclarece que a novela,<br />

narrativa curta, como <strong>de</strong>signação literária, provém <strong>do</strong> italiano novella, que significa<br />

“novida<strong>de</strong>, notícia”. No século XIII a palavra “nova” aparece com o significa<strong>do</strong> <strong>de</strong> “narrativa<br />

feita <strong>de</strong> alguma matéria tradicional, arranjada <strong>de</strong> novo”.<br />

Enten<strong>de</strong>-se que a novela <strong>de</strong>dica-se à cont<strong>em</strong>plação, não oferecen<strong>do</strong> matéria à interrogação, à<br />

intriga, ao exercício intelectual da leitura. Mesmo estan<strong>do</strong> próxima à realida<strong>de</strong> cotidiana, por<br />

suas características ingênuas e vulgares, torna-se uma literatura mais apropriada ao leitor<br />

menos exigente, que apenas procura por distração. Por esse motivo, a t<strong>em</strong>ática maravilhosa e<br />

fantástica adapta-se b<strong>em</strong> à cont<strong>em</strong>plação e satisfaz este leitor.<br />

Retoman<strong>do</strong> a narrativa romanesca, suas implicações e seus principais el<strong>em</strong>entos constitutivos<br />

e históricos, Aguiar e Silva (1973) aponta uma estreita ligação entre o romance surgi<strong>do</strong> no<br />

perío<strong>do</strong> barroco, no século XVII, e o romance medieval, caracterizan<strong>do</strong>-se pela exuberante<br />

imaginação e pela quantida<strong>de</strong> vasta <strong>de</strong> situações aventurosas, fantásticas e inverossímeis, tais<br />

como “naufrágios, duelos, raptos, confusões e personagens, aparições <strong>de</strong> monstros e gigantes,<br />

etc.” (p.252). Mas, ao mesmo t<strong>em</strong>po, o romance barroco v<strong>em</strong> preencher o gosto e respon<strong>de</strong>r<br />

às exigências requintadas <strong>do</strong> público leitor daquele século, que consumia vorazmente esta<br />

literatura romanesca, repleta <strong>de</strong> narrativas longas e complicadas, principalmente, aventuras<br />

sentimentais.<br />

Ainda no quadro das literaturas européias <strong>do</strong> século XVII, ocupa lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque Dom<br />

Quixote, <strong>de</strong> Cervantes, posicionan<strong>do</strong> a Espanha no cume <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio da criação romanesca. A<br />

obra constitui uma espécie <strong>de</strong> anti-romance pautada na crítica aos valores cavaleirescos,<br />

representan<strong>do</strong> uma sátira aos romances <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>. À literatura espanhola também pertence<br />

19


a obra Vida <strong>de</strong> Lazarillo <strong>de</strong> Tormes, <strong>de</strong> autor <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>. Vale afirmar que o romance<br />

picaresco exerceu forte influência na literatura européia, trazen<strong>do</strong> para o gênero a <strong>de</strong>scrição<br />

realista da socieda<strong>de</strong> e <strong>do</strong>s costumes <strong>de</strong> época. Entretanto, parece transcen<strong>de</strong>r a este retrato da<br />

realida<strong>de</strong> e abarcar um significa<strong>do</strong> mais profun<strong>do</strong>, <strong>em</strong> especial, à construção da personag<strong>em</strong>.<br />

O pícaro, protagonista <strong>de</strong>ste gênero, é ti<strong>do</strong> como um anti-herói, tanto por sua orig<strong>em</strong>, como<br />

por seu comportamento e natureza. De acor<strong>do</strong> com Aguiar e Silva (1973) o pícaro, através da<br />

sua rebeldia, se afirma como um indivíduo ciente da sua condição social e, por causa disto,<br />

t<strong>em</strong> a ousadia <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar a sua miséria, matéria legítima e digna <strong>de</strong> uma obra literária.<br />

O romance barroco, por sua vez, apresenta-se como um instrumento <strong>de</strong> fuga, a partir <strong>do</strong><br />

enfraquecimento <strong>do</strong> “vício romanesco”. O romance mo<strong>de</strong>rno toma forma e aspira a ser mais<br />

<strong>do</strong> que somente uma história, questionan<strong>do</strong> os probl<strong>em</strong>as sociais e suscitan<strong>do</strong> soluções ou<br />

respostas. Segun<strong>do</strong> Aguiar e Silva (1973), o romance mo<strong>de</strong>rno não se constituiu apenas da<br />

dissolução da narrativa barroca, mas também <strong>do</strong> não apego à estética clássica. Para o autor, o<br />

romance é um gênero <strong>de</strong>sprovi<strong>do</strong> <strong>de</strong> antepassa<strong>do</strong>s greco-latinos e, portanto, livre <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los<br />

a imitar e <strong>de</strong> regras a seguir. As poéticas européias pertencentes aos perío<strong>do</strong>s quinhentista e<br />

seiscentista foram centradas <strong>em</strong> Aristóteles e Horácio e, por conseguinte, não conce<strong>de</strong>ram a<br />

<strong>de</strong>vida atenção e importância ao romance, resultan<strong>do</strong> daí a sua intensa liberda<strong>de</strong> e flui<strong>de</strong>z. O<br />

seu sucesso, percebi<strong>do</strong> por sua difusão através <strong>do</strong>s séculos, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre foi b<strong>em</strong> visto. O<br />

romance sofreu muitas críticas e chegou a ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> uma literatura menor, não<br />

recomendada às pessoas <strong>de</strong> b<strong>em</strong>.<br />

Até o século XVIII, s<strong>em</strong> prestígio, sob to<strong>do</strong>s os pontos <strong>de</strong> vista, mesmo apresentan<strong>do</strong> um<br />

fascínio exerci<strong>do</strong> pela narrativa, o romance foi relega<strong>do</strong> à posição <strong>de</strong> literatura frívola, fútil e<br />

s<strong>em</strong> utilida<strong>de</strong> prática, própria <strong>de</strong> leitores comuns, pouco exigentes e s<strong>em</strong> cultura literária<br />

prévia. Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> o público f<strong>em</strong>inino que os romances medieval, renascentista e barroco<br />

dirigiram-se é provável a associação entre a digressão <strong>de</strong> comportamentos e as leituras <strong>de</strong>sses<br />

romances. O romance como um instrumento perigoso <strong>de</strong> perturbação <strong>em</strong>ocional e corrupção<br />

<strong>do</strong>s bons costumes explica as “(...) razões por que os moralistas e os próprios po<strong>de</strong>res<br />

públicos o con<strong>de</strong>naram asperamente” (AGUIAR E SILVA, 1973, p.255).<br />

Bourneuf & Ouellet (1976) também apontam para o <strong>de</strong>sprestígio <strong>do</strong> romance, vítima <strong>de</strong><br />

preconceitos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XVII, receben<strong>do</strong> <strong>de</strong>núncias <strong>de</strong> ord<strong>em</strong> moral e con<strong>de</strong>nações <strong>de</strong><br />

caráter estético. Os moralistas investiram contra ele por muitas vezes, bradan<strong>do</strong> ao público a<br />

20


sua influência corruptora, numa tentativa <strong>de</strong> purgar a leitura pelas famílias da socieda<strong>de</strong><br />

burguesa: “Um faze<strong>do</strong>r <strong>de</strong> romances e um poeta <strong>de</strong> teatro é um envenena<strong>do</strong>r público, não <strong>do</strong>s<br />

corpos, mas das almas <strong>do</strong>s fiéis, que <strong>de</strong>ve ser olha<strong>do</strong> como culpa<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

homicídios espirituais” (BOURNEUF & OUELLET, 1976, p.14) 5 . Os autores ainda<br />

comentam que tais ataques sofri<strong>do</strong>s não foram gratuitos, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-se o gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que<br />

o romance possui para explicar a realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> ensinar e <strong>de</strong> divertir. Desta forma, ele não<br />

apenas reflete o gosto <strong>de</strong> público, mas também os cria, os <strong>de</strong>signa, tal como o cin<strong>em</strong>a,<br />

atualmente, responsável pelos mais varia<strong>do</strong>s modismos.<br />

Tal atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> repulsa e <strong>de</strong>sconfiança <strong>do</strong>s moralistas <strong>em</strong> relação ao romance prolongou-se<br />

pelos t<strong>em</strong>pos mo<strong>de</strong>rnos, nas mais variadas formas, segun<strong>do</strong> Aguiar e Silva. Levou um t<strong>em</strong>po<br />

razoável para que fosse, aos poucos, per<strong>de</strong>n<strong>do</strong> força. A partir <strong>do</strong> enfraquecimento da estética<br />

clássica, no século XVIII, formou-se um novo público, com novos gostos artísticos e uma<br />

nova mentalida<strong>de</strong>, reconsi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> o romance. O espírito <strong>de</strong>sse novo público procurou<br />

instaurar uma nova ord<strong>em</strong> cultural, social e principalmente econômica, a fim <strong>de</strong> se afastar <strong>do</strong>s<br />

valores até então vigentes, provenientes das estéticas clássicas e tradicionais. Nascia e se<br />

reproduzia uma socieda<strong>de</strong> burguesa, valorizan<strong>do</strong> os aspectos positivos e a apreciação <strong>do</strong><br />

romance.<br />

A nova ord<strong>em</strong>, cansada <strong>do</strong> caráter fabuloso <strong>do</strong> romance, <strong>em</strong> voga até mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século<br />

XVIII, d<strong>em</strong>anda uma carga maior <strong>de</strong> realismo, <strong>de</strong> verossimilhança. A novela, que já oferecia<br />

muito <strong>de</strong>sses aspectos, passa a ganhar a atenção <strong>do</strong> público novamente e até a prolongar a sua<br />

extensão, tornan<strong>do</strong>-se, segun<strong>do</strong> Aguiar e Silva (1973)<br />

(...) uma espécie <strong>de</strong> gênero narrativo intermediário entre o ciclópico romance<br />

barroco e as curtas <strong>novelas</strong> <strong>do</strong> Renascimento: um gênero intermediário que,<br />

<strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista técnico, po<strong>de</strong> ser justamente consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> como ponte que<br />

conduz ao romance mo<strong>de</strong>rno (p.257,258).<br />

O século XVIII trouxe ao romance um caráter bastante analítico. O autor ressalta uma<br />

exacerbada melancolia, aspecto pré-romântico que tomou espaço consi<strong>de</strong>rável neste século.<br />

Quan<strong>do</strong> os primeiros matizes <strong>do</strong> romantismo se espalham pela Europa, o romance parece já<br />

ter conquista<strong>do</strong> a sua liberda<strong>de</strong> como gênero e até já se falava <strong>em</strong> certa tradição romanesca.<br />

Durante o perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> transição <strong>do</strong> século XVIII para o XIX houve um aumento da<br />

5 Nicole, 1666, <strong>em</strong> “Lettre sur l’hérésie imaginaire” apud Bourneuf & Ouellet, 1976.<br />

21


necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura por parte <strong>do</strong> público leitor. Apresenta-se, portanto, profícuo para a<br />

escrita e editoração <strong>de</strong> obras; muitas foram escritas e publicadas. O aspecto negativo<br />

apontava para uma maioria <strong>de</strong> leitores não exigentes e isto, conseqüent<strong>em</strong>ente, fez cair a<br />

qualida<strong>de</strong> das obras publicadas neste perío<strong>do</strong>.<br />

Entre as t<strong>em</strong>áticas mais apreciadas estão o romance negro ou <strong>de</strong> terror, <strong>em</strong> que povoam<br />

personagens exageradamente boas ou más, e o romance <strong>em</strong> folhetins que apresentavam<br />

histórias melodramáticas, repletas <strong>de</strong> romantismo <strong>em</strong>ocionante, el<strong>em</strong>ento que garantia o vivo<br />

interesse <strong>do</strong>s seus leitores, não significan<strong>do</strong>, porém, que to<strong>do</strong> material divulga<strong>do</strong> por este<br />

veículo fosse <strong>de</strong> baixa qualida<strong>de</strong>. As t<strong>em</strong>áticas d<strong>em</strong>asiadamente comoventes eram a<strong>de</strong>quadas<br />

ao apetite romanesco das gran<strong>de</strong>s massas leitoras da época.<br />

O Romantismo veio, por conseguinte, afirmar a narrativa romanesca como forma literária<br />

relevante, não mais como uma literatura marginal. Esta narrativa fez-se hábil na <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong><br />

personagens, seja <strong>em</strong> aspectos físicos como <strong>em</strong> psicológicos; foi capaz <strong>de</strong> conduzir análises<br />

<strong>do</strong> hom<strong>em</strong> e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> ao seu re<strong>do</strong>r, crian<strong>do</strong> uma variada tipologia: romance psicológico,<br />

histórico, poético ou simbólico, <strong>de</strong> análise crítica, entre outros.<br />

1.2 CLASSIFICAÇÃO TIPOLÓGICA DO ROMANCE<br />

Não faltam tentativas, no mun<strong>do</strong> acadêmico, para estabelecer uma tipologia romanesca que<br />

satisfaça a to<strong>do</strong>s os aspectos e el<strong>em</strong>entos essenciais ao gênero. Entretanto ainda não existe<br />

uma que abarque todas as possibilida<strong>de</strong>s levantadas pelos estudiosos, para alcançar certa<br />

uniformida<strong>de</strong>. Aguiar e Silva (1973) apresenta a tipologia <strong>de</strong> Wolfgang Kayser 6 , consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong><br />

as diversas abordagens que pod<strong>em</strong> receber a ação, o espaço e a personag<strong>em</strong> como categorias<br />

narrativas fundamentais. Há o romance <strong>de</strong> ação ou <strong>de</strong> acontecimento, <strong>de</strong> personag<strong>em</strong> e <strong>de</strong><br />

espaço. O romance <strong>de</strong> ação ou <strong>de</strong> acontecimento é aquele que se estrutura <strong>de</strong> forma linear, ou<br />

seja, possui um início b<strong>em</strong> marca<strong>do</strong>, um meio e um fim. Não se <strong>de</strong>tém <strong>em</strong> longas <strong>de</strong>scrições<br />

<strong>de</strong> personagens ou <strong>de</strong> lugares, centran<strong>do</strong>-se na sucessão e no enca<strong>de</strong>amento <strong>do</strong>s fatos,<br />

circunstâncias e episódios. São ex<strong>em</strong>plos <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> romance as obras <strong>de</strong> Walter Scott e<br />

Alexandre Dumas.<br />

6 Wolfganf Kayser, Análise e interpretação da obra literária.<br />

22


O romance <strong>de</strong> personag<strong>em</strong> caracteriza-se pela existência <strong>de</strong> uma única personag<strong>em</strong> principal,<br />

a qual o autor constrói e ao re<strong>do</strong>r da qual toda a trama se <strong>de</strong>senvolve. É um romance <strong>de</strong> tom<br />

confessional, que privilegia a função <strong>em</strong>otiva da linguag<strong>em</strong> e que ten<strong>de</strong> a um subjetivismo<br />

lírico acentua<strong>do</strong>. Os títulos <strong>do</strong>s romances que se enquadram nesta categoria são bastante<br />

significativos, pois revelam a centralida<strong>de</strong> da personag<strong>em</strong> <strong>de</strong>stacan<strong>do</strong>-se no nome da obra,<br />

como Werther, <strong>de</strong> Göethe.<br />

O romance <strong>de</strong> espaço, por sua vez, é caracteriza<strong>do</strong> pela atenção dada ao retrato <strong>do</strong> meio<br />

histórico e <strong>do</strong>s ambientes sociais nos quais <strong>de</strong>corr<strong>em</strong> os fatos. Ex<strong>em</strong>plificam os <strong>de</strong> Balzac,<br />

Zola e Eça <strong>de</strong> Queirós, cuja preocupação maior é <strong>de</strong>screver minuciosamente a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

seu t<strong>em</strong>po. O meio social ou histórico não constitu<strong>em</strong> o único espaço abrangente <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong><br />

romance; outros espaços geográficos, regionais ou telúricos também estiveram narra<strong>do</strong>s <strong>em</strong><br />

romances.<br />

Aguiar e Silva (1973) alerta que esta classificação é aceitável, porém não <strong>de</strong>ve ser vista como<br />

única possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> enquadramento <strong>de</strong> todas as obras romanescas escritas até os dias <strong>de</strong><br />

hoje. Não se constitui uma classificação rígida que possa abranger to<strong>do</strong>s os <strong>de</strong>talhes<br />

característicos <strong>de</strong> um romance, b<strong>em</strong> como é impossível encontrar uma obra pura e concreta<br />

que se enquadre perfeitamente <strong>em</strong> uma das modalida<strong>de</strong>s sugeridas por Kayser. Ao contrário,<br />

encontram-se, com freqüência, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas narrativas, obras que<br />

dificilmente se encaixam nesta ou naquela modalida<strong>de</strong> como O Vermelho e o Negro, <strong>de</strong><br />

Stendhal com apenas uma personag<strong>em</strong> central.<br />

1.2.1 Aspectos narrativos<br />

O romance, segun<strong>do</strong> Aguiar e Silva (1973), por ser uma narrativa busca representar um<br />

mun<strong>do</strong> real, material e espiritual. Suas histórias são situadas <strong>em</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s lugares e<br />

t<strong>em</strong>pos e, <strong>de</strong> maneira diversa à poesia, reflet<strong>em</strong> i<strong>de</strong>ais e acontecimentos referentes a um ou<br />

mais personagens, ou ainda ao narra<strong>do</strong>r. A partir da <strong>de</strong>terminação <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po, <strong>do</strong> espaço e <strong>do</strong>s<br />

personagens ocorr<strong>em</strong> fatos <strong>em</strong> ord<strong>em</strong> sucessiva ou não e pod<strong>em</strong> ser apresenta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> várias<br />

formas, obe<strong>de</strong>cen<strong>do</strong> a diferentes técnicas <strong>de</strong> narrar. Os formalistas russos, por ex<strong>em</strong>plo,<br />

distinguiram nos fatos apresenta<strong>do</strong>s pelo romance <strong>do</strong>is aspectos que, <strong>em</strong>bora compl<strong>em</strong>entares,<br />

<strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser entendi<strong>do</strong>s como conceitos distintos: a fábula e a trama (ou intriga).<br />

23


Para Bourneuf & Ouellet (1976), a fábula <strong>do</strong> romance correspon<strong>de</strong> à fabula que era el<strong>em</strong>ento<br />

constitutivo da tragédia e da epopéia. Segun<strong>do</strong> Aristóteles, na Poética, era a parte mais<br />

importante da história. Com o <strong>de</strong>senvolver das narrativas, o romance foi e continua a ser<br />

compreendi<strong>do</strong> como uma história, correspon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ao que Aristóteles <strong>de</strong>nominava <strong>de</strong> fábula.<br />

Os estudiosos franceses indicam que toda história, na tentativa <strong>de</strong> ser legível ou inteligível,<br />

<strong>de</strong>ve ser organizada <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma lógica simples, isto é, as ações, os acontecimentos <strong>de</strong>v<strong>em</strong><br />

estar dispostos <strong>de</strong> maneira el<strong>em</strong>entar e associa<strong>do</strong>s uns aos outros. A forma mais comum <strong>de</strong><br />

organização é a cronológica – uma sucessão <strong>de</strong> fatos que pod<strong>em</strong> parecer autônomos, mas que<br />

estão intimamente conecta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong> <strong>de</strong> relações lógicas, muitas vezes relações <strong>de</strong><br />

causalida<strong>de</strong>.<br />

Para Aguiar e Silva (1973), a fábula refere-se aos acontecimentos consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s <strong>em</strong> si<br />

mesmos; é a matéria pura da qual a narrativa se vale para criar a narração, seja <strong>em</strong> forma <strong>de</strong><br />

romance ou outra forma literária. Constitui a história tal qual aconteceu na realida<strong>de</strong> (quan<strong>do</strong><br />

isso é possível) ou tal qual ocorreu na imaginação <strong>de</strong> algum autor ou <strong>de</strong> várias pessoas numa<br />

coletivida<strong>de</strong>, estan<strong>do</strong> livre <strong>do</strong> apuro estético que a narração po<strong>de</strong> lhe conce<strong>de</strong>r através da<br />

trama ou intriga. A trama v<strong>em</strong> a ser a forma escolhida pelo narra<strong>do</strong>r para dispor os fatos e as<br />

circunstâncias capta<strong>do</strong>s da fábula, na tentativa <strong>de</strong> organizá-los estruturalmente numa ord<strong>em</strong><br />

narrativa. Esclarece o autor que a fábula se constitui num el<strong>em</strong>ento pré-literário e a trama num<br />

el<strong>em</strong>ento especificamente literário.<br />

No estu<strong>do</strong> das categorias da narrativa, o t<strong>em</strong>po constitui-se um importante el<strong>em</strong>ento.<br />

Entretanto, é comum se encontrar pontos <strong>de</strong> convergência <strong>de</strong> opiniões e conceitos. Entre<br />

estes, há que se <strong>de</strong>stacar o caráter sucessivo inerente à história ou diegese que molda os textos<br />

narrativos, conce<strong>de</strong>n<strong>do</strong>-lhes uma dinâmica <strong>de</strong> sucessivida<strong>de</strong> e cronologia. Reis (1995) afirma<br />

que este caráter está intimamente liga<strong>do</strong> com o <strong>de</strong>senrolar <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que os fatos narra<strong>do</strong>s<br />

são relaciona<strong>do</strong>s a outros el<strong>em</strong>entos, como o espaço, as personagens, etc. A narrativa,<br />

segun<strong>do</strong> o autor, busca <strong>de</strong>screver o espaço <strong>em</strong> que ocorrerá a ação, <strong>de</strong>talhar a caracterização<br />

das personagens, passo a passo, estabelecen<strong>do</strong> relações <strong>de</strong> contigüida<strong>de</strong> entre esses el<strong>em</strong>entos,<br />

numa linha sucessiva <strong>de</strong> acontecimentos e/ou aparições. O autor ainda comenta que esta<br />

forma <strong>de</strong> apresentação aproxima a narrativa da realida<strong>de</strong> e que n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre os romances<br />

segu<strong>em</strong> essa ord<strong>em</strong> realista. Quan<strong>do</strong> isso ocorre, a narrativa permanece priorizan<strong>do</strong> o fator<br />

<strong>de</strong>cisivo <strong>de</strong> afirmação da sucessivida<strong>de</strong>, ou seja, o t<strong>em</strong>po narrativo.<br />

24


Bourneuf & Ouellet (1976) também discut<strong>em</strong> o caráter <strong>de</strong> sucessivida<strong>de</strong> no <strong>de</strong>senvolver <strong>de</strong><br />

uma narrativa, ao afirmar<strong>em</strong> que o romance se organiza “à maneira <strong>de</strong> uma sucessão <strong>de</strong><br />

quadros sobre um fun<strong>do</strong> físico que dá à narrativa a sua configuração própria” (p. 169). Os<br />

personagens <strong>de</strong>scritos <strong>em</strong> um romance <strong>de</strong>pend<strong>em</strong> <strong>de</strong> movimento e andamento e tais<br />

d<strong>em</strong>andam t<strong>em</strong>po e ação. Os autores afirmam também que o t<strong>em</strong>po na narrativa mo<strong>de</strong>rna não<br />

mais se restringe a um el<strong>em</strong>ento da narrativida<strong>de</strong>; é muito mais <strong>do</strong> que isso, chega a ser o<br />

próprio assunto <strong>de</strong> um romance, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> levar à realização <strong>do</strong>s fatos e configuran<strong>do</strong>-se no<br />

próprio herói da história.<br />

Apresentam, ainda, a varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> distinções que a palavra t<strong>em</strong>po recorre normalmente. Na<br />

distinção proposta por M. Butor 7 (1969, apud Bourneuf & Ouellet, 1976) exist<strong>em</strong> três t<strong>em</strong>pos<br />

relaciona<strong>do</strong>s ao romance: t<strong>em</strong>po da aventura, t<strong>em</strong>po da escrita e t<strong>em</strong>po da leitura. Reis (1995)<br />

apresenta, contrariamente, o t<strong>em</strong>po da narrativa abarcan<strong>do</strong> três t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong>s autônomas e,<br />

ao mesmo t<strong>em</strong>po, associáveis entre si; são elas: o t<strong>em</strong>po da história, o t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> discurso e o<br />

t<strong>em</strong>po da narração. É possível fazer uma analogia <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po da aventura com o t<strong>em</strong>po da<br />

história. Já o t<strong>em</strong>po da escrita po<strong>de</strong>ria ser equipara<strong>do</strong> ao t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> discurso ou ao t<strong>em</strong>po da<br />

narração; no entanto, o t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> leitura não parece se aproximar das idéias <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po <strong>de</strong><br />

discurso ou <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> narração.<br />

Retoman<strong>do</strong> a distinção proposta por Butor, o t<strong>em</strong>po da aventura v<strong>em</strong> a ser a primeira<br />

dimensão t<strong>em</strong>poral que atinge o leitor, isto é, o t<strong>em</strong>po da própria história. É comum as obras<br />

trazer<strong>em</strong> uma referência da época <strong>em</strong> que se situa a aventura narrada. Romances pod<strong>em</strong> tratar<br />

<strong>de</strong> acontecimentos ocorri<strong>do</strong>s, na diegese, no início da Cristanda<strong>de</strong> ou num futuro b<strong>em</strong><br />

distante, além das coisas conhecidas no presente. Segun<strong>do</strong> os autores, essa referência<br />

t<strong>em</strong>poral ou essa duração <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong> natureza exterior, cronológica ou, até mesmo,<br />

matizar-se por trás <strong>de</strong> uma duração psicológica, não passível <strong>de</strong> mensuração.<br />

Prosseguin<strong>do</strong> com a discussão acerca <strong>do</strong>s el<strong>em</strong>entos narrativos, <strong>de</strong>ve-se <strong>de</strong>stacar a<br />

focalização. Também conheci<strong>do</strong> por ponto <strong>de</strong> vista ou foco narrativo, constitui-se num <strong>do</strong>s<br />

el<strong>em</strong>entos mais relevantes da estrutura <strong>do</strong> romance. Segun<strong>do</strong> Aguiar e Silva (1973) a<br />

focalização exprime as relações que um narra<strong>do</strong>r possui com o universo diegético e com o<br />

narratário e isso <strong>de</strong>nota sua gran<strong>de</strong> importância na construção discursiva da narração.<br />

7 Michel Butor, Essais sur lê roman, p. 118.<br />

25


Bourneuf & Ouellet (1976) afirmam que a focalização é o ângulo <strong>de</strong> visão, o ponto ótico <strong>em</strong><br />

que um narra<strong>do</strong>r se posiciona para contar a sua história. Está diretamente liga<strong>do</strong> à relação<br />

autor-leitor e narra<strong>do</strong>r-narratário. O termo focalização, proposto por Genette (1972, apud<br />

AGUIAR E SILVA, 1973), foi escolhi<strong>do</strong> como referencial <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à larga utilização pela<br />

crítica européia e também norte-americana.<br />

É interessante notar que Genette faz diferentes consi<strong>de</strong>rações <strong>em</strong> relação à probl<strong>em</strong>ática da<br />

focalização. Aguiar e Silva comenta os da<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Genette no que se refere à existência <strong>de</strong> <strong>do</strong>is<br />

el<strong>em</strong>entos cruciais da narrativida<strong>de</strong>: o mo<strong>do</strong> e a voz da narração. Inicialmente, Genette<br />

assume a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma tipologia das situações narrativas e afirma que a voz está<br />

intimamente ligada à focalização; entretanto, afirma, <strong>em</strong> seguida, que não há diferença <strong>de</strong><br />

focalização entre uma história narrada pelo próprio herói e uma outra narrada por um narra<strong>do</strong>r<br />

onisciente.<br />

Um herói-narra<strong>do</strong>r, entretanto, não se faz onisciente <strong>em</strong> relação às outras personagens,<br />

po<strong>de</strong>n<strong>do</strong>, inclusive, não ser total conhece<strong>do</strong>r <strong>de</strong> si mesmo. A focalização po<strong>de</strong> ser<br />

diversificada <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista i<strong>de</strong>ológico, psicológico ou ético, pois há <strong>de</strong> ser diferente o<br />

foco ótico da narração <strong>de</strong> um narra<strong>do</strong>r que conta a sua própria história e <strong>de</strong> um narra<strong>do</strong>r que<br />

conta a história <strong>de</strong> outr<strong>em</strong>, utilizan<strong>do</strong> a terceira pessoa para se referir ao protagonista. Então,<br />

Aguiar e Silva (1973) esclarece que <strong>em</strong> relação à uma certa “incoerência” <strong>de</strong> conceitos <strong>de</strong><br />

Genette <strong>de</strong>ve-se pon<strong>de</strong>rar “se a focalização é constituída pelas relações que o narra<strong>do</strong>r<br />

mantém com o universo diegético e também com o narratário, como pod<strong>em</strong> ser alheios, ou<br />

marginais, à probl<strong>em</strong>atização da focalização a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r e o estatuto <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>do</strong> texto narrativo?” (p. 322). Partin<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssas consi<strong>de</strong>rações e, principalmente, da existência<br />

<strong>de</strong> uma tipologia das situações narrativas, chega-se à constatação <strong>de</strong> que esta varia <strong>de</strong> teórico<br />

para teórico, <strong>de</strong> crítico para crítico, mas se dá, mormente, ao uso diferencia<strong>do</strong> das<br />

terminologias.<br />

A classificação das focalizações narrativas, segun<strong>do</strong> Aguiar e Silva (1973) equilibra-se entre<br />

as formas mais complexas e simplificadas, no intuito <strong>de</strong> abarcar vários senti<strong>do</strong>s, s<strong>em</strong> chegar a<br />

reduções restritivas. Entretanto, reitera o fato <strong>de</strong> que a escolha <strong>de</strong> terminologias não se<br />

constitui na <strong>de</strong>limitação <strong>de</strong> categorias, como que a impor conceitos, e sim são apenas mo<strong>do</strong>s<br />

flexíveis <strong>de</strong> verificar as múltiplas nuances narrativas que, concretamente, pod<strong>em</strong> ocorrer <strong>em</strong><br />

uma situação <strong>de</strong> narração.<br />

26


Consi<strong>de</strong>ra ainda que o fator mais importante instala-se no princípio <strong>de</strong> que a relação <strong>do</strong><br />

narra<strong>do</strong>r com a diegese e, conseqüent<strong>em</strong>ente, com o narratário, se estabelece <strong>em</strong> vários níveis,<br />

senti<strong>do</strong>s e conteú<strong>do</strong>s diferencia<strong>do</strong>s, ainda que inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes conforme o aspecto da<br />

estrutura romanesca escolhi<strong>do</strong> pelo autor/narra<strong>do</strong>r. A terminologia selecionada para este<br />

trabalho está baseada na apresentação proposta por Aguiar e Silva, levan<strong>do</strong> <strong>em</strong> consi<strong>de</strong>ração a<br />

classificação nominativa <strong>de</strong> Gérard Genette.<br />

Outro el<strong>em</strong>ento importante no estu<strong>do</strong> das categorias da narrativa é o espaço. Reis (1995)<br />

começa <strong>de</strong>screven<strong>do</strong>-o como o conjunto <strong>de</strong> componentes físicos que darão lugar ou que<br />

servirão <strong>de</strong> cenário para o <strong>de</strong>senvolvimento da história, tais como <strong>de</strong>corações, campos,<br />

cida<strong>de</strong>s, casas, interiores <strong>de</strong> construções, objetos, etc. Em segun<strong>do</strong> plano, o conceito <strong>de</strong><br />

espaço po<strong>de</strong> ser compreendi<strong>do</strong> <strong>em</strong> senti<strong>do</strong> metafórico, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> abranger tanto os ambientes<br />

sociais quanto os ambientes psicológicos.<br />

A <strong>de</strong>scrição espacial po<strong>de</strong> assumir uma gama <strong>de</strong> aspectos <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o gosto <strong>de</strong> cada<br />

romancista: este po<strong>de</strong> optar por gran<strong>de</strong>s extensões <strong>de</strong> espaço, como também a pequenos<br />

recantos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. O que importa é que <strong>de</strong> qualquer representação espacial pod<strong>em</strong> se<br />

manifestar muitas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> interpretação. Reis (1995) argumenta que este aspecto é<br />

bastante vivo <strong>em</strong> romancistas que ficaram conheci<strong>do</strong>s por suas <strong>de</strong>scrições espaciais; cita Eça<br />

<strong>de</strong> Queiroz como o romancista <strong>de</strong> Lisboa e Camilo Castelo Branco como o romancista <strong>do</strong><br />

Porto, pelas comuns representações <strong>de</strong> cenários urbanos portugueses que escolheram. O<br />

espaço não é disposto <strong>de</strong> forma fixa ou imutável. Po<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver-se ao longo da narrativa<br />

acompanhan<strong>do</strong> o <strong>de</strong>curso da história ou o <strong>de</strong>sabrochamento <strong>de</strong> personagens. O estudioso<br />

afirma que à medida que o espaço vai se particularizan<strong>do</strong>, por ex<strong>em</strong>plo, recebe uma maior<br />

carga <strong>de</strong>scritiva que irá incr<strong>em</strong>entar seus significa<strong>do</strong>s <strong>de</strong>correntes.<br />

Bourneuf & Ouellet (1976) explicam que o romancista s<strong>em</strong>pre fornece um mínimo <strong>de</strong><br />

indicações espaciais, sejam como pontos <strong>de</strong> referência, para instigar a imaginação <strong>do</strong> leitor,<br />

sejam como explorações metódicas <strong>do</strong>s lugares, a fim <strong>de</strong> lhes prover <strong>de</strong> um significa<strong>do</strong> extra.<br />

Afirmam ainda que o espaço está longe <strong>de</strong> ser apenas um el<strong>em</strong>ento <strong>de</strong>corativo ou <strong>de</strong> cenário,<br />

pois se exprime <strong>em</strong> diferentes formas e se veste <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s múltiplos, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> até chegar a<br />

ser a razão <strong>de</strong> uma obra. Muitas vezes, o romancista <strong>de</strong>seja <strong>de</strong>sviar a visão <strong>do</strong> espaço para que<br />

o leitor não lhe dê atenção ou, simplesmente, por não ser relevante para o <strong>de</strong>senvolvimento da<br />

narração. É um caso extr<strong>em</strong>o <strong>em</strong> que o romancista leva o leitor ao mistério, ao suspense,<br />

27


<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à abundância <strong>de</strong> ações e outros el<strong>em</strong>entos mais importantes; acaba fazen<strong>do</strong> com que o<br />

leitor consi<strong>de</strong>re a sua história como uma fábula <strong>em</strong> que a localização importa pouco. Por<br />

outro la<strong>do</strong>, o oposto po<strong>de</strong> ocorrer: uma representação espacial simples para o leitor po<strong>de</strong> <strong>de</strong>vir<br />

<strong>de</strong> um processo elaborativo minucioso por parte <strong>do</strong> romancista, às vezes no intuito <strong>de</strong><br />

aproximar a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>scrição a uma pintura ou fotografia, carregan<strong>do</strong>-a <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s.<br />

1.2.1.1 Narra<strong>do</strong>r<br />

As personagens <strong>de</strong> um romance apresentam características e funções diferenciadas. Entre as<br />

personagens, há duas que se <strong>de</strong>stacam por sua função específica: o narra<strong>do</strong>r e o narratário.<br />

Segun<strong>do</strong> Aguiar e Silva (1973) o narra<strong>do</strong>r se estabelece como a entida<strong>de</strong> discursiva da<br />

narração e não <strong>de</strong>ve ser confundi<strong>do</strong> com o autor, pois apresentam natureza e função distintas.<br />

O narra<strong>do</strong>r é um ser fictício, tal qual a personag<strong>em</strong> e po<strong>de</strong> se colocar mais próximo ou mais<br />

distante da história narrada, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> da focalização escolhida pelo escritor. A instância<br />

narrativa po<strong>de</strong> se fundamentar <strong>em</strong> <strong>do</strong>is níveis diferentes: <strong>de</strong> primeiro ou <strong>de</strong> segun<strong>do</strong> grau. A<br />

instância narrativa <strong>de</strong> primeiro grau é produtora <strong>de</strong> uma narrativa primária, ocasionan<strong>do</strong> um<br />

narra<strong>do</strong>r extradiegético, e a <strong>de</strong> segun<strong>do</strong> grau é introduzida por outra instância narrativa e<br />

permanece <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma narrativa primária, apresentan<strong>do</strong> um narra<strong>do</strong>r intradiegético.<br />

Deste mo<strong>do</strong>, conforme a focalização escolhida pelo autor, po<strong>de</strong>-se encontrar o narra<strong>do</strong>r<br />

confundin<strong>do</strong>-se com o autor implícito, este segun<strong>do</strong> eu que permeia os basti<strong>do</strong>res da diegese,<br />

receben<strong>do</strong> a <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong> narra<strong>do</strong>r heterodiégetico, ausente da história narrada. Ou ainda<br />

po<strong>de</strong> estar presente na história, test<strong>em</strong>unhan<strong>do</strong> fatos e os apresentan<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong> sua ótica<br />

participativa, fazen<strong>do</strong>-se um narra<strong>do</strong>r homodiegético. Este narra<strong>do</strong>r homodiegético po<strong>de</strong><br />

também assumir a forma <strong>de</strong> personag<strong>em</strong> central da história, qualifican<strong>do</strong>-se, nesta<br />

terminologia <strong>de</strong> Genette, como narra<strong>do</strong>r autodiegético. Em ambos os casos o narra<strong>do</strong>r po<strong>de</strong><br />

interferir na narrativa por meio <strong>de</strong> idéias, conceitos, juízos e valores ou se posicionar <strong>de</strong><br />

maneira mais distante <strong>do</strong>s acontecimentos que são narra<strong>do</strong>s.<br />

Os pesquisa<strong>do</strong>res franceses Bourneuf & Ouellet (1976) analisam a probl<strong>em</strong>ática que envolve<br />

a personag<strong>em</strong>/narra<strong>do</strong>r com relação ao conhecimento da diegese e como é posto <strong>em</strong> evidência<br />

ao ser narra<strong>do</strong>. Quanto ao narra<strong>do</strong>r autodiegético, os teóricos levantam o probl<strong>em</strong>a <strong>do</strong> autoconhecimento<br />

e questionam a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o narra<strong>do</strong>r conhecer-se a si mesmo e <strong>de</strong><br />

comunicar a outros esse conhecimento. O auto-conhecimento é difícil <strong>de</strong> ser revela<strong>do</strong> <strong>de</strong>vi<strong>do</strong><br />

28


à tendência que o ser humano t<strong>em</strong> <strong>de</strong> se pren<strong>de</strong>r a sua própria subjetivida<strong>de</strong>, o que resulta na<br />

dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> julgar-se. O hom<strong>em</strong> ainda não é capaz <strong>de</strong> sair <strong>de</strong> si mesmo e olhar-se,<br />

exteriormente, s<strong>em</strong> sofrer as influências da auto-subjetivida<strong>de</strong>. Viven<strong>do</strong>, ao mesmo t<strong>em</strong>po,<br />

como objeto e sujeito, o hom<strong>em</strong> não t<strong>em</strong> a competência fria para se analisar tanto quanto<br />

analisa outros. Segun<strong>do</strong> os estudiosos, ao retratar-se a si mesmo, como uma recordação, o<br />

narra<strong>do</strong>r retira <strong>do</strong> esquecimento o vivi<strong>do</strong> e o ressuscita no presente <strong>de</strong> maneira melhor ou<br />

diferente, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong>-se levar pelo po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> imaginário. Em <strong>de</strong>corrência <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po transcorri<strong>do</strong>,<br />

o narra<strong>do</strong>r po<strong>de</strong> alterar os acontecimentos <strong>de</strong> forma a acentuar fatos menos significantes ou<br />

negligenciar outros mais importantes, por ex<strong>em</strong>plo.<br />

Com relação ao narra<strong>do</strong>r homodiegético, isto é, aquele que participa da história, mas não é a<br />

personag<strong>em</strong> central da trama, Bourneuf & Ouellet (1976) afirmam que, a priori, o test<strong>em</strong>unho<br />

<strong>de</strong> outr<strong>em</strong> sobre uma personag<strong>em</strong> parece trazer um compl<strong>em</strong>ento e uma solução aos limites e<br />

dificulda<strong>de</strong>s <strong>do</strong> auto-retrato, pois uma vez virada para o exterior, a test<strong>em</strong>unha já não está<br />

obscurecida por sua própria subjetivida<strong>de</strong>. Entretanto, apesar <strong>de</strong> o narra<strong>do</strong>r homodiegético se<br />

posicionar exteriormente aos fatos que envolv<strong>em</strong> o protagonista (e por isso ser menos<br />

influencia<strong>do</strong> por sua interiorida<strong>de</strong>), a apresentação <strong>de</strong> uma personag<strong>em</strong> por outra ainda suscita<br />

probl<strong>em</strong>as da mesma ord<strong>em</strong> da narração autodiegética.<br />

Segun<strong>do</strong> Sartre (1967, apud BOURNEUF & OUELLET, 1976), o conhecimento <strong>de</strong> si mesmo<br />

passa pela mediação das outras pessoas; os pesquisa<strong>do</strong>res afirmam que é bastante comum a<br />

experiência, na vida real, <strong>de</strong> que os outros apenas têm um conhecimento fragmentário e<br />

superficial sobre nós mesmos. Desta forma, o narra<strong>do</strong>r homodiegético também teria a mesma<br />

dificulda<strong>de</strong> <strong>em</strong> retratar o protagonista, por não ter amplo acesso à interiorida<strong>de</strong> da outra<br />

personag<strong>em</strong>. O fato <strong>de</strong> se colocar fora <strong>do</strong>s acontecimentos e analisar <strong>de</strong> longe as atitu<strong>de</strong>s <strong>do</strong><br />

protagonista não confer<strong>em</strong> a este narra<strong>do</strong>r a totalização <strong>do</strong>s conhecimentos, necessária para<br />

um retrato fiel da personag<strong>em</strong>.<br />

O narra<strong>do</strong>r homodiegético participa da história <strong>do</strong> protagonista não se constituin<strong>do</strong> apenas<br />

uma test<strong>em</strong>unha <strong>de</strong> fatos, mas sofre influência por estar <strong>em</strong> contato direto com o personag<strong>em</strong>.<br />

Po<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver afetos ou <strong>de</strong>safetos que interferirão <strong>em</strong> sua análise como narra<strong>do</strong>r. Como<br />

ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong>ssa situação, veja-se a personag<strong>em</strong> <strong>do</strong> Dr. Watson, das aventuras <strong>de</strong> Sherlock<br />

Holmes, <strong>de</strong> Sir Arthur Conan Doyle. É claramente perceptível a fascinação que o <strong>de</strong>tetive<br />

29


exerce sobre o amigo que narra suas histórias. Bourneuf & Ouellet (1976) explicam muito<br />

b<strong>em</strong> esta situação:<br />

Quanto mais o narra<strong>do</strong>r se mostra discreto a respeito <strong>de</strong> si mesmo, mais se<br />

intensifica, por contraste, o objeto da fascinação. (...) E tal fascinação,<br />

crian<strong>do</strong> um clima <strong>de</strong> <strong>em</strong>patia, permite, <strong>de</strong>certo, apresentar uma imag<strong>em</strong><br />

convincente da personag<strong>em</strong> principal – mas não a <strong>de</strong>forma ainda mais <strong>do</strong><br />

que o olhar lança<strong>do</strong> por alguém sobre si mesmo? Po<strong>de</strong>r<strong>em</strong>os ficar seguros <strong>de</strong><br />

conhecer b<strong>em</strong> a Julie <strong>de</strong> La Nouvelle Heloise exclusivamente através das<br />

cartas da sua roda fascinada <strong>de</strong> Clarens, que lhe faz um pe<strong>de</strong>stal com os<br />

elogios e a ro<strong>de</strong>ia como a um í<strong>do</strong>lo? (p. 260)<br />

Analisan<strong>do</strong> sob a ótica <strong>de</strong> Bourneuf & Ouellet, enten<strong>de</strong>-se a quase impossibilida<strong>de</strong> da<br />

personag<strong>em</strong>/narra<strong>do</strong>r se posicionar <strong>de</strong> forma neutra perante as outras personagens. Afinal, é a<br />

relação entre elas que comunica ao leitor os verda<strong>de</strong>iros sentimentos transfigura<strong>do</strong>s na<br />

narrativa. O mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> agir das personagens possibilitará maior conhecimento tanto daquela<br />

que narra quanto daquela que é narrada. “To<strong>do</strong> o comportamento é uma resposta dada à<br />

imag<strong>em</strong> projetada por outr<strong>em</strong>” (1976, p. 261).<br />

O narra<strong>do</strong>r heterodiégetico revelou-se comum e eficaz na narrativa romanesca,<br />

principalmente, para narrar conflitos entre homens e socieda<strong>de</strong>. Traz s<strong>em</strong>elhança com a<br />

narrativa épica no tocante à apresentação das personagens por suas aventuras e proezas. A<br />

personag<strong>em</strong> é posta <strong>em</strong> cena pelas situações <strong>em</strong> que se envolve e não por suas características<br />

individuais. Para os autores, a motivação psicológica t<strong>em</strong> menos importância <strong>do</strong> que o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento da trajetória das personagens e <strong>do</strong> que a disposição <strong>do</strong>s fatos.<br />

Outra questão relacionada a esta personag<strong>em</strong>/narra<strong>do</strong>r é o fato suscita<strong>do</strong> pela pessoa<br />

pronominal usada pelo narra<strong>do</strong>r. Bourneuf & Ouellet (1976) retomam a questão da<br />

impessoalida<strong>de</strong> da terceira pessoa <strong>do</strong> singular, muito freqüente <strong>em</strong> narra<strong>do</strong>res<br />

heterodiegéticos. Elucidam que não <strong>de</strong>ve haver reciprocida<strong>de</strong> entre as personagens (no caso,<br />

entre o narra<strong>do</strong>r e os outros personagens), permanecen<strong>do</strong> o narra<strong>do</strong>r numa atitu<strong>de</strong><br />

explicitamente neutra. É neste ponto que os estudiosos franceses consi<strong>de</strong>ram como narrativa<br />

histórica um fato narra<strong>do</strong> por um narra<strong>do</strong>r heterodiegético, s<strong>em</strong> intrusões daquele que narra.<br />

1.2.1.2 Narratário<br />

Constitui-se o <strong>de</strong>stinatário <strong>do</strong> texto narrativo, ou seja, um ser ficcional a qu<strong>em</strong> o<br />

<strong>em</strong>issor/narra<strong>do</strong>r dirige a palavra. Da mesma forma que o narra<strong>do</strong>r, o narratário po<strong>de</strong> ser<br />

30


extradiegético e intradiegético. Quan<strong>do</strong> extradiegético, o narratário po<strong>de</strong> permanecer<br />

invisível, <strong>em</strong>bora sua presença seja facilmente percebida. Po<strong>de</strong> também ser menciona<strong>do</strong> pelo<br />

narra<strong>do</strong>r, que o interpela, o invoca, o chama. Quan<strong>do</strong> intradiegético, o narratário po<strong>de</strong> se<br />

apresentar como uma personag<strong>em</strong> concreta, <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhan<strong>do</strong> a função específica <strong>de</strong> narratário<br />

ou po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> estar mais ou menos incluso como interveniente na intriga <strong>do</strong> romance.<br />

1.3 PERSONAGEM<br />

A discussão sobre este el<strong>em</strong>ento das categorias narrativas é a mais importante para este<br />

trabalho, uma vez que o objetivo é analisar as personagens <strong>feiticeiras</strong> ou <strong>bruxas</strong>. Além <strong>de</strong> ser<br />

um el<strong>em</strong>ento fundamental para a existência <strong>do</strong> romance, a personag<strong>em</strong> figura no imaginário<br />

<strong>do</strong>s leitores. Será retratada, primeiro, por seus aspectos <strong>de</strong> cunho narrativo e, posteriormente,<br />

pelos aspectos <strong>de</strong> formação que envolv<strong>em</strong> a construção da personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> ficção. É neste<br />

ponto, principalmente, que resi<strong>de</strong> o foco <strong>de</strong>sta pesquisa, analisan<strong>do</strong> a maior ou menor<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre personag<strong>em</strong> e pessoa, numa relação existente <strong>em</strong> <strong>de</strong>corrência <strong>do</strong> processo<br />

cognitivo da leitura.<br />

Nessa busca, é importante ressaltar que a teoria da personag<strong>em</strong> <strong>de</strong>verá levar <strong>em</strong> conta a<br />

verossimilhança suscitada pelas <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>, consi<strong>de</strong>radas verda<strong>de</strong>iros retratos <strong>de</strong><br />

uma época. Desta forma, torna-se possível o fornecimento <strong>de</strong> pistas a respeito <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

vida, <strong>do</strong>s costumes e tradições, b<strong>em</strong> como da organização social <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong> através<br />

das referidas obras literárias. Em conseqüência da observação da personag<strong>em</strong> f<strong>em</strong>inina, tida<br />

como feiticeira ou bruxa, po<strong>de</strong>r-se-á encontrar os laços entre personag<strong>em</strong> e pessoa, traçan<strong>do</strong><br />

um perfil mais ou menos correspon<strong>de</strong>nte ao conheci<strong>do</strong> perfil da mulher medieval.<br />

Inician<strong>do</strong> o estu<strong>do</strong>, Aguiar e Silva (1973) esclarece que os críticos teóricos têm atribuí<strong>do</strong><br />

importância diferenciada à personag<strong>em</strong>. Barthes (1966, apud AGUIAR E SILVA, 1973)<br />

dispõe a personag<strong>em</strong> como el<strong>em</strong>ento essencial à obra romanesca, s<strong>em</strong> a qual não é possível<br />

existir uma instância narrativa, pois as ações que a compõ<strong>em</strong> são atribuídas ou referidas a<br />

uma personag<strong>em</strong> ou agente. Entretanto, há que se dizer que esta <strong>de</strong>pendência não é unívoca.<br />

Cândi<strong>do</strong> (1985) explica que a personag<strong>em</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da existência <strong>do</strong>s outros el<strong>em</strong>entos da<br />

narrativa. Aponta-a como o el<strong>em</strong>ento mais atuante e mais comunicativo da arte novelística<br />

31


mo<strong>de</strong>rna; porém, só adquire significação <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> contexto, <strong>em</strong> contato com os outros<br />

el<strong>em</strong>entos constituintes da narrativa.<br />

Há um conteú<strong>do</strong> psicológico-moral que norteia a atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses teóricos da literatura, quer na<br />

valorização ou <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong>ste el<strong>em</strong>ento narrativo, atribuin<strong>do</strong>-lhe uma perspectiva<br />

funcionalista. Como ex<strong>em</strong>plo, Greimas (1966, apud AGUIAR E SILVA, 1973) substitui a<br />

<strong>de</strong>nominação <strong>de</strong> personag<strong>em</strong> pela <strong>de</strong> actor, conceituan<strong>do</strong>-a como a unida<strong>de</strong> lexical <strong>do</strong><br />

discurso, cujo conteú<strong>do</strong> s<strong>em</strong>ântico po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> <strong>em</strong> três características, a saber: entida<strong>de</strong><br />

figurativa, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser anima<strong>do</strong> e a suscetibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> individualização. Aguiar e Silva<br />

(1973) esclarece que uma das gran<strong>de</strong>s contribuições da abordag<strong>em</strong> funcional <strong>de</strong> Greimas é o<br />

fato <strong>de</strong> que a personag<strong>em</strong> romanesca não se institui numa pessoa viva e sim é construída por<br />

palavras, é um ser <strong>de</strong> papel. Tais consi<strong>de</strong>rações reduz<strong>em</strong> o que há <strong>de</strong> conteú<strong>do</strong> moral,<br />

psicológico e sociológico nas personagens, constituin<strong>do</strong> este um aspecto restritivo na análise<br />

funcionalista. Não raro suas consi<strong>de</strong>rações têm si<strong>do</strong> mais utilizadas <strong>em</strong> narrativas tradicionais<br />

e <strong>de</strong> cunho estereotipa<strong>do</strong>, como contos folclóricos, romances policiais e <strong>de</strong> espionag<strong>em</strong>. É<br />

importante <strong>de</strong>stacar que esta visão <strong>de</strong> Greimas correspon<strong>de</strong> a uma análise funcional da<br />

narrativa, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a personag<strong>em</strong> a partir <strong>de</strong> uma abordag<strong>em</strong> s<strong>em</strong>iótica, porém, não<br />

constituin<strong>do</strong> esta análise o foco escolhi<strong>do</strong> neste trabalho.<br />

Os personagens presentes numa narrativa literária estão dividi<strong>do</strong>s <strong>em</strong> herói (protagonista) e<br />

personagens secundárias. De acor<strong>do</strong> com Aguiar e Silva (1973), a concepção <strong>de</strong> herói está<br />

diretamente associada aos códigos culturais, aos conjuntos <strong>de</strong> valores éticos e i<strong>de</strong>ológicos <strong>de</strong><br />

uma socieda<strong>de</strong> <strong>em</strong> <strong>de</strong>terminada época; são concepções variáveis. No entanto, o autor po<strong>de</strong><br />

criar seus heróis <strong>em</strong> concordância ou não com estes códigos. O herói po<strong>de</strong> espelhar os i<strong>de</strong>ais<br />

<strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong> encarnan<strong>do</strong> seus valores morais e i<strong>de</strong>ológicos ou, <strong>em</strong> contraposição, po<strong>de</strong><br />

não se conformar com os padrões estabeleci<strong>do</strong>s e aparecer como uma figura <strong>em</strong> conflito e<br />

ruptura com estes padrões, “valorizan<strong>do</strong> o que a norma social rejeita e reprime” (p. 271). Este<br />

herói que se volta contra as normas vigentes <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> assume a condição <strong>de</strong> antiherói,<br />

uma vez julga<strong>do</strong> pelo código social pre<strong>do</strong>minante. Aguiar e Silva comenta ainda que o<br />

anti-herói é bastante comum <strong>em</strong> romances <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> romântico e pós-romântico e que a<br />

criação <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> protagonista revela as possíveis controvérsias entre o escritor e a<br />

socieda<strong>de</strong> <strong>em</strong> que ele está inseri<strong>do</strong>.<br />

32


As personagens secundárias são aquelas que representam o papel <strong>de</strong> suporte para o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento da narrativa. Estão estritamente ligadas aos protagonistas, <strong>de</strong> forma a<br />

tecer<strong>em</strong> uma verda<strong>de</strong>ira re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações. De acor<strong>do</strong> com Bourneuf & Ouellet (1976) a<br />

personag<strong>em</strong> central <strong>de</strong> um romance não <strong>de</strong>ve existir isoladamente, mas figurar num quadro<br />

on<strong>de</strong> há várias personagens que ag<strong>em</strong> umas sobre as outras e revelam-se umas às outras. Daí a<br />

importância das personagens secundárias que se projetam a partir <strong>do</strong> drama vivi<strong>do</strong> pelo<br />

protagonista da história.<br />

Quanto à apresentação, as personagens centrais <strong>de</strong> uma narrativa pod<strong>em</strong> obe<strong>de</strong>cer a mo<strong>do</strong>s<br />

diferentes. Na maioria das vezes a personag<strong>em</strong> principal é um hom<strong>em</strong> ou uma mulher <strong>de</strong><br />

qu<strong>em</strong> o romancista narra aventuras, fatos, <strong>de</strong>silusões, <strong>de</strong>curso <strong>de</strong> uma vida e conflitos<br />

amorosos. Ou o protagonista po<strong>de</strong> ser uma família inteira ou até mesmo uma legião <strong>de</strong><br />

homens; po<strong>de</strong> ainda sequer ser um indivíduo e sim uma cida<strong>de</strong> ou um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> local.<br />

Aguiar e Silva (1973) explica que a personag<strong>em</strong> central po<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar-se com algum<br />

el<strong>em</strong>ento físico ou com uma realida<strong>de</strong> sociológica, como, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> O Cortiço, <strong>de</strong><br />

Aloísio Azeve<strong>do</strong>, cujo espaço é um bairro miserável e turbulento que abriga proletaria<strong>do</strong>s na<br />

cida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

Geralmente, os romances <strong>do</strong> século XVIII e <strong>de</strong> quase to<strong>do</strong> o século XIX apresentam suas<br />

personagens por meio <strong>de</strong> um retrato que po<strong>de</strong> ser uma <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> seus aspectos físicos ou<br />

psicológicos que comumente aparece no início da obra. Um el<strong>em</strong>ento importante neste tipo <strong>de</strong><br />

caracterização é a menção ao nome das personagens, <strong>de</strong>clara<strong>do</strong> no princípio da <strong>de</strong>scrição, mas<br />

n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre isso acontece. Segun<strong>do</strong> Aguiar e Silva (1973) o nome funciona como um indício<br />

da relação intrínseca entre o significante (nome) e o significa<strong>do</strong> (conteú<strong>do</strong> moral, i<strong>de</strong>ológico,<br />

etc) da personag<strong>em</strong>. Entretanto, esta forma <strong>de</strong> apresentação <strong>de</strong>scritiva e <strong>de</strong>talhada da<br />

personag<strong>em</strong> “entrou <strong>em</strong> crise ainda na segunda meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XIX, com os romances <strong>de</strong><br />

Dostoievski” (p. 276), per<strong>de</strong>n<strong>do</strong> espaço para as teorias, as disputas i<strong>de</strong>ológicas, os rancores e<br />

esforços para solucionar conflitos das personagens <strong>de</strong> ficção.<br />

No final <strong>do</strong> século XIX e início <strong>do</strong> século XX, os romancistas se preocuparam mais <strong>em</strong><br />

apresentar personagens complexas, contraditórias, difíceis <strong>de</strong> ser<strong>em</strong> compreendidas<br />

linearmente. Esclarece Aguiar e Silva que o romance <strong>de</strong>ste perío<strong>do</strong> buscou não apenas<br />

apresentar personagens nestas condições ou <strong>de</strong>vassar o interior <strong>do</strong> subconsciente humano,<br />

33


mas também criar “personagens como que <strong>de</strong>scentradas, <strong>de</strong>stituídas <strong>de</strong> coerência ética e<br />

psicológica, instáveis e in<strong>de</strong>terminadas” (p.277).<br />

Outro ponto a ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> é o fato <strong>de</strong> que paralelamente a esta crise da personag<strong>em</strong><br />

romanesca, encontra-se a crise da própria noção filosófica <strong>de</strong> pessoa, diante das teorias da<br />

psicologia e da psicanálise, como as <strong>de</strong> Freud, por ex<strong>em</strong>plo. O romancista enten<strong>de</strong>u que a<br />

verda<strong>de</strong> sobre o hom<strong>em</strong> não podia ser <strong>de</strong>svendada transversalmente <strong>do</strong> retrato sóli<strong>do</strong> e <strong>de</strong><br />

contornos perfeitos <strong>de</strong> uma personag<strong>em</strong>, tal qual o mo<strong>de</strong>lo balzaquiano, por ex<strong>em</strong>plo. A<br />

figura dramática assim retratada configurava-se num “eu” social que se apresentava oculto<br />

por uma máscara e a verda<strong>de</strong>ira essência, isto é, o “eu” da personag<strong>em</strong> sofria conflitos e<br />

permanecia <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>.<br />

Aguiar e Silva (1973) esclarece sobre a situação <strong>em</strong> que se encontrava o hom<strong>em</strong> <strong>de</strong>ste perío<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>terioração da personag<strong>em</strong>, retratada <strong>em</strong> pormenores:<br />

Esta crise da noção <strong>de</strong> pessoa, imediatamente explicável pela influência<br />

exercida <strong>em</strong> largos sectores intelectuais e artísticos pela psicanálise e pela<br />

psicologia das profundida<strong>de</strong>s, t<strong>em</strong> uma matriz mais profunda e <strong>de</strong>ve situarse<br />

num contexto mais amplo: trata-se <strong>de</strong> uma conseqüência e <strong>de</strong> um reflexo<br />

da crise i<strong>de</strong>ológica, ética e política que v<strong>em</strong> minan<strong>do</strong> a socieda<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal<br />

cont<strong>em</strong>porânea – crise que alcançou o paroxismo com a socieda<strong>de</strong><br />

neocapitalista <strong>do</strong>s nossos dias, <strong>do</strong>minada por uma tecnologia cada vez mais<br />

tirânica, regida pelo i<strong>de</strong>al <strong>do</strong> consumo crescente <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>rias e serviços e<br />

comandada por um capital cada vez mais anônimo, mais i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> com<br />

gigantescos <strong>em</strong>preendimentos técnico-econômicos <strong>de</strong> caráter multinacional<br />

e, por isso mesmo, cada vez mais brutalmente <strong>de</strong>sumano (p. 278).<br />

Enten<strong>de</strong>-se que não é difícil apreen<strong>de</strong>r esse fenômeno, pois continua vigente nos dias <strong>de</strong> hoje.<br />

A pressa, a correria, a velocida<strong>de</strong> no coman<strong>do</strong> das ações <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> atual afasta a auto-análise.<br />

O hom<strong>em</strong> mo<strong>de</strong>rno se apóia na sua competência, nos múltiplos afazeres, na <strong>do</strong>ação<br />

espontânea e completa a um trabalho <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> com o máximo esforço pessoal. O íntimo,<br />

as <strong>em</strong>oções, os conflitos internos ficam <strong>em</strong> segun<strong>do</strong> plano; apenas aparec<strong>em</strong> <strong>em</strong> <strong>de</strong>staque<br />

quan<strong>do</strong> se tornam sinônimos <strong>de</strong> estresse. A <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>talhada <strong>de</strong> uma personag<strong>em</strong>, <strong>de</strong> forma<br />

a retirar o véu que encobre suas atitu<strong>de</strong>s, acabou por cair <strong>em</strong> <strong>de</strong>suso, nas narrativas<br />

cont<strong>em</strong>porâneas, abrin<strong>do</strong> espaço à <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> lutas e <strong>em</strong>bates sociais.<br />

O resulta<strong>do</strong> mais marcante <strong>de</strong>ssa crise <strong>de</strong> <strong>de</strong>terioração da personag<strong>em</strong> ocorreu no nouveau<br />

roman, levan<strong>do</strong> ao extr<strong>em</strong>o a <strong>de</strong>generação da personag<strong>em</strong> como ser fictício repleto <strong>de</strong><br />

34


significa<strong>do</strong>s. Ela é <strong>de</strong>sprovida <strong>do</strong>s principais el<strong>em</strong>entos que a i<strong>de</strong>ntificavam, como a<br />

fisionomia, a crônica familiar e as minúcias <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> caráter, apresentan<strong>do</strong>-se s<strong>em</strong> o<br />

nome próprio, el<strong>em</strong>ento fundamental da particularização <strong>do</strong> indivíduo. Como ex<strong>em</strong>plos<br />

pod<strong>em</strong> ser cita<strong>do</strong>s o herói <strong>de</strong> O castelo, <strong>de</strong> Franz Kafka, <strong>em</strong> que é <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> apenas por<br />

“K.”; a personag<strong>em</strong> central <strong>de</strong> Finnegans que James Joyce <strong>de</strong>nomina H.C.E.; e Clau<strong>de</strong><br />

Simon, na La bataille <strong>de</strong> Pharsale, <strong>de</strong>nomina 0 para o protagonista, que se apresenta ora<br />

hom<strong>em</strong>, ora mulher. Neste último ex<strong>em</strong>plo, não se esclarece o 0 (“zero” ou uma letra <strong>do</strong><br />

alfabeto).<br />

Enten<strong>de</strong>-se que, imerso nesta socieda<strong>de</strong> tecnoburocratizada, on<strong>de</strong> o hom<strong>em</strong> é carente <strong>de</strong><br />

motivações éticas e i<strong>de</strong>ológicas, o romance seria incapaz <strong>de</strong> retratar personagens com reflexos<br />

<strong>de</strong> valores das socieda<strong>de</strong>s antece<strong>de</strong>ntes. É compreensível que as personagens sejam<br />

apresentadas nos mol<strong>de</strong>s da socieda<strong>de</strong> <strong>em</strong> que o escritor se insere, refletin<strong>do</strong>, através da forma<br />

<strong>de</strong> sua apresentação, as características inerentes ao hom<strong>em</strong> mo<strong>de</strong>rno, com seus conflitos e<br />

lutas interiores.<br />

Chega-se, aqui, a um outro ponto fundamental: a construção da personag<strong>em</strong>. De que maneira<br />

um autor concebe suas personagens, ou ainda, como o romancista constrói esses seres que<br />

circularão na sua história narrada?<br />

Aguiar e Silva (1973) apresenta a proposta <strong>de</strong> E. M. Forster 8 , <strong>em</strong> que as personagens <strong>do</strong><br />

romance pod<strong>em</strong> ser planas ou re<strong>do</strong>ndas. As personagens planas são aquelas que apresentam<br />

características comportamentais padronizadas durante toda a narrativa. São traçadas por um<br />

fio ininterrupto, s<strong>em</strong> oscilações aparentes, o que equivale a dizer que não apresentam<br />

mudanças no <strong>de</strong>curso <strong>do</strong> romance. São previsíveis <strong>em</strong> suas atitu<strong>de</strong>s; não têm o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

surpreen<strong>de</strong>r o leitor. Em inúmeros romances, tend<strong>em</strong> a constituir-se num tipo, numa<br />

caricatura e, por vezes, apresentam perfis cômicos. Ocorre que, no <strong>de</strong>senvolver da narrativa,<br />

essas personagens não são influenciadas pelos fatos a ponto <strong>de</strong> sofrer<strong>em</strong> alterações <strong>de</strong> caráter.<br />

O autor esclarece que elas não conhec<strong>em</strong> as transformações íntimas que po<strong>de</strong>riam torná-las<br />

individualizadas e passíveis <strong>de</strong> anular seu aspecto típico. Para o seu cria<strong>do</strong>r, ao caracterizá-las<br />

inser<strong>em</strong>-se imediatamente na narração e apresentam um comportamento fixo <strong>do</strong> início ao<br />

final da obra. São personagens propensas a representar<strong>em</strong> papéis secundários.<br />

8 E.M. Forster, Aspeetti Del romanzo, Milano, Il Saggiatore, 1963, apud AGUIAR E SILVA, 1973.<br />

35


As personagens re<strong>do</strong>ndas, por sua vez, apresentam-se contrariamente. Elas exig<strong>em</strong> <strong>do</strong><br />

romancista uma acurada atenção, pois <strong>de</strong>v<strong>em</strong> oferecer uma complexida<strong>de</strong> comportamental<br />

que d<strong>em</strong>anda trabalho e esforço na caracterização <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os seus aspectos. Estas<br />

personagens apresentam uma pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> traços que as distingu<strong>em</strong> das personagens planas<br />

e, <strong>em</strong> conseqüência, têm o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>r o leitor com suas reações aos fatos narra<strong>do</strong>s<br />

na diegese. A estas personagens o autor confere uma <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> e riqueza <strong>de</strong> sentimentos,<br />

fazen<strong>do</strong>-as progredir ou regredir face aos conflitos que viv<strong>em</strong> na história, evolucionam na<br />

narrativa numa i<strong>de</strong>ntificação mais evi<strong>de</strong>nte com o ser humano. Segun<strong>do</strong> Aguiar e Silva (1973)<br />

a personag<strong>em</strong> re<strong>do</strong>nda consegue fundir a unicida<strong>de</strong> <strong>do</strong> indivíduo com a sua significação<br />

genérica no plano humano. Em outras palavras, ela une o que há <strong>de</strong> mais individual e<br />

intimista com os possíveis padrões <strong>de</strong> comportamento social retrata<strong>do</strong>s na história narrada da<br />

qual é parte integrante. Particularmente, são as mais indicadas aos papéis principais num<br />

romance.<br />

Discutiu-se até aqui os aspectos narrativos que envolv<strong>em</strong> a personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> ficção e as formas<br />

mais freqüentes <strong>de</strong> sua apresentação, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-se como a categoria mais relevante na<br />

construção da narrativa romanesca. Os seus aspectos <strong>de</strong> formação serão, agora, aborda<strong>do</strong>s<br />

através da inserção da personag<strong>em</strong> na realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> leitor, por meio da realida<strong>de</strong> suposta pela<br />

narrativa.<br />

A personag<strong>em</strong> exerce sobre o leitor um <strong>de</strong>slumbramento, às vezes <strong>de</strong>senfrea<strong>do</strong>, <strong>do</strong>minan<strong>do</strong> o<br />

seu imaginário. A partir <strong>de</strong>sta relação cria-se um universo que po<strong>de</strong> influenciar na vida real<br />

<strong>do</strong>s leitores, pela aceitação ou negação <strong>de</strong> comportamentos, reações e sentimentos surgi<strong>do</strong>s<br />

<strong>em</strong> <strong>de</strong>corrência das aventuras vividas pelas personagens. Essa i<strong>de</strong>ntificação ocorre,<br />

principalmente, pelo fato <strong>de</strong> as personagens ficcionais instituír<strong>em</strong> s<strong>em</strong>elhanças com pessoas<br />

reais. Povoan<strong>do</strong> a imaginação <strong>do</strong> leitor, as personagens faz<strong>em</strong> com que este receba as<br />

impressões da leitura e as incorpore à própria vida.<br />

Durante o ato da leitura <strong>de</strong> um romance ou novela, ocorre uma interação entre o mun<strong>do</strong> real<br />

<strong>do</strong> leitor com o mun<strong>do</strong> representativo da ficção. Essa interação provoca m<strong>em</strong>órias,<br />

l<strong>em</strong>branças, <strong>em</strong>oções, sensações e até sentimentos, quan<strong>do</strong> a i<strong>de</strong>ntificação entre personag<strong>em</strong> e<br />

leitor é configurada. Cria-se, neste processo, a impressão <strong>de</strong> que tu<strong>do</strong> o que está escrito<br />

realmente po<strong>de</strong>ria ter aconteci<strong>do</strong> com alguém e, neste instante, alarga-se a proximida<strong>de</strong> da<br />

personag<strong>em</strong> com a vida real, permitin<strong>do</strong> a livre imaginação. De certa forma, a maior ou<br />

36


menor verossimilhança alcançada pela obra <strong>de</strong>termina esta impressão no leitor. Tal sensação<br />

ocorre na leitura <strong>de</strong> obras cujas histórias não sejam fantásticas; a i<strong>de</strong>ntificação <strong>do</strong> leitor com a<br />

personag<strong>em</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da concretização que sente <strong>em</strong> relação ao ambiente relata<strong>do</strong> no livro:<br />

quanto mais próximo <strong>do</strong> real, mais forte essa sensação <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>.<br />

As obras cujos conteú<strong>do</strong>s são mais irreais, por trazer<strong>em</strong> el<strong>em</strong>entos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> sobrenatural,<br />

ativam a imaginação <strong>do</strong> leitor <strong>em</strong> outra direção, que não a <strong>do</strong> seu mun<strong>do</strong> real. Resi<strong>de</strong> neste<br />

processo a busca da fruição através <strong>de</strong> outra dimensão, que por sua vez, po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>scrita ou<br />

induzida por uma personag<strong>em</strong>. As personagens relacionam-se com os leitores. Existe uma<br />

troca <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s, durante o processo <strong>de</strong> leitura, que visa a produzir mais senti<strong>do</strong>s. Essa<br />

abordag<strong>em</strong> que enfoca a relação existente entre o leitor e a personag<strong>em</strong> prioriza o diálogo<br />

entre essas duas esferas. Antônio Cândi<strong>do</strong> e Anatol Rosenfeld são estudiosos que formulam<br />

uma <strong>de</strong>signação <strong>de</strong> personag<strong>em</strong> como o meio <strong>de</strong> manifestação <strong>de</strong> certa relação entre o ser<br />

vivo e o ser fictício, fundamenta<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> romance.<br />

1.3.1 Personag<strong>em</strong>: aspectos que estreitam a relação realida<strong>de</strong>-ficção<br />

Candi<strong>do</strong> (1985) reflete, primeiramente, que não há como isolar a importância da personag<strong>em</strong><br />

num romance. O enre<strong>do</strong> sobrevive graças às personagens e estas viv<strong>em</strong> no enre<strong>do</strong>. Há aqui<br />

uma relação <strong>de</strong> simbiose. A inter<strong>de</strong>pendência é favorável a ambos os el<strong>em</strong>entos que<br />

exprim<strong>em</strong> a essência <strong>do</strong> romance, “a visão da vida que <strong>de</strong>corre <strong>de</strong>le” (p. 54), as idéias e os<br />

significa<strong>do</strong>s que lhe imprim<strong>em</strong> vigor. Portanto, o estudioso dispõe como os três principais<br />

el<strong>em</strong>entos da <strong>de</strong>senvolução novelística o enre<strong>do</strong>, as personagens e as idéias. Três el<strong>em</strong>entos<br />

indissociáveis <strong>em</strong> romances b<strong>em</strong> organiza<strong>do</strong>s, <strong>em</strong> que o primeiro e o segun<strong>do</strong> representam o<br />

campo da matéria e o terceiro representa o significa<strong>do</strong>, os senti<strong>do</strong>s.<br />

Para Cândi<strong>do</strong> (1985), a personag<strong>em</strong> é, s<strong>em</strong> dúvida, um ser fictício, haven<strong>do</strong> nesta afirmação<br />

um para<strong>do</strong>xo. Como algo que não existe po<strong>de</strong> ser? Entretanto, a criação literária baseia-se<br />

neste para<strong>do</strong>xo e o probl<strong>em</strong>a da verossimilhança no romance <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />

ser fictício simbolizar a realida<strong>de</strong>. Desta forma, o pesquisa<strong>do</strong>r assegura que há muitas<br />

afinida<strong>de</strong>s e divergências entre os <strong>do</strong>is seres e que estas são <strong>de</strong> extr<strong>em</strong>a relevância na<br />

produção <strong>do</strong> sentimento <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, ou seja, a verossimilhança.<br />

37


Como seres humanos, o conhecimento direto das pessoas levanta um probl<strong>em</strong>a <strong>de</strong> difícil<br />

solução: a continuida<strong>de</strong> da percepção física e a <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> da percepção espiritual.<br />

Cândi<strong>do</strong> (1985) explica que a primeira fornece os fundamentos <strong>de</strong> nosso conhecimento, pois<br />

<strong>de</strong>pend<strong>em</strong>os, antes, <strong>de</strong> um contato físico e que a segunda se mostra multifacetada, revelan<strong>do</strong><br />

diferentes mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> ser ou <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s humanas, muitas vezes contraditórias. O ser humano<br />

não é capaz <strong>de</strong> abranger totalmente a personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outr<strong>em</strong> com a mesma uniformida<strong>de</strong><br />

com que po<strong>de</strong> aperceber-se da configuração exterior. Então, a noção que um ser t<strong>em</strong> <strong>de</strong> outro<br />

é incompleta, pois não atinge os níveis espirituais da percepção, <strong>de</strong>stinan<strong>do</strong> a este<br />

conhecimento o caráter <strong>de</strong> fragmentário.<br />

Por natureza, os seres são misteriosos e, conseqüent<strong>em</strong>ente imprevisíveis. O máximo <strong>de</strong><br />

noção que um ser t<strong>em</strong> <strong>de</strong> outro é capta<strong>do</strong> por fragmentos <strong>de</strong> diálogos, <strong>de</strong> convivência e <strong>de</strong><br />

observação direta ou indireta; é o suficiente para o estabelecimento <strong>de</strong> relações e <strong>de</strong> condutas<br />

diante <strong>de</strong> circunstâncias da vida. No entanto, este parco conhecimento não é completo e sim<br />

oscilante e <strong>de</strong>scontínuo. Parte daí o esforço que a psicologia mo<strong>de</strong>rna t<strong>em</strong> feito <strong>em</strong> prol <strong>de</strong><br />

investigar o subconsciente humano, na tentativa <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r e explicar o que há <strong>de</strong><br />

extraordinário nas pessoas que, freqüent<strong>em</strong>ente, surpreend<strong>em</strong>-se, apesar <strong>de</strong> julgar<strong>em</strong> se<br />

conhecer.<br />

Cândi<strong>do</strong> (1985) ainda comenta que muito antes <strong>de</strong>ssas investigações da psicologia mo<strong>de</strong>rna,<br />

os escritores já <strong>de</strong>notavam certa intuição quanto à complexida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s seres, haja vista as<br />

personagens shakespearianas, <strong>do</strong>tadas <strong>de</strong> características inusitadas e surpreen<strong>de</strong>ntes, <strong>de</strong> difícil<br />

apreensão por parte <strong>do</strong>s leitores ou especta<strong>do</strong>res. As novas pesquisas na área da psicologia<br />

humana permitiram uma abordag<strong>em</strong> mais sist<strong>em</strong>ática <strong>de</strong>ssa visão no campo da literatura.<br />

Muitos escritores, como Proust, Joyce, Kafka, Piran<strong>de</strong>llo e outros, refletiram <strong>em</strong> suas obras a<br />

dificulda<strong>de</strong> <strong>em</strong> <strong>de</strong>svendar a coerência e a unida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s seres retrata<strong>do</strong>s e isso, por vezes, se<br />

traduziu na “forma <strong>de</strong> incomunicabilida<strong>de</strong> nas relações” (1985, p. 57). De certa maneira,<br />

algumas tendências filosóficas e psicológicas contribuíram, direta ou indiretamente, para o<br />

<strong>de</strong>scortinamento das aparências <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> na socieda<strong>de</strong>, provocan<strong>do</strong> uma revolução no<br />

conceito <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>, principalmente no tocante à relação da pessoa com o seu meio.<br />

Dois casos bastante comuns são o marxismo e a psicanálise, que se voltaram para a concepção<br />

<strong>de</strong> hom<strong>em</strong> e, por conseguinte, <strong>de</strong> personag<strong>em</strong>, influencian<strong>do</strong> até mesmo a produção literária,<br />

<strong>em</strong> seus varia<strong>do</strong>s gêneros.<br />

38


Abordan<strong>do</strong> o caráter fragmentário da personag<strong>em</strong>, ele esclarece que o conhecimento que um<br />

autor t<strong>em</strong> sobre a personag<strong>em</strong> é limita<strong>do</strong>, pois utiliza os mesmos padrões <strong>de</strong> observação com<br />

que elabora o conhecimento <strong>de</strong> outros seres humanos. Esta característica é instituída<br />

racionalmente pelo escritor, mas, na vida real é uma condição inerente ao ser: não é da<strong>do</strong> ao<br />

hom<strong>em</strong> conhecer por completo a essência <strong>de</strong> outro, n<strong>em</strong> mesmo saber o que lhe acontecerá<br />

até o fim <strong>de</strong> sua vida. Na criação <strong>de</strong> uma personag<strong>em</strong>, cabe somente ao escritor <strong>de</strong>cidir seu<br />

<strong>de</strong>stino e suas estruturas <strong>em</strong>ocionais.<br />

Em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong>sta capacida<strong>de</strong> <strong>do</strong> escritor, <strong>de</strong> manipular as personalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> suas<br />

personagens, po<strong>de</strong> ele organizar uma lógica b<strong>em</strong> mais coesa e coerente, menos instável <strong>do</strong><br />

que a lógica que rege a conduta humana. Assim, no romance, o autor traça uma linha <strong>de</strong><br />

coerência relativa às personagens, contornan<strong>do</strong> e <strong>de</strong>signan<strong>do</strong> os seus mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> ser. O que é<br />

variável neste aspecto são as interpretações diversas que os leitores pod<strong>em</strong> ter <strong>de</strong>ssas<br />

personagens. Por isso, afirma que elas são mais lógicas e coesas <strong>do</strong> que os seres humanos. As<br />

gran<strong>de</strong>s personagens <strong>de</strong> ficção exerc<strong>em</strong> certa força nos leitores porque suas caracterizações<br />

<strong>de</strong>pend<strong>em</strong> <strong>de</strong> uma estruturação uniforme que só o escritor po<strong>de</strong> lhes conferir; é graças aos<br />

recursos <strong>de</strong> pormenorização que o escritor consegue criar a impressão <strong>de</strong> que sua criação é um<br />

ser ilimita<strong>do</strong>, in<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>, contraditório tal qual uma pessoa real. Decorre <strong>de</strong>sta capacida<strong>de</strong><br />

a apreensão <strong>do</strong> leitor quanto à personag<strong>em</strong> como um to<strong>do</strong> coeso, <strong>em</strong> sua imaginação. Na<br />

verda<strong>de</strong>, ela parece mais lógica <strong>do</strong> que um ser real.<br />

Cândi<strong>do</strong> (1985) expõe que houve uma evolução técnica <strong>do</strong> romance e que a construção das<br />

personagens sofreu modificações com o passar <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po. Um <strong>do</strong>s aspectos mais marcantes<br />

nesta evolução foi o esforço <strong>em</strong>prega<strong>do</strong> na composição <strong>de</strong> seres coerentes, baseada na<br />

percepção fragmentária <strong>de</strong> que dispõe o hom<strong>em</strong> para conhecer ao outro. No <strong>de</strong>senvolver da<br />

técnica <strong>de</strong> caracterização <strong>de</strong> personagens, logo surgiram duas famílias <strong>de</strong> personagens que, no<br />

século XVIII, foram <strong>de</strong>nominadas personagens <strong>de</strong> costumes e personagens <strong>de</strong> natureza. É<br />

possível situar esta terminologia com a atual <strong>de</strong> Forster, <strong>em</strong> que a personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> costumes se<br />

i<strong>de</strong>ntifica com a personag<strong>em</strong> plana e a personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> natureza t<strong>em</strong> as mesmas características<br />

que a personag<strong>em</strong> re<strong>do</strong>nda.<br />

Forster (1949, apud CANDIDO, 1985) sugere uma diferenciação bastante simples <strong>em</strong> seu<br />

livro Aspects of the novel: a comparação direta entre o Homo Sapiens com o Homo Fictus.<br />

Segun<strong>do</strong> o teórico, o Homo Fictus é e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, não é equivalente ao Homo Sapiens,<br />

39


pois vive conforme os mesmos parâmetros <strong>de</strong> ação e sentimentalida<strong>de</strong>, porém <strong>em</strong> proporções<br />

diferenciadas. A personag<strong>em</strong> aparece pouco através <strong>de</strong> suas s<strong>em</strong>elhanças fisiológicas com o<br />

ser humano e sim, na maioria das vezes, é apresentada por suas atitu<strong>de</strong>s e reações diante <strong>de</strong><br />

fatos que vivencia e, <strong>de</strong>sta forma, aparece viven<strong>do</strong> muito mais intensamente certas relações<br />

humanas, especialmente as amorosas. Para o leitor, a importância da personag<strong>em</strong> repousa na<br />

possibilida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>sfruta <strong>de</strong> conhecê-la a fun<strong>do</strong> e não apenas superficialmente, como ocorre<br />

nas relações <strong>de</strong> um ser vivo.<br />

Outro probl<strong>em</strong>a estuda<strong>do</strong> por Candi<strong>do</strong> (1985) é a impressão <strong>de</strong> a personag<strong>em</strong> ser um vivente,<br />

<strong>de</strong> ass<strong>em</strong>elhar-se a uma pessoa, <strong>de</strong> l<strong>em</strong>brar um ser humano. Para atingir este objetivo,<br />

questiona se po<strong>de</strong>ria transplantar a personag<strong>em</strong> da realida<strong>de</strong> para o romance. Esclarece que<br />

não é possível, uma vez que o hom<strong>em</strong> não seria capaz <strong>de</strong> absorver to<strong>do</strong> o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> ser <strong>de</strong> uma<br />

pessoa para transformá-la <strong>em</strong> uma personag<strong>em</strong>. Se assim o fizesse, estaria cometen<strong>do</strong> plágio,<br />

anulan<strong>do</strong> a criação artística e a cópia, por sua vez, não permitiria o conhecimento específico e<br />

completo, que é a essência e o encanto da ficção. Portanto, o escritor <strong>de</strong>ve configurar que a<br />

personag<strong>em</strong> não é exatamente o mistério <strong>do</strong> ser humano, mas uma interpretação <strong>de</strong>ste<br />

mistério.<br />

Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> tais proposições, chega-se à conclusão <strong>de</strong> que um escritor po<strong>de</strong> se valer <strong>de</strong><br />

muitos recursos para formar o processo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> uma personag<strong>em</strong>. Se ela não po<strong>de</strong><br />

ser inventada ou produzida é, <strong>de</strong> certa forma, copiada, inventada, produzida, observada,<br />

analisada. O resulta<strong>do</strong> é um conjunto <strong>de</strong> características mistas que provêm <strong>de</strong> múltiplas<br />

inspirações, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a observação direta ou indireta <strong>de</strong> alguém conheci<strong>do</strong> ou <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong> até a<br />

pura e real imaginação <strong>de</strong> uma personalida<strong>de</strong> criada (e existente) na mente <strong>de</strong> um escritor.<br />

Torna-se difícil estabelecer normas e padrões para uma operação que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, única e<br />

exclusivamente, das escolhas e idéias <strong>do</strong> cria<strong>do</strong>r; s<strong>em</strong> dúvida, é um processo individual.<br />

Contu<strong>do</strong>, Candi<strong>do</strong> (1985) esclarece que o princípio que rege o aproveitamento <strong>do</strong> real, na<br />

composição <strong>de</strong> uma personag<strong>em</strong> é o da modificação da realida<strong>de</strong> e não o da imitação. Um<br />

autor não é capaz <strong>de</strong> reproduzir a vida, n<strong>em</strong> <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> inteira, n<strong>em</strong> <strong>de</strong> um único<br />

indivíduo; na verda<strong>de</strong>, ele seleciona características da personag<strong>em</strong> criada e, ao executar esta<br />

etapa, afasta-a da realida<strong>de</strong>, inserin<strong>do</strong>-a num mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong> seu, no qual as personagens <strong>de</strong><br />

ficção obe<strong>de</strong>c<strong>em</strong> a uma lei própria. São concebidas <strong>de</strong> forma clara, com contornos <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s,<br />

40


diferent<strong>em</strong>ente <strong>de</strong> como a vida real se apresenta, incumbin<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> preestabelecer uma lógica<br />

que as torna padronizadas e, por isso, eficientes.<br />

Candi<strong>do</strong> inicia a sua investigação no ponto para<strong>do</strong>xal (a personag<strong>em</strong> é um ser fictício). A<br />

proposição <strong>de</strong> a personag<strong>em</strong> ser uma cópia <strong>do</strong> real po<strong>de</strong> ser vislumbrada no <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ser fiel<br />

à realida<strong>de</strong>, um <strong>do</strong>s el<strong>em</strong>entos básicos para a construção <strong>de</strong> uma personag<strong>em</strong>. Partin<strong>do</strong> <strong>de</strong>ste<br />

pressuposto, esclarece que a criação oscila entre estas duas possibilida<strong>de</strong>s: “ou é uma<br />

transposição fiel <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los, ou é uma invenção totalmente imaginária” (p. 70). Pon<strong>de</strong>ra que<br />

estes <strong>do</strong>is pólos são os limites da criação literária novelística, no que se refere à personag<strong>em</strong>,<br />

e que cada romancista se vale <strong>de</strong> combinações variadas respeitan<strong>do</strong> estes limites. Este v<strong>em</strong> a<br />

ser o traço distintivo que o <strong>de</strong>fine, b<strong>em</strong> como a cada uma <strong>de</strong> suas personagens. São estas<br />

consi<strong>de</strong>rações que tornam o estu<strong>do</strong> da orig<strong>em</strong> da personag<strong>em</strong> interessante para a técnica <strong>de</strong><br />

caracterização e também para a relação que há entre criação e realida<strong>de</strong>, verda<strong>de</strong>ira essência<br />

da ficção.<br />

A coerência interna é, portanto, um ponto <strong>de</strong>cisivo nesse estu<strong>do</strong>. O fato <strong>de</strong> a personag<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r das intenções e escolhas <strong>de</strong> um autor sugere que a observação da realida<strong>de</strong> apenas<br />

transmite a sensação da verda<strong>de</strong> no romance e que, para que esta realmente se instale, to<strong>do</strong>s<br />

os el<strong>em</strong>entos da narrativa <strong>de</strong>vam ajustar-se apropriadamente. Assim sen<strong>do</strong>, a verda<strong>de</strong> da<br />

personag<strong>em</strong> não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, exclusivamente, da relação com a vida ou com a sua orig<strong>em</strong>, mas,<br />

sobretu<strong>do</strong>, da função que exerce na estrutura <strong>do</strong> romance. A personag<strong>em</strong> e tu<strong>do</strong> o que lhe diz<br />

respeito é menos um probl<strong>em</strong>a <strong>de</strong> analogia com a realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> que <strong>de</strong> organização interna.<br />

Deste mo<strong>do</strong>, a verossimilhança termina por <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r da estruturação estética <strong>do</strong> romance.<br />

Muito mais importante se faz o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> romance que envereda pelos caminhos da<br />

composição e não da comparação com a realida<strong>de</strong> exterior. Mesmo que o conteú<strong>do</strong> diegético<br />

narra<strong>do</strong> seja uma cópia fiel da realida<strong>de</strong>, só haverá o sentimento <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> para o leitor se a<br />

obra for organizada segun<strong>do</strong> uma estrutura coerente. Assim, a vida <strong>de</strong> uma personag<strong>em</strong> não<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> apenas <strong>de</strong> sua inserção na narrativa, mas da relação que estabelece com os outros<br />

el<strong>em</strong>entos: outros personagens, lugares, duração t<strong>em</strong>poral, ações, idéias. Por isso a<br />

caracterização <strong>de</strong>ve estar sujeita a uma escolha e distribuição conveniente <strong>do</strong>s traços<br />

expressivos das personagens que possam se coadunar na composição geral <strong>do</strong> romance.<br />

41


A idéia que as pessoas geralmente têm sobre algo que parece inverossímil <strong>em</strong> uma leitura é a<br />

<strong>de</strong> que um fato ou um ato seria impossível <strong>de</strong> acontecer na vida real. No entanto, Cândi<strong>do</strong><br />

(1985) contra-argumenta que na vida tu<strong>do</strong> é praticamente possível. No romance a lógica não<br />

obe<strong>de</strong>ce à anarquia própria da vida, pois a estrutura impõe limites, o que resulta no para<strong>do</strong>xo<br />

<strong>de</strong> as personagens ser<strong>em</strong> menos livres que os seres humanos e a narrativa ser compelida a se<br />

apresentar mais coerente <strong>do</strong> que a vida. “O que julgamos inverossímil, segun<strong>do</strong> padrões da<br />

vida corrente, é, na verda<strong>de</strong>, incoerente, <strong>em</strong> face da estrutura <strong>do</strong> livro” (p. 76-77).<br />

1.3.2 Personag<strong>em</strong>: aspectos que distanciam a relação realida<strong>de</strong>-ficção<br />

Os aspectos acerca das limitações entre personag<strong>em</strong> e pessoa são enfoca<strong>do</strong>s por Anatol<br />

Rosenfeld (1985). É importante ressaltar que o pesquisa<strong>do</strong>r partilha <strong>de</strong> várias idéias já<br />

propostas por Antônio Candi<strong>do</strong>, principalmente quanto à realida<strong>de</strong> e ficção e à importância<br />

revelada pela função da personag<strong>em</strong> na estrutura narrativa. Em Rosenfeld há uma maior<br />

preocupação quanto ao estabelecimento <strong>do</strong> caráter fictício da literatura e sua inclusão na<br />

narrativa romanesca, b<strong>em</strong> como o papel <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque da personag<strong>em</strong> como o el<strong>em</strong>ento mais<br />

atuante no gênero. Outro ponto <strong>de</strong> convergência entre os <strong>do</strong>is estudiosos é o caráter<br />

fragmentário <strong>do</strong> conhecimento humano na relação <strong>de</strong> um ser com outro, mostran<strong>do</strong> a intensa<br />

limitação <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> na observação <strong>do</strong> universo exterior.<br />

Rosenfeld (1985) inicia suas especulações abordan<strong>do</strong> a literatura através <strong>do</strong> caráter fictício ou<br />

imaginário. Argumenta que um <strong>do</strong>s aspectos distintivos da literatura refere-se a este caráter e<br />

t<strong>em</strong> a vantag<strong>em</strong> <strong>de</strong> basear-se <strong>em</strong> momentos <strong>de</strong> lógica literária, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser verifica<strong>do</strong>s com<br />

certo rigor, s<strong>em</strong> necessariamente precisar recorrer à valorização estética. Ressalta que o<br />

critério <strong>do</strong> caráter ficcional não é capaz, sozinho, <strong>de</strong> <strong>de</strong>limitar o campo da literatura num<br />

senti<strong>do</strong> mais restrito. A partir da existência <strong>de</strong>ste caráter da obra literária ficcional, o autor<br />

expõe que o mun<strong>do</strong> retrata<strong>do</strong> num romance, por ex<strong>em</strong>plo, se constitui num universo <strong>de</strong><br />

objectualida<strong>de</strong>s imaginárias e intencionais, constituídas pelas orações. “Este mun<strong>do</strong> fictício<br />

ou mimético, que freqüent<strong>em</strong>ente reflete momentos seleciona<strong>do</strong>s e transfigura<strong>do</strong>s da realida<strong>de</strong><br />

<strong>em</strong>pírica exterior à obra, torna-se, portanto, representativo para algo além <strong>de</strong>le,<br />

principalmente além da realida<strong>de</strong> <strong>em</strong>pírica, mas imanente à obra” (p. 15).<br />

Justamente por ser imanente à obra, a representação <strong>do</strong> real através <strong>do</strong> imaginário faz surgir<br />

questionamentos quanto à verda<strong>de</strong> ficcional. Em se tratan<strong>do</strong> <strong>de</strong> literatura, essa verda<strong>de</strong> t<strong>em</strong><br />

42


significa<strong>do</strong> diverso. Relaciona-se mais à questão da autenticida<strong>de</strong> ou sincerida<strong>de</strong> <strong>do</strong> autor <strong>de</strong><br />

ficção <strong>do</strong> que com o próprio senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> real, inerente aos fatos ocorri<strong>do</strong>s com os seres<br />

humanos. Desta forma, essa verda<strong>de</strong> refere-se à atitu<strong>de</strong> subjetiva <strong>do</strong>s escritores ou à<br />

verossimilhança, isto é, a a<strong>de</strong>quação ao que po<strong>de</strong>ria ter aconteci<strong>do</strong> e não ao que realmente<br />

aconteceu. Rosenfeld (1985) afirma que não seria correto aplicar critérios <strong>de</strong> veracida<strong>de</strong><br />

cognoscitiva a enuncia<strong>do</strong>s fictícios. Pareceriam falsos e essa visão <strong>de</strong> falsida<strong>de</strong> não se aplica<br />

as esferas que, <strong>em</strong>bora inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, sejam tão distintas.<br />

Destaca o fato <strong>de</strong> que os romances buscam, através da energia expressiva da linguag<strong>em</strong>,<br />

particularizar, concretizar e individualizar os contextos representacionais (objectuais)<br />

mediante aspectos varia<strong>do</strong>s e uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes e minúcias que pretend<strong>em</strong><br />

revestir <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> uma situação que é imaginária. Precisamente, é esta aparência <strong>de</strong><br />

realida<strong>de</strong> que caracteriza a intencionalida<strong>de</strong> ficcional. Devi<strong>do</strong> à inserção <strong>de</strong> tantos <strong>de</strong>talhes, à<br />

veracida<strong>de</strong> <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s insignificantes, à coerência interna <strong>do</strong>s fatos, à lógica <strong>do</strong>s móbeis das<br />

personagens e ao caráter causal <strong>do</strong>s acontecimentos, a verossimilhança se instala <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

imaginário para o real. Note-se que, mesmo um texto que não tenha to<strong>do</strong>s esses el<strong>em</strong>entos,<br />

ainda assim po<strong>de</strong> alcançar força <strong>de</strong> convicção; haja vista textos <strong>de</strong> conteú<strong>do</strong> fantástico ou<br />

alegórico que se impõ<strong>em</strong> como reais.<br />

Segun<strong>do</strong> Rosenfeld (1985), a personag<strong>em</strong> é a criatura que possibilita o a<strong>de</strong>nsamento e a<br />

cristalização <strong>do</strong> imaginário na mente <strong>do</strong>s leitores. A personag<strong>em</strong> torna nítida a ficção no seu<br />

termo mais literal: aquilo que po<strong>de</strong>ria acontecer e não o retrato <strong>de</strong> algo que aconteceu. O autor<br />

compara esse caráter da personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> ficção com a personag<strong>em</strong> lírica, que exprime esta<strong>do</strong>s<br />

e não contornos marcantes. Já a personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> romance é <strong>de</strong>finida pelo efeito contínuo <strong>do</strong><br />

t<strong>em</strong>po sobre os fatos e as ações, d<strong>em</strong>onstran<strong>do</strong> seus aspectos sobrepujantes através <strong>do</strong><br />

conjunto <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s e aventuras que <strong>de</strong>senvolve durante a narração. Por isso, o teórico<br />

conclui que a personag<strong>em</strong> é a manifestação mais viva da ficção e, por conseguinte, a sua<br />

função é mais sobrelevante na literatura narrativa.<br />

Salienta também o aspecto lingüístico que <strong>de</strong>fine a narrativa literária. O discurso da narrativa<br />

permite uma liberda<strong>de</strong> ao escritor que não ocorre, por ex<strong>em</strong>plo, com o discurso lírico: o<br />

narra<strong>do</strong>r lírico confun<strong>de</strong>-se com o “eu” <strong>do</strong> monólogo; já o narra<strong>do</strong>r <strong>de</strong> romance, <strong>em</strong> geral,<br />

finge se distinguir das outras personagens. Apenas no gênero narrativo é que formas <strong>de</strong><br />

discurso ambíguas pod<strong>em</strong> aparecer, projetan<strong>do</strong> o discurso por meio <strong>de</strong> duas visões diferentes<br />

43


ao mesmo t<strong>em</strong>po, a <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r e a da personag<strong>em</strong>. Rosenfeld (1985) alerta que a estrutura<br />

básica <strong>do</strong> discurso fictício parece ser a mesma para os outros gêneros literários. O que o autor<br />

preten<strong>de</strong> distinguir, neste ponto, é o aspecto lingüístico que se diversifica nas narrativas<br />

épicas, históricas, por ex<strong>em</strong>plo. O historia<strong>do</strong>r, por ex<strong>em</strong>plo, se situa no ponto zero <strong>do</strong> sist<strong>em</strong>a<br />

espácio-t<strong>em</strong>poral, projetan<strong>do</strong> através <strong>do</strong> pretérito real, o passa<strong>do</strong> histórico, também real, e <strong>do</strong><br />

qual ele não faz parte. Já na ficção narrativa, o enuncia<strong>do</strong>r real <strong>de</strong>saparece; na verda<strong>de</strong>, ele é<br />

um narra<strong>do</strong>r fictício que se torna parte <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> narra<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong>, inclusive, se confundir<br />

com personagens ou apresentar onisciência quanto a estes. O pretérito, aspecto lingüístico<br />

fundamental das narrativas, per<strong>de</strong> o seu senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> real, <strong>de</strong> histórico, pois o leitor presencia os<br />

fatos narra<strong>do</strong>s juntamente com o narra<strong>do</strong>r.<br />

O narra<strong>do</strong>r fictício não v<strong>em</strong> a ser exatamente o agente real das orações, como ocorre com o<br />

historia<strong>do</strong>r. Ele se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra no imaginário e manipula a função narrativa, <strong>de</strong>screven<strong>do</strong><br />

pessoas (personagens), esta<strong>do</strong>s e acontecimentos. Isso também se refere aos romances<br />

históricos, pois no momento <strong>em</strong> que uma pessoa (histórica) passa a ser focalizada pelo<br />

narra<strong>do</strong>r onisciente, ela <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser pessoa e torna-se personag<strong>em</strong>; <strong>de</strong> objeto <strong>de</strong> um evento<br />

torna-se sujeito da diegese na narração.<br />

Rosenfeld (1985) aborda a diferença crucial entre a realida<strong>de</strong> e as objectualida<strong>de</strong>s<br />

intencionais, subenten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a pessoa como representante <strong>do</strong> o real e a personag<strong>em</strong> como<br />

representante <strong>do</strong> imaginário. Esta diferença está no fato <strong>de</strong> que as objectualida<strong>de</strong>s não são<br />

capazes <strong>de</strong> atingir a <strong>de</strong>terminação completa da realida<strong>de</strong>. Isto quer dizer que as pessoas reais<br />

são autônomas, concretas, <strong>de</strong>tentoras <strong>de</strong> inúmeros predicativos que, <strong>em</strong> relação com outro ser<br />

humano, só pod<strong>em</strong> ser parcialmente absorvi<strong>do</strong>s cognoscitivamente. Isso reflete a nossa visão<br />

<strong>de</strong> realida<strong>de</strong> da forma como se apresenta fragmentária e limitada.<br />

As objectualida<strong>de</strong>s, por sua vez, puramente intencionais, apresentarão s<strong>em</strong>pre muitas regiões<br />

in<strong>de</strong>terminadas, pois o número <strong>de</strong> orações é finito <strong>em</strong> uma obra literária. A personag<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />

romance é s<strong>em</strong>pre uma configuração esqu<strong>em</strong>ática, mesmo que s<strong>em</strong>pre posta à prova como um<br />

indivíduo real. Estas regiões in<strong>de</strong>terminadas <strong>do</strong> texto tornam possíveis, até certo ponto, o<br />

caráter vivo da obra literária e a varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> concretizações suscitadas pelas leituras<br />

múltiplas. Esta varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> leitores, no <strong>de</strong>curso <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po, <strong>de</strong>nota a invariabilida<strong>de</strong> da obra,<br />

cujos personagens não possu<strong>em</strong> a mutabilida<strong>de</strong> e as incalculáveis <strong>de</strong>terminações <strong>do</strong> ser<br />

44


humano. Assim, as interpretações pod<strong>em</strong> mudar através das diversas leituras, mas a obra <strong>em</strong><br />

si, não muda.<br />

Como resulta<strong>do</strong> disso, Rosenfeld (1985) explica que a limitação <strong>do</strong> romance é justamente a<br />

sua maior riqueza. Como o número <strong>de</strong> orações é restrito, as personagens adquir<strong>em</strong> um cunho<br />

<strong>de</strong>finitivo que as pessoas reais, <strong>em</strong> meio ao convívio com outras pessoas, não alcançam. Por<br />

se tratar <strong>de</strong> orações e não <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>, o escritor po<strong>de</strong> dar um contorno mais releva<strong>do</strong> a certos<br />

aspectos, apresentan<strong>do</strong> as personagens com mais clareza <strong>do</strong> que a realida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> proporcionar<br />

às pessoas reais. O mo<strong>do</strong> pelo qual o escritor dirige o olhar <strong>do</strong> leitor pelas personagens faz<br />

com que as zonas in<strong>de</strong>terminadas comec<strong>em</strong> a transitar pela história, recurso este que torna a<br />

personag<strong>em</strong>, muitas vezes, insondável.<br />

Em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong>ste fenômeno que <strong>em</strong>erge da personag<strong>em</strong> e extrapola o universo<br />

imaginário, Rosenfeld (1985) discute a questão da influência da ficção no ambiente real e<br />

<strong>em</strong>pírico <strong>do</strong> qual faz parte o leitor. A ficção dirige toda a sua intencionalida<strong>de</strong> à camada<br />

ilusória s<strong>em</strong> chegar a atingir a realida<strong>de</strong> extra textual, fican<strong>do</strong>, assim, restrita à esfera das<br />

personagens, mas possibilitan<strong>do</strong> ao leitor viver as aventuras e peripécias <strong>do</strong>s heróis, no plano<br />

imaginário. Entretanto, gran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong>s leitores coloca o seu mun<strong>do</strong>, real e <strong>em</strong>pírico <strong>em</strong><br />

constante referência e comparação à realida<strong>de</strong> imaginária das histórias narradas.<br />

A arte literária ficcional v<strong>em</strong> a ser o lugar <strong>em</strong> que o ser humano se <strong>de</strong>fronta com outros<br />

s<strong>em</strong>elhantes viven<strong>do</strong> situações singulares. Da mesma forma que os próprios seres humanos,<br />

as personagens que os representam encontram-se integradas num <strong>de</strong>nso teci<strong>do</strong> <strong>de</strong> valores<br />

relativos a vários aspectos da socieda<strong>de</strong>: político-social, moral, religioso e, <strong>em</strong> face disso,<br />

tomam certas atitu<strong>de</strong>s <strong>em</strong> relação a esses valores. Passam por conflitos e enfrentam<br />

circunstâncias que revelam aspectos essenciais da vida humana, sejam eles trágicos, cômicos,<br />

exuberantes, grotescos ou sublimes.<br />

45


2 DA CULTURA CELTA À CULTURA MEDIEVAL – BREVE REVISÃO DA<br />

HISTÓRIA<br />

A importância <strong>de</strong>ste capítulo <strong>de</strong>ve-se à contextualização histórica, imprescindível à análise<br />

literária. Será traça<strong>do</strong> um breve panorama, a partir <strong>de</strong> leituras <strong>de</strong> textos que discut<strong>em</strong> a Ida<strong>de</strong><br />

Média, perío<strong>do</strong> no qual se insere o corpus seleciona<strong>do</strong> da pesquisa.<br />

Enten<strong>de</strong>-se que para uma a<strong>de</strong>quada localização espaço-t<strong>em</strong>poral da investigação acerca da<br />

figura das <strong>feiticeiras</strong> ou <strong>bruxas</strong>, na literatura medieval voltada às narrativas cavaleirescas, a<br />

apresentação <strong>do</strong> panorama oci<strong>de</strong>ntal europeu antece<strong>de</strong>nte à Era Cristã é <strong>de</strong> fundamental<br />

importância. Segun<strong>do</strong> os historia<strong>do</strong>res, este perío<strong>do</strong> da Antigüida<strong>de</strong> é pleno <strong>de</strong> eventos e<br />

características que irão formar e moldar o espírito medieval.<br />

Entre os povos mais significativos <strong>de</strong>ste momento estão os Celtas. Sua cultura e religião,<br />

apesar <strong>de</strong> enublada pela Igreja Católica, revelam-se nas obras escolhidas para análise <strong>de</strong>ste<br />

trabalho, b<strong>em</strong> como os povos bárbaros. Ambos exerceram forte influência na formação das<br />

gerações que compuseram a Ida<strong>de</strong> Média, ressalta<strong>do</strong>s os aspectos relaciona<strong>do</strong>s aos conflitos<br />

internos e externos, <strong>de</strong>correntes <strong>do</strong> gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> invasões que resultaram <strong>em</strong> gran<strong>de</strong>s<br />

mudanças sociais e culturais.<br />

2.1 OS CELTAS E OS POVOS BÁRBAROS<br />

2.1.1 Os Celtas<br />

A história <strong>do</strong>s Celtas está mais ou menos dividida <strong>em</strong> ondas <strong>de</strong> invasão. De suposta orig<strong>em</strong><br />

in<strong>do</strong>-ariana, eles invadiram a Europa várias vezes, <strong>em</strong> ondas migratórias. Segun<strong>do</strong> alguns<br />

autores, houve cinco gran<strong>de</strong>s invasões migratórias; entre estas as que mais relevância<br />

exerceram na <strong>de</strong>senvolução da cultura celta foram a terceira e a quinta invasões. Segun<strong>do</strong><br />

May (2002) para vários estudiosos, a terceira invasão céltica foi a comandada por Senion,<br />

filho <strong>de</strong> Stariath, consi<strong>de</strong>rada a primeira onda migratória real. Calcula-se que tenha ocorri<strong>do</strong><br />

46


por volta <strong>do</strong> século V a.C e recebi<strong>do</strong> o nome <strong>de</strong> Hallstatt. May <strong>de</strong>staca, entre os aspectos<br />

evolucionais <strong>de</strong>sta cultura, a introdução <strong>do</strong> ferro e a instituição da realeza, “cujo bom<br />

<strong>de</strong>senvolvimento estava liga<strong>do</strong> à fecundida<strong>de</strong> <strong>do</strong> solo: um trono forte e justo levaria consigo<br />

uma terra fértil e agra<strong>de</strong>cida” (p. 35).<br />

Neste perío<strong>do</strong> registra-se a introdução das armas <strong>de</strong> ferro proporcionan<strong>do</strong> o surgimento <strong>de</strong><br />

uma oligarquia constituída como força militar. Estabeleceram-se residências <strong>em</strong> povoações<br />

fortificadas e situadas <strong>em</strong> locais estratégicos. Os el<strong>em</strong>entos mais significativos da cultura<br />

Hallstatt, diss<strong>em</strong>inada na Al<strong>em</strong>anha meridional e oriental, no nor<strong>de</strong>ste da França, no su<strong>de</strong>ste<br />

da Inglaterra e na Península Ibérica, foram a si<strong>de</strong>rurgia, a arte <strong>de</strong>corativa geométrica, os ritos<br />

funerários <strong>de</strong> sepultamento e incineração, as fortificações e, principalmente, o armamento <strong>de</strong><br />

ferro.<br />

O século V a.C. assistiu à evolução da cultura Halstatt para a cultura La Tène, cuja orig<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>ve-se ao contato com os povos mediterrâneos. De acor<strong>do</strong> com May (2002), esta foi a quinta<br />

e última invasão céltica, porém a segunda gran<strong>de</strong> onda migratória. Foi nesse perío<strong>do</strong> que os<br />

Celtas atingiram sua máxima expansão e po<strong>de</strong>rio. Receberam influência <strong>de</strong> gregos e etruscos<br />

e <strong>de</strong>senvolveram a arte assimilan<strong>do</strong> motivos florais, animais e humanos. Aperfeiçoaram a<br />

cerâmica com o uso <strong>do</strong> torno que, por sua vez, também proporcionou a fabricação <strong>de</strong> objetos<br />

curvilíneos. Com o passar <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po a estrutura social sofreu transformações, tornan<strong>do</strong>-se<br />

cada vez mais rígida na medida <strong>em</strong> que a classe <strong>do</strong>s guerreiros aumentava seu po<strong>de</strong>r e<br />

prestígio, exercen<strong>do</strong> significativa tutela sobre as rotas comerciais que atravessavam o<br />

território celta.<br />

No século III a.C. a força expansionista <strong>do</strong>s Celtas foi <strong>de</strong>tida pela reação <strong>de</strong>fensiva <strong>do</strong>s povos<br />

<strong>do</strong> Mediterrâneo, especialmente os <strong>de</strong> Roma. O Império Romano foi capaz <strong>de</strong> impor-se sobre<br />

a civilização celta, carecen<strong>do</strong> organização da unida<strong>de</strong> política. Já se tornara difícil para os<br />

Celtas manter<strong>em</strong>-se coesos com uma extensão territorial tão gran<strong>de</strong>, registran<strong>do</strong>-se sua<br />

<strong>de</strong>cadência até o século I a.C perío<strong>do</strong> no qual os Romanos subjugaram todas as tribos, com<br />

exceção daquelas que permaneceram na Irlanda.<br />

A cultura celta era pre<strong>do</strong>minant<strong>em</strong>ente oral. Exclusivistas <strong>em</strong> relação ao conhecimento, os<br />

religiosos ocultavam os mistérios da natureza não permitin<strong>do</strong> a difusão popular na forma<br />

escrita, como fizeram outros povos da Antigüida<strong>de</strong>. De acor<strong>do</strong> com May (2002), to<strong>do</strong> o<br />

47


conhecimento acerca <strong>de</strong>ste povo provém <strong>de</strong> relatos escritos por povos estrangeiros à sua<br />

cultura, como os Romanos a eles cont<strong>em</strong>porâneos, os poucos her<strong>de</strong>iros tardios da Ida<strong>de</strong><br />

Média, os monges compila<strong>do</strong>res <strong>de</strong> mitos, lendas e costumes pagãos.<br />

A concepção <strong>de</strong> vida <strong>do</strong>s Celtas, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com May (2002) era tão diversa <strong>em</strong> comparação<br />

com a <strong>do</strong>s mediterrâneos. O choque entre elas teve gran<strong>de</strong>s proporções a ponto <strong>de</strong> provocar<br />

um recuo drástico por parte <strong>do</strong>s primeiros. Conseqüent<strong>em</strong>ente, eles <strong>de</strong>sapareceram <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

como civilização <strong>em</strong> <strong>de</strong>corrência da imposição superior <strong>do</strong> exército romano, da eficiência <strong>de</strong><br />

sua regência imperial centralizada e, principalmente, da sua histórica ve<strong>em</strong>ência <strong>em</strong> se<br />

eternizar materialmente. O autor <strong>de</strong>staca o sentimento <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> povo romano que<br />

os incapacitava <strong>de</strong> aceitar ou mesmo tolerar uma outra forma <strong>de</strong> cultura que não aquela<br />

<strong>de</strong>fendida por eles mesmos. Essas consi<strong>de</strong>rações figuram-se relevantes uma vez que se<br />

consi<strong>de</strong>re que a maioria <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res seguiu pela mesma rota: o Oci<strong>de</strong>nte conta<strong>do</strong> e<br />

narra<strong>do</strong> a partir da ótica <strong>do</strong>s vence<strong>do</strong>res. O autor sintetiza a essência da cultura celta que pô<strong>de</strong><br />

ser legada ao oci<strong>de</strong>nte europeu: “Apesar <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, se os romanos se apo<strong>de</strong>raram da história, os<br />

Celtas se refugiaram no mito. E, graças a isso, seu espírito sobreviveu” (p.12).<br />

Como os da<strong>do</strong>s históricos são parciais ou imprecisos e a nação céltica não é consi<strong>de</strong>rada uma<br />

nação histórica, torna-se necessário registrar algumas informações acerca <strong>do</strong> confronto <strong>do</strong><br />

paganismo com o cristianismo e <strong>do</strong> papel da mulher na socieda<strong>de</strong> celta. Analisan<strong>do</strong> as<br />

informações disponíveis sobre o papel da mulher <strong>em</strong> sua cultura e tradição, é inevitável a<br />

comparação <strong>do</strong>s padrões celtas aos padrões cristãos. Deve-se esclarecer que a intenção <strong>de</strong>ste<br />

tópico não é propriamente o paralelo <strong>em</strong> si, mas a apresentação da mulher na socieda<strong>de</strong><br />

céltica. Entretanto, o confronto ocorre, pois é fato que as tradições sejam tão diferentes. Estas<br />

disparida<strong>de</strong>s são <strong>de</strong> extr<strong>em</strong>a relevância para a análise das personagens f<strong>em</strong>ininas consi<strong>de</strong>radas<br />

<strong>bruxas</strong> ou <strong>feiticeiras</strong> nas <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> inseridas num contexto literário recolhi<strong>do</strong> da<br />

tradição oral e pleno <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrições históricas.<br />

I<strong>de</strong>almente prepara<strong>do</strong> para a aceitação e reverência das características impalpáveis da mulher,<br />

o povo celta atribuía à figura f<strong>em</strong>inina a própria imag<strong>em</strong> da Deusa, <strong>de</strong>tentora <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> unir<br />

o céu a terra, o que significa, respectivamente, unir o Deus (eterno aspecto masculino) à<br />

Deusa (eterno aspecto f<strong>em</strong>inino). Assim sen<strong>do</strong>, a mulher celta usufruía <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e direitos<br />

<strong>em</strong> relação a outras culturas cont<strong>em</strong>porâneas. Entre estes direitos estavam a participação nas<br />

48


atalhas e a solicitação <strong>do</strong> divórcio. Isso <strong>de</strong>nota uma característica igualitária entre os sexos,<br />

que <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhavam cargos e funções <strong>em</strong> comum.<br />

May (2002) esclarece que o culto a uma divinda<strong>de</strong> cria<strong>do</strong>ra, acima <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os outros <strong>de</strong>uses,<br />

não constitui uma exclusivida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s Celtas; outras culturas antigas também a utilizaram,<br />

como a Gran<strong>de</strong> Mãe, Ísis ou Astartéia (Istar). As qualida<strong>de</strong>s inalcançáveis da mulher, como a<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gerar outro ser e a intuição f<strong>em</strong>inina, exerceram gran<strong>de</strong> fascínio nos povos<br />

antepassa<strong>do</strong>s. Sabe-se que o nível <strong>de</strong> informação sobre a concepção humana era bastante<br />

baixo e muitos pensavam que o el<strong>em</strong>ento masculino tinha pouca ou nenhuma participação<br />

neste processo. Daí a importância revela<strong>do</strong>ra da mulher que <strong>de</strong>tinha a função sagrada da<br />

reprodução.<br />

Encontran<strong>do</strong>-se com uma cultura tão diversa e estranha a sua, os povos <strong>do</strong> Mediterrâneo<br />

reagiram <strong>de</strong> maneira violenta à propagação da religiosida<strong>de</strong> celta. A Igreja Católica primitiva<br />

tentou apagar tu<strong>do</strong> o que lhe foi possível <strong>do</strong>s rituais célticos, catalogan<strong>do</strong>-os <strong>de</strong> “paganismo”.<br />

Os cristãos não admitiam o culto a mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>us; não o admitin<strong>do</strong> fora <strong>de</strong> t<strong>em</strong>plos construí<strong>do</strong>s<br />

especificamente para aquele fim. Tal idéia opõe-se à <strong>do</strong>s Celtas, que não aprovavam o culto a<br />

uma divinda<strong>de</strong> <strong>em</strong> t<strong>em</strong>plos construí<strong>do</strong>s por mãos humanas, não se consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> dignos <strong>de</strong> tal<br />

função. Os cristãos, por sua vez, também não aceitavam a participação f<strong>em</strong>inina na condução<br />

<strong>de</strong> cerimoniais religiosos, b<strong>em</strong> como <strong>em</strong> muitas das ativida<strong>de</strong>s sociais <strong>de</strong> importância.<br />

2.1.2 Os povos bárbaros<br />

A maioria <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res atribui o nascimento <strong>do</strong> oci<strong>de</strong>nte medieval à <strong>de</strong>sintegração <strong>do</strong><br />

Império Romano. A ruína <strong>de</strong>ste que é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> o maior império <strong>em</strong> termos <strong>de</strong> duração e <strong>de</strong><br />

importância civilizacional trouxe vantagens e <strong>de</strong>svantagens. Segun<strong>do</strong> Le Goff (2005), Roma,<br />

apesar <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o seu progresso, manteve-se <strong>em</strong> permanente clausura, manten<strong>do</strong> seu povo<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> muralhas e impedin<strong>do</strong> a população <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver-se sob influências <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

exterior. Estruturalmente, não houve nenhum crescimento técnico inova<strong>do</strong>r, pois os romanos<br />

pautavam sua economia na guerra <strong>de</strong> pilhag<strong>em</strong> e conseguiam a mão-<strong>de</strong>-obra escrava através<br />

<strong>do</strong>s conflitos vitoriosos.<br />

Os romanos já traziam <strong>em</strong> seu íntimo uma característica propensa à estabilida<strong>de</strong> das<br />

instituições e ao conserva<strong>do</strong>rismo <strong>de</strong> suas tradições. É possível que entre os fatores que<br />

49


levaram o Império Romano à <strong>de</strong>struição figur<strong>em</strong> as forças <strong>de</strong> renovação e mudanças que<br />

vieram confrontar o imobilismo romano. O aumento populacional <strong>do</strong>s povos ainda nôma<strong>de</strong>s,<br />

o crescimento econômico e a necessida<strong>de</strong> territorial e militar somaram forças alternativas que<br />

se <strong>de</strong>slocaram <strong>em</strong> direção ao Império Romano, realizan<strong>do</strong> um prolonga<strong>do</strong> processo <strong>de</strong><br />

invasões e guerras.<br />

Gran<strong>de</strong> crise se instalou no século III, minan<strong>do</strong> as forças <strong>do</strong> Império Romano. De acor<strong>do</strong><br />

com Le Goff (2005), a unida<strong>de</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> romano ficou ameaçada por seus próprios<br />

m<strong>em</strong>bros. A Itália e a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Roma, centro <strong>de</strong> seu império, já não tinha energia suficiente<br />

para manter as províncias <strong>em</strong> condição una. Acabaram por <strong>em</strong>ancipar-se e se tornaram<br />

conquista<strong>do</strong>ras, instauran<strong>do</strong> diversos conflitos internos marca<strong>do</strong>s pelo êxito da romanização e<br />

pela crescente <strong>em</strong>anação <strong>de</strong> forças centrífugas. Assim, “o Oci<strong>de</strong>nte medieval herdará algo<br />

<strong>de</strong>sta luta, oscilan<strong>do</strong> entre a unida<strong>de</strong> e a diversida<strong>de</strong>, entre a idéia da Cristanda<strong>de</strong> e das<br />

nações” (p. 20).<br />

A fundação <strong>de</strong> Constantinopla, ocorrida entre 324 e 330, consolida a tendência <strong>do</strong> Império<br />

para o Oriente. O mun<strong>do</strong> medieval é marca<strong>do</strong> pelos esforços <strong>de</strong> união entre oriente e oci<strong>de</strong>nte,<br />

que culminam com uma evolução divergente. Le Goff (2005) explica que a ruptura entre as<br />

duas esferas <strong>do</strong> Império estabelece-se no século IV. Até então, os povos bárbaros já tinham<br />

contato com os romanos, <strong>em</strong> razoável harmonia até certo ponto. Chegaram a realizar trocas<br />

comerciais através <strong>de</strong> suas fronteiras e os romanos, por vezes, contratavam germânicos para<br />

integrar<strong>em</strong> seus exércitos. Isto equivale a afirmar que as invasões ocorreram <strong>de</strong> formas<br />

variadas, “seja no ritmo lento das infiltrações e <strong>de</strong> avanços mais ou menos pacíficos, ou no<br />

das irrupções bruscas acompanhadas <strong>de</strong> lutas e massacres (...)” (p. 28).<br />

Muitos <strong>do</strong>s povos chama<strong>do</strong>s bárbaros eram <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> germânica e habitavam as regiões norte<br />

e nor<strong>de</strong>ste da Europa e o noroeste da Ásia. A convivência razoavelmente pacífica que estes<br />

povos tiveram com os romanos perdurou enquanto o Império gozava <strong>de</strong> supr<strong>em</strong>acia. A partir<br />

da crise instalada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século III as relações se <strong>de</strong>terioraram e outros fatores externos ao<br />

mun<strong>do</strong> romano, como crescimento populacional e econômico, acabaram por <strong>de</strong>terminar as<br />

necessida<strong>de</strong>s expansionistas que culminaram com as numerosas invasões bárbaras <strong>do</strong> século<br />

V d.C.<br />

50


Os motivos <strong>de</strong>ssas invasões foram, por vezes, mal interpreta<strong>do</strong>s por historia<strong>do</strong>res e escritores<br />

<strong>do</strong>s séculos seguintes, no intuito <strong>de</strong> preservar a suposta superiorida<strong>de</strong> cultural <strong>do</strong>s povos<br />

romanos. Le Goff (2005) comenta que, na verda<strong>de</strong>, as causas <strong>de</strong>stas invasões são pouco<br />

importantes; as transformações e o que elas ocasionaram no panorama oci<strong>de</strong>ntal da Europa é<br />

que <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser consi<strong>de</strong>radas. Entretanto, o historia<strong>do</strong>r francês expõe que alguns <strong>de</strong>stes<br />

aspectos pod<strong>em</strong> ter-se mostra<strong>do</strong> mais relevantes. Explicita que estes povos colocaram-se <strong>em</strong><br />

fuga, muitas vezes <strong>em</strong>purra<strong>do</strong>s por outros povos bárbaros mais fortes. Os textos sobre estes<br />

povos foram escritos, <strong>em</strong> geral, por pagãos her<strong>de</strong>iros da cultura greco-romana que os<br />

hostilizavam porque os bárbaros invadiam não apenas o território e sim a sua cultura, por<br />

<strong>de</strong>ntro e por fora, anulan<strong>do</strong> por completo suas tradições e impon<strong>do</strong> novos hábitos e costumes.<br />

Aqueles que já eram cristãos e viam no Império Romano o berço <strong>do</strong> Cristianismo também<br />

sentiam a mesma repulsa pelos povos invasores. Na verda<strong>de</strong>, o que houve foi um conjunto <strong>de</strong><br />

fatores externos e internos ao Império Romano que possibilitou seu enfraquecimento e a onda<br />

<strong>de</strong>vasta<strong>do</strong>ra das invasões bárbaras.<br />

Os povos bárbaros, muitos <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> germânica, fundaram diversos reinos no oci<strong>de</strong>nte<br />

romano. Foram reinos efêmeros <strong>em</strong> sua maioria, pois necessitavam <strong>de</strong> uma organização<br />

administrativa mais eficaz. Apesar <strong>do</strong>s esforços <strong>de</strong> muitos chefes germânicos <strong>em</strong> manter as<br />

instituições político-administrativas romanas, o funcionamento <strong>de</strong>ssas instituições n<strong>em</strong><br />

s<strong>em</strong>pre correspon<strong>de</strong>u às novas realida<strong>de</strong>s e, por vezes, os el<strong>em</strong>entos <strong>de</strong> populações<br />

romanizadas se recusaram a colaborar com os germanos. Tal fato <strong>de</strong>ve-se ao sentimento hostil<br />

que se <strong>de</strong>senvolveu por ver<strong>em</strong>-nos como conquista<strong>do</strong>res que se haviam imposto pela força das<br />

armas.<br />

Entre os principais povos bárbaros que se instalaram no oci<strong>de</strong>nte, <strong>do</strong> século V <strong>em</strong> diante,<br />

estão os Francos, os Lombar<strong>do</strong>s, os Anglos, os Saxões, os Visigo<strong>do</strong>s, os Suevos, os Vândalos,<br />

os Ostrogo<strong>do</strong>s, os Norman<strong>do</strong>s e os Hunos. Cada qual ocupou uma região diferente e, por<br />

vezes, ocuparam as mesmas regiões <strong>em</strong> épocas diferentes. Os reinos forma<strong>do</strong>s pelas invasões<br />

<strong>de</strong>sses povos foram um tanto confusos, pois se misturaram e conquistaram, entre si, riquezas e<br />

territórios que passaram a dividir com a população romanizada.<br />

51


2.2 IDADE MÉDIA: DAS DIVISÕES CRONOLÓGICAS À ARTE E CULTURA<br />

A Ida<strong>de</strong> Média foi, por décadas, um perío<strong>do</strong> histórico <strong>de</strong>spreza<strong>do</strong> pela comunida<strong>de</strong> científica,<br />

no que concerne às contribuições para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> saber. Para muitos foi um t<strong>em</strong>po<br />

<strong>em</strong> que o conhecimento esteve obtuso e, por vezes, até mesmo inexistente. Franco Jr. (1986)<br />

expõe que para os homens <strong>do</strong>s séculos posteriores à Ida<strong>de</strong> Média, naquele perío<strong>do</strong><br />

pre<strong>do</strong>minavam a ignorância, a barbárie e a superstição, gran<strong>de</strong>s obstáculos ao<br />

<strong>de</strong>senvolvimento intelectual.<br />

O historia<strong>do</strong>r salienta que vários segmentos da socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna tinham seus motivos para<br />

aviltar o medievo: os burgueses capitalistas lamentavam a ativida<strong>de</strong> comercial limitada; os<br />

protestantes criticavam a pre<strong>em</strong>inência da Igreja Católica; aqueles liga<strong>do</strong>s às monarquias<br />

absolutas <strong>de</strong>sprezavam os reis fracos e a fragmentação política; os estudiosos racionalistas<br />

lastimavam uma cultura fort<strong>em</strong>ente ligada a valores espirituais. Conseqüent<strong>em</strong>ente, os séculos<br />

posteriores refletiram essas concepções através da herança intelectual herdada a partir <strong>do</strong><br />

perío<strong>do</strong> transicional para a Ida<strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna.<br />

O interesse por estu<strong>do</strong>s que abarcass<strong>em</strong> o perío<strong>do</strong> medieval e, principalmente, que trouxess<strong>em</strong><br />

novas informações aconteceu no século XX. Franco Jr. (1986) ressalta que o historia<strong>do</strong>r t<strong>em</strong><br />

como função compreen<strong>de</strong>r a história e não julgá-la. A maior referência para o estu<strong>do</strong> da Ida<strong>de</strong><br />

Média <strong>de</strong>ve ser a própria Ida<strong>de</strong> Média. O Brasil, entretanto, levou algum t<strong>em</strong>po para <strong>de</strong>spertar<br />

o interesse por esse importante perío<strong>do</strong> histórico, algumas décadas <strong>em</strong> relação aos Esta<strong>do</strong>s<br />

Uni<strong>do</strong>s e muitas <strong>em</strong> relação à Europa. A preocupação <strong>em</strong> se <strong>de</strong>svendar os supostos mistérios<br />

<strong>do</strong> medievo v<strong>em</strong> <strong>em</strong> <strong>de</strong>corrência da compreensão da importância que o perío<strong>do</strong> histórico teve<br />

na formação da civilização oci<strong>de</strong>ntal, da qual o Brasil faz parte.<br />

Neste tópico, será apresentada uma divisão <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> medieval que não se enquadra,<br />

especificamente, nas divisões mais simplistas conhecidas como Alta e Baixa Ida<strong>de</strong> Média.<br />

Franco Jr. (1986) <strong>de</strong>staca que a Ida<strong>de</strong> Média encerra um espaço t<strong>em</strong>poral <strong>de</strong>,<br />

aproximadamente, um milênio. T<strong>em</strong>po este capaz <strong>de</strong> produzir um conjunto <strong>de</strong> caracteres<br />

marcantes e específicos que permite ao hom<strong>em</strong> situá-lo diferencialmente <strong>em</strong> relação a outras<br />

épocas históricas. Este caráter peculiar é o primeiro indício <strong>de</strong> que a busca <strong>de</strong> um princípio e<br />

fim para o perío<strong>do</strong> não se constitui <strong>em</strong> adição <strong>de</strong> conhecimento.<br />

52


Muitos historia<strong>do</strong>res, por muito t<strong>em</strong>po, buscaram <strong>de</strong>limitar datas ou fatos que pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong><br />

marcar o princípio e o final da Era Medieval. Franco Jr. (1986) argumenta que, sen<strong>do</strong> a<br />

história um processo (e não apenas um conjunto <strong>de</strong> fatos termina<strong>do</strong>s), <strong>de</strong>ve-se abdicar da<br />

procura <strong>de</strong> um acontecimento que teria introduzi<strong>do</strong> ou finaliza<strong>do</strong> certo perío<strong>do</strong> histórico. É<br />

claro que a periodização atua <strong>de</strong> maneira didática enquanto se estuda a história, pois a noção<br />

cronológica <strong>do</strong>s fatos muito auxilia na compreensão e no raciocínio.<br />

Para um estu<strong>do</strong> mais avança<strong>do</strong> não basta o acúmulo <strong>de</strong> fatos, datas e nomes; é preciso<br />

compreen<strong>de</strong>r os processos internos e externos que moveram a roda da história da humanida<strong>de</strong>.<br />

É justamente neste ponto que os historia<strong>do</strong>res discordam quanto ao uso ou não <strong>de</strong> uma divisão<br />

periódica <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> espaço t<strong>em</strong>poral compreendi<strong>do</strong> pela Ida<strong>de</strong> Média. Mesmo <strong>em</strong> se tratan<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> uma breve reflexão acerca <strong>de</strong>sta fase histórica, a escolha <strong>de</strong> uma periodização neste<br />

capítulo justifica-se pela revisão das estruturas humanas da Era Medieval, instrumento<br />

fundamental à compreensão da importância da história nesta pesquisa, que objetiva<br />

estabelecer uma análise literária <strong>do</strong> corpus escolhi<strong>do</strong>.<br />

As divisões <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> medieval são controversas entre os historia<strong>do</strong>res. Embora haja certo<br />

consenso quanto a dividir o perío<strong>do</strong> <strong>em</strong> fases que se mostraram mais ou menos consistente<br />

internamente, isso não significa uma concordância plena. Em face <strong>de</strong>stes percalços<br />

conceituais, tomar-se-á como referência teórico-histórica as seguintes repartições: Primeira<br />

Ida<strong>de</strong> Média, Alta Ida<strong>de</strong> Média, Ida<strong>de</strong> Média Central e Baixa Ida<strong>de</strong> Média. 9<br />

Abrangen<strong>do</strong> cerca <strong>de</strong> um milênio, o perío<strong>do</strong> compreendi<strong>do</strong> como Ida<strong>de</strong> Medieval não<br />

apresenta características estacionárias. Inicialmente, po<strong>de</strong>-se dizer que a Primeira Ida<strong>de</strong><br />

Média guar<strong>do</strong>u uma soma <strong>de</strong> aspectos antigos que iriam moldar as feições <strong>do</strong> medievo. Este<br />

perío<strong>do</strong> esten<strong>de</strong>u-se <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século IV a mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século VIII. Segun<strong>do</strong> Franco Jr.<br />

(1986), a característica mais marcante <strong>de</strong>sta época é a lenta interpenetração <strong>do</strong>s el<strong>em</strong>entos<br />

compositivos <strong>de</strong> toda a Ida<strong>de</strong> Média: a Igreja, os Romanos e os Bárbaros Germanos. O<br />

<strong>de</strong>senvolvimento da conjunção entre estes três fatores <strong>de</strong>terminou o <strong>de</strong>senlace com a<br />

Antigüida<strong>de</strong> e principiou uma nova ord<strong>em</strong> social e intelectual, ainda que um tanto confusa.<br />

9 FRANCO JR. Hilário. A Ida<strong>de</strong> Média: nascimento <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte. 3ª. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.<br />

53


O prolongamento da primeira fase <strong>do</strong> medievo v<strong>em</strong> a ser o perío<strong>do</strong> conheci<strong>do</strong> por Alta Ida<strong>de</strong><br />

Média, cuja maior expressão é o Império Carolíngio. Estendi<strong>do</strong> por quase três séculos (<strong>do</strong><br />

século VIII ao século X), fase marcada por uma nova unida<strong>de</strong> política com Carlos Magno<br />

que, por sua vez, não rompeu com as tendências adquiridas no perío<strong>do</strong> anterior, levan<strong>do</strong> à<br />

fragmentação feudal. De qualquer forma, não se po<strong>de</strong> negar uma unida<strong>de</strong> transitória ocorrida<br />

graças aos esforços <strong>do</strong> lí<strong>de</strong>r que, ven<strong>do</strong> na Igreja a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>do</strong>mínio social, buscou<br />

uma aliança entre o po<strong>de</strong>r governamental e o po<strong>de</strong>r divinal. Assim, reconhecen<strong>do</strong> a Igreja<br />

Católica como única her<strong>de</strong>ira <strong>do</strong> Império Romano, a dinastia <strong>de</strong> Carlos Magno necessitaria <strong>de</strong><br />

uma legitimação sacra para reafirmar sua relevância e posição.<br />

Como característica prepon<strong>de</strong>rante <strong>de</strong>ste perío<strong>do</strong> figura-se um acontecimento econômico e<br />

d<strong>em</strong>ográfico ao mesmo t<strong>em</strong>po, que mo<strong>de</strong>lou a socieda<strong>de</strong> medieval: a ruralização. Este<br />

episódio foi <strong>de</strong>corrente <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>terioração urbana inicia<strong>do</strong> com as invasões bárbaras<br />

da fase anterior. Segun<strong>do</strong> Le Goff (2005), o próprio Império Romano sofria com a divisão<br />

entre o Oci<strong>de</strong>nte e o Oriente, o que, conseqüent<strong>em</strong>ente, contribuiu para um isolamento entre<br />

as partículas <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte Romano. A produção agrícola <strong>de</strong>stinada ao comércio entre os<br />

impérios foi, aos poucos, limitan<strong>do</strong> sua área <strong>de</strong> circulação, provocan<strong>do</strong> o aban<strong>do</strong>no <strong>de</strong> regiões<br />

<strong>de</strong> cultivo e colaboran<strong>do</strong> para que os campos vazios se multiplicass<strong>em</strong>. Assim, o panorama<br />

medieval <strong>de</strong>spontava com agrupamentos populacionais <strong>em</strong> áreas cada vez mais afastadas<br />

umas das outras.<br />

Outro traço <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque nesta fase é a expansão da Cristanda<strong>de</strong>. A Igreja imprimiu gran<strong>de</strong>s<br />

esforços no estabelecimento territorial cristão através da evangelização <strong>em</strong> terras pagãs. Tal<br />

<strong>em</strong>presa se esten<strong>de</strong>ria pelos séculos seguintes, buscan<strong>do</strong> uma reformulação civilizacional por<br />

toda Europa. Vale ressaltar que a Igreja, <strong>de</strong> certa forma, respondia <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com seus<br />

interesses e limites aos anseios <strong>de</strong> um povo barbariza<strong>do</strong> e <strong>de</strong>sorienta<strong>do</strong> social, cultural e<br />

espiritualmente. Não há como falar <strong>do</strong> papel da Igreja s<strong>em</strong> citar como pano <strong>de</strong> fun<strong>do</strong>, o<br />

conjunto <strong>de</strong> fatores externos e internos que <strong>de</strong>signaram a face exterior <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> mais difícil<br />

vivi<strong>do</strong> pelo hom<strong>em</strong> medieval. Le Goff (2005) explica que, se houve o preconceito das épocas<br />

posteriores <strong>em</strong> rotular a Ida<strong>de</strong> Média como “Era das Trevas” boa parte das crenças e préconceitos<br />

teria resulta<strong>do</strong> das impressões <strong>de</strong>ixadas da segunda meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século VI que,<br />

segun<strong>do</strong> a divisão proposta por Franco Jr., ainda figuraria na primeira fase <strong>do</strong> medievo. No<br />

entanto, como a história é um processo e não um conjunto <strong>de</strong> fatos cronológicos, o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento da vida pré-medieval até a chamada Alta Ida<strong>de</strong> Média <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou<br />

54


acontecimentos, hábitos e costumes que vieram influenciar os séculos seguintes nas mais<br />

variadas <strong>de</strong>signações.<br />

O fim <strong>de</strong>sta etapa, segun<strong>do</strong> Franco Jr. (1986), estaria relaciona<strong>do</strong> à crise que se instalou no<br />

Esta<strong>do</strong> Carolíngio e também a uma nova onda <strong>de</strong> invasões por povos <strong>de</strong> diferentes regiões,<br />

como os Vikings, os Muçulmanos e os Magiares. Iniciada no <strong>de</strong>correr <strong>do</strong> século IX<br />

<strong>de</strong>sorganizou a grandiosa construção carolíngia <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à conjunção <strong>de</strong> golpes externos e à<br />

<strong>de</strong>sagregação interna. Le Goff (2005) comenta que a dissolução <strong>do</strong> Império Carolíngio <strong>de</strong>ve<br />

muito mais aos probl<strong>em</strong>as interiores <strong>do</strong> que às novas invasões, pois os Francos jamais<br />

conseguiram assimilar o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> romano.<br />

A terceira fase, chamada <strong>de</strong> Ida<strong>de</strong> Média Central, engloba o perío<strong>do</strong> compreendi<strong>do</strong> entre os<br />

séculos XI e XIII. Respon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> às ações e realizações da fase anterior, o sist<strong>em</strong>a feudal veio<br />

a encontrar os meios propícios <strong>de</strong> instauração efetiva. Foi esta, então, a grosso mo<strong>do</strong>, a época<br />

<strong>do</strong> Feudalismo. Este se tornou, segun<strong>do</strong> Franco Jr. (1986), um instrumento <strong>de</strong> reorganização<br />

que pô<strong>de</strong> proporcionar à socieda<strong>de</strong> medieval cristã um intenso progresso populacional alia<strong>do</strong><br />

a uma vasta expansão territorial. As Cruzadas foram a expressão mais conhecida <strong>de</strong>ssa<br />

expansão.<br />

Os aspectos da crise <strong>do</strong> último século foram essenciais para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> sist<strong>em</strong>a<br />

feudal, pois este respon<strong>de</strong>u aos probl<strong>em</strong>as vivi<strong>do</strong>s pelo hom<strong>em</strong> não apenas no caráter<br />

econômico, mas também no social e no cultural. Até o final <strong>do</strong> século X as monarquias<br />

européias experimentaram um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> retrocesso econômico <strong>em</strong> vista das constantes<br />

guerras e invasões, da cessação <strong>do</strong> comércio e <strong>do</strong> baixo rendimento agrícola. Face à <strong>de</strong>sord<strong>em</strong><br />

social e à violência generalizada, a insegurança manteve as populações isoladas durante muito<br />

t<strong>em</strong>po. To<strong>do</strong>s estes fatores favoreceram a implantação <strong>do</strong> feudalismo.<br />

De certa forma, o conjunto <strong>de</strong> fatores e aspectos que vieram a <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar o novo sist<strong>em</strong>a<br />

feudal acabou por criar meios <strong>de</strong> atenuar o panorama caótico apresenta<strong>do</strong> pelos séculos<br />

antece<strong>de</strong>ntes. Franco Jr. (1986) expõe que a economia se revigorou e se diversificou <strong>em</strong><br />

conseqüência da maior procura <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>rias e da gran<strong>de</strong> disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra.<br />

A própria crise impôs formas <strong>de</strong> combate ou <strong>de</strong> aproveitamento das situações <strong>em</strong> benefício<br />

das mudanças iminentes. Vin<strong>do</strong> <strong>de</strong> um perío<strong>do</strong> conturba<strong>do</strong>, o feudalismo transformou esta<br />

fase na mais rica <strong>do</strong> toda a Ida<strong>de</strong> Média.<br />

55


O perío<strong>do</strong> conheci<strong>do</strong> por Baixa Ida<strong>de</strong> Média é, para muitos, o t<strong>em</strong>po transicional mais<br />

marcante da história da humanida<strong>de</strong>. Abrange o intervalo entre os séculos XIV e mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />

século XVI. Submersa <strong>em</strong> crises e <strong>em</strong> busca constante <strong>de</strong> arranjos e <strong>de</strong>sarranjos, a Baixa<br />

Ida<strong>de</strong> Média representou a gestação e o nascimento <strong>do</strong>s t<strong>em</strong>pos mo<strong>de</strong>rnos. Segun<strong>do</strong> Franco Jr.<br />

(1986), a crise <strong>do</strong> século XIV foi resulta<strong>do</strong> da vitalida<strong>de</strong> e da contínua expansão d<strong>em</strong>ográfica,<br />

territorial e econômica testificada pelos séculos XI, XII e XIII, cuja expressão tornou-se tão<br />

grandiosa que atingiu os limites possíveis <strong>de</strong> seu próprio funcionamento.<br />

A crise atingiu as esferas econômica, social e espiritual. Em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> uma sucessão <strong>de</strong><br />

más colheitas, conseqüência <strong>de</strong> condições climáticas <strong>de</strong>sfavoráveis, a fome surgiu para uma<br />

população que já ultrapassava as possibilida<strong>de</strong>s produtivas <strong>do</strong> sist<strong>em</strong>a feudal. Várias revoltas<br />

camponesas ocorreram contra os senhores feudais ao passo que, nas cida<strong>de</strong>s, os trabalha<strong>do</strong>res<br />

pobres das guildas 10 também se rebelaram contra os mestres artesãos e os ricos comerciantes.<br />

A crise espiritual figurou-se <strong>em</strong> <strong>do</strong>is importantes acontecimentos: o chama<strong>do</strong> Cisma <strong>do</strong><br />

Oci<strong>de</strong>nte que, durante quase to<strong>do</strong> o século XIV, manteve a Igreja dividida entre Avignon e<br />

Roma e o surgimento <strong>de</strong> movimentos místicos e reforma<strong>do</strong>res que preconizavam a retomada<br />

da pureza <strong>do</strong>s costumes cristãos.<br />

Juntamente a mudanças e avanços, a rejeição à cultura medieval e a perquirição às fontes<br />

originais da arte e <strong>do</strong> pensamento clássicos favoreceram o aparecimento <strong>de</strong> uma nova maneira<br />

<strong>de</strong> enxergar a vida e as formas estéticas. Destarte, a conjunção <strong>do</strong> lega<strong>do</strong> medieval e o resgate<br />

da cultura greco-latina geraram o Renascimento. Os movimentos reforma<strong>do</strong>res e místicos da<br />

crise <strong>do</strong> século XIV propiciaram a recuperação, primeiro <strong>em</strong> nível mental, <strong>de</strong>pois <strong>em</strong> nível<br />

real, <strong>do</strong>s verda<strong>de</strong>iros valores cristãos, livres das impurezas e heresias praticadas,<br />

principalmente, pelo próprio Clero.<br />

Segun<strong>do</strong> Franco Jr. (1986), o ritmo da história medieval acelerou-se, assim, ao passo que mais<br />

<strong>de</strong>scobertas e <strong>do</strong>cumentos pu<strong>de</strong>ram chegar até a atualida<strong>de</strong>. Infelizmente, os primeiros séculos<br />

da Ida<strong>de</strong> Média ainda guardam muitos mistérios; a fase madura e o final <strong>de</strong>sta época, no<br />

entanto, <strong>de</strong>ixaram abundante <strong>do</strong>cumentação para conhecimento, análise e interpretação <strong>de</strong><br />

suas estruturas.<br />

10<br />

Associação <strong>de</strong> auxílio mútuo constituída na Ida<strong>de</strong> Média entre as corporações <strong>de</strong> operários, artesãos,<br />

negociantes ou artistas.<br />

56


2.2.1 Cultura e arte medieval<br />

É preciso compreen<strong>de</strong>r que entre estudiosos a história da cultura n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre manteve as<br />

mesmas abordagens entre os historia<strong>do</strong>res. O significa<strong>do</strong> da cultura e das artes, <strong>em</strong> geral,<br />

sofreu mudanças consi<strong>de</strong>ráveis no que concerne a sua concepção como formas artísticas ou <strong>de</strong><br />

expressão estética. Franco Jr. (1986) explica que, por muitos séculos, a história cultural esteve<br />

marcada por profun<strong>do</strong> elitismo, que também abrangeu a história social e política. O<br />

entendimento acerca da cultura resumia-se à criação intelectual. Apenas os indivíduos<br />

<strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s intelectualmente seriam capazes <strong>de</strong> sustentar um talento artístico. A<br />

cont<strong>em</strong>plação científica da história das artes e cultura esteve, longamente, <strong>de</strong>svinculada <strong>do</strong><br />

contexto histórico.<br />

A estrutura cultural <strong>do</strong> medievo apresenta relações intrínsecas entre a cultura popular e a<br />

erudita, compreendidas, respectivamente, como folclórica e cristã respectivamente, ou ainda<br />

clerical e laica. Neste caso, importa avaliar o grau <strong>de</strong> absorções e adaptações ocorridas entre<br />

elas. Franco Jr. (1986) elucida que uma forte clericalização da cultura até o século XII será<br />

encontrada. Entretanto, esse fenômeno não aconteceu <strong>de</strong> maneira completa, a ponto <strong>de</strong><br />

neutralizar os r<strong>em</strong>anescentes psicoculturais da era pré-cristã. As mudanças sócio-políticas e<br />

econômicas propiciaram um maior afastamento ou proximida<strong>de</strong> daqueles el<strong>em</strong>entos,<br />

principalmente no <strong>de</strong>correr <strong>do</strong>s séculos XII e XIII. O ressurgimento <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos antigos que<br />

se refletiram na cultura medieval que se <strong>de</strong>fine como o princípio da trajetória para o futuro,<br />

<strong>de</strong>stacaria a cultura laica e humanista no meio social que caminhava para a Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />

2.2.1.1 Primeira Ida<strong>de</strong> Média e Alta Ida<strong>de</strong> Média<br />

A Primeira Ida<strong>de</strong> Média, repleta <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s humanas, proporcionou situações conflitantes<br />

que se projetaram culturalmente, com variações <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>, pelos séculos subseqüentes.<br />

Entre estas situações, vale l<strong>em</strong>brar a distância consi<strong>de</strong>rável entre a elite culta e a massa<br />

popular, que, no entanto, no âmbito cultural, não se i<strong>de</strong>ntificava com a atual estratificação<br />

social. Da mesma forma, o apelo clerical representou uma sist<strong>em</strong>atização e <strong>de</strong>safetação <strong>do</strong><br />

lega<strong>do</strong> greco-romano, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> adapta<strong>do</strong> às conturbações da época, resultan<strong>do</strong> no<br />

confinamento ocasiona<strong>do</strong> pelo absolutismo religioso. Por último, segun<strong>do</strong> Le Goff (1980), <strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>corrência da d<strong>em</strong>asiada religiosida<strong>de</strong>, a cultura laica sofreu regressão com as dificulda<strong>de</strong>s<br />

materiais, com a insegurança espiritual e também com a fusão <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos cristãos com os<br />

57


árbaros. Essas circunstâncias conflituosas fizeram reaparecer crenças, técnicas e forma <strong>de</strong><br />

pensar tradicionais, pré-romanas.<br />

As relações entre a cultura laica e clerical estabeleciam-se a partir <strong>de</strong> um caráter biunívoco.<br />

Por um la<strong>do</strong>, a cultura eclesiástica recebia alguns el<strong>em</strong>entos da cultura laica porque certas<br />

estruturas mentais coincidiam-se, o que causava até mesmo confusão entre o material e o<br />

espiritual. Além <strong>do</strong> que, o clero necessitava conquistar a maioria populacional e, para tal, era<br />

imprescindível que realizasse adaptações da sua cultura para facilitar o processo<br />

evangelizante. Por outro la<strong>do</strong>, o mesmo clero postava-se com negação à cultura folclórica,<br />

buscan<strong>do</strong> anular sua influência, no intuito <strong>de</strong> impor “práticas, monumentos e t<strong>em</strong>áticas cristãs<br />

aos correspon<strong>de</strong>ntes pagãos, <strong>de</strong>sfiguran<strong>do</strong> manifestações folclóricas ao mudar seu<br />

significa<strong>do</strong>” (FRANCO JR., 1986, p. 127).<br />

2.2.1.1.1 Literatura e Arte<br />

A função da cultura e das artes recebeu concepções variadas durante to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> medieval.<br />

A intelectualida<strong>de</strong> imposta às artes limitava <strong>de</strong> certa forma, a livre criação, pois direcionada<br />

para as realida<strong>de</strong>s espirituais, <strong>de</strong>tinha o <strong>de</strong>senvolvimento numa esfera puramente estática.<br />

Relacionada à função das artes nesta época está o papel fundamental da literatura. Franco Jr.<br />

(1986) comenta que a literatura foi muito influenciada pela tendência <strong>de</strong> se preservar e<br />

cristianizar as obras antigas, muito mais <strong>do</strong> que criar. A originalida<strong>de</strong> das autorias não tinha<br />

relevância; o importante era conservar a literatura clássica através <strong>do</strong>s trabalhos <strong>do</strong>s copistas<br />

nos mosteiros. Difundia-se, portanto, o latim somente, por julgar<strong>em</strong>-no digno <strong>de</strong> tradição<br />

literária, o que não acontecia com o idioma germânico. Contu<strong>do</strong>, o próprio latim também já<br />

sofrera alterações e <strong>em</strong>pobrecimento.<br />

A literatura v<strong>em</strong> a ser um <strong>do</strong>s instrumentos mais completos para o conhecimento <strong>de</strong> uma<br />

época. Huizinga (1985) expõe que é fato consi<strong>de</strong>rável a preservação privilegiada <strong>de</strong><br />

<strong>do</strong>cumentos escritos <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento <strong>do</strong>s artísticos. A literatura medieval, segun<strong>do</strong> o autor, <strong>em</strong><br />

especial a <strong>do</strong> fim da Ida<strong>de</strong> Média, legou um acervo rico, com produções <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os gêneros:<br />

<strong>do</strong> mais eleva<strong>do</strong> ao mais vulgar; <strong>do</strong> sério ao cômico; <strong>do</strong> religioso ao profano. A tradição<br />

escrita não se restringiu à literatura, mas também elevou o valor <strong>do</strong>s textos oficiais e<br />

<strong>do</strong>cumentos que auxiliam a compreensão <strong>do</strong> medievo.<br />

58


Thoorens (1966) <strong>de</strong>staca que o nascimento das literaturas que circularam na Primeira Ida<strong>de</strong><br />

Média <strong>de</strong>ve-se, mormente, às reações sociais na época <strong>do</strong>s confrontos com os povos bárbaros.<br />

A junção <strong>do</strong>s aspectos pagãos germânicos aos cristãos <strong>de</strong>finiu substancialmente o panorama<br />

artístico-literário da Ida<strong>de</strong> Média como um to<strong>do</strong>. Como ex<strong>em</strong>plo, o autor menciona a<br />

literatura espanhola como nascida da reconquista <strong>de</strong> seu território; a literatura francesa<br />

heróica como resultante da luta contra os árabes e da ação vitoriosa <strong>de</strong> Carlos Magno e seus<br />

solda<strong>do</strong>s; na orig<strong>em</strong> das lendas que comporão a literatura germânica está a presença <strong>de</strong> Átila;<br />

na Grã-Bretanha, na Escandinávia e na Islândia, a base das literaturas, como também o<br />

fundamento das futuras nacionalida<strong>de</strong>s, repousa sobre a oposição aos bárbaros <strong>do</strong> exterior.<br />

Estas literaturas, entretanto, foram criadas por povos que precisavam alimentar-se das<br />

tradições orais, numa tentativa <strong>de</strong> manter a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s antepassa<strong>do</strong>s para consagrar a<br />

própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. No entanto, foram “forjadas <strong>em</strong> línguas vulgares pelos letra<strong>do</strong>s latinos,<br />

cuja formação se <strong>de</strong>ve a livros que conservam o espírito da cultura greco-latina”<br />

(THOORENS, 1966, p. 214). A Europa foi palco <strong>de</strong> ruínas <strong>em</strong> que as r<strong>em</strong>iniscências <strong>do</strong><br />

classicismo latino uniram-se às ascendências étnicas e lingüísticas que se propalaram nas<br />

lutas.<br />

Franco Jr. (1986) aponta para três gêneros literários que se <strong>de</strong>stacaram: um romano, um<br />

cristão e um tipicamente medieval. O gênero romano abordava obras <strong>de</strong> cunho histórico, on<strong>de</strong><br />

se sobressaíram Gregório <strong>de</strong> Tours e Beda, o Venerável. Já o cristão é marca<strong>do</strong> pelas<br />

hagiografias 11 e o medieval, propriamente dito, caracteriza-se pelo en<strong>ciclo</strong>pedismo, que serviu<br />

<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo para inúmeras obras nos séculos posteriores. Entre as obras mais elevadas estão a<br />

Etymologiae, <strong>de</strong> Isi<strong>do</strong>ro <strong>de</strong> Sevilha, e a De natura rerum, <strong>de</strong> Beda. As hagiografias foram <strong>de</strong><br />

extr<strong>em</strong>a importância, pois representavam um gênero literário acrítico e edificante que visava a<br />

confortar as almas, incliná-las à <strong>de</strong>voção e ao recolhimento, b<strong>em</strong> como a apresentar o santo<br />

como um mo<strong>de</strong>lo a ser segui<strong>do</strong>. O sucesso <strong>de</strong> sua divulgação e proliferação foi expressivo <strong>de</strong><br />

tal mo<strong>do</strong> que muitas adquiriram uso litúrgico.<br />

As outras artes efetuavam uma espécie <strong>de</strong> síntese <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos origina<strong>do</strong>s <strong>de</strong> fontes diversas.<br />

Franco Jr. (1986) comenta sobre a preservação das técnicas da arte oci<strong>de</strong>ntal <strong>do</strong>s séculos IV a<br />

VIII e das características arquitetônicas provindas da arte romana clássica. Dos germânicos,<br />

conservou o cunho não figurativo e o geometrismo estiliza<strong>do</strong>, próprio <strong>de</strong> tribos nôma<strong>de</strong>s.<br />

11 Biografia <strong>de</strong> santo; escrito acerca <strong>do</strong>s santos.<br />

59


Mesmo após as invasões bárbaras, os oci<strong>de</strong>ntais continuaram a manter contato, através <strong>de</strong><br />

merca<strong>do</strong>res e missionários, com povos <strong>do</strong> Oriente, o que proporcionou certa influência,<br />

especialmente, no hieratismo das formas. Até mesmo os povos mais distantes no t<strong>em</strong>po, como<br />

os Celtas, <strong>de</strong>ixaram traços na arte oci<strong>de</strong>ntal: os monges irlan<strong>de</strong>ses contribuíram com as<br />

iluminuras, legan<strong>do</strong> a utilização <strong>de</strong> linhas abstratas e ornamentais. E, afinal, da arte cristã<br />

primitiva a herança foi a t<strong>em</strong>ática e o simbolismo.<br />

2.2.1.2 Ida<strong>de</strong> Média Central e Baixa Ida<strong>de</strong> Média<br />

Na fase central da Ida<strong>de</strong> Média, a pre<strong>em</strong>inência exercida pela cultura clerical sobre a laica<br />

sofreu um <strong>de</strong>sgaste. Devi<strong>do</strong> à necessida<strong>de</strong> provinda <strong>do</strong>s progressos econômicos da época (a<br />

aristocracia eclesiástica e a laica disputavam acirradamente a apropriação <strong>do</strong>s exce<strong>de</strong>ntes<br />

agrícola), a nobreza leiga enxergava no folclore o instrumento i<strong>de</strong>al para a sua afirmação<br />

psíquica e material. Franco Jr. (1986) <strong>de</strong>staca a recém-formada classe <strong>do</strong>s cavaleiros, cuja<br />

inspiração <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> fora colhida nas tradições folclóricas. Houve, <strong>de</strong> fato, uma inversão<br />

<strong>de</strong> valores neste senti<strong>do</strong>: a nobreza atual buscava fazer frente às antigas linhagens que havia<br />

clericaliza<strong>do</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a época carolíngia, a sua cultura.<br />

Num fenômeno bastante contrário, a cultura laica folclorizou el<strong>em</strong>entos cristãos e também<br />

simples acontecimentos inseri<strong>do</strong>s na vida diária da Igreja. O autor ressalta, igualmente, a<br />

questão <strong>de</strong> que essa folclorização não se <strong>de</strong>u apenas <strong>em</strong> nível urbano, com a elite laica; o<br />

campesinato foi atingi<strong>do</strong> <strong>em</strong> proporção ainda maior, pois s<strong>em</strong>pre se manteve mais próximo às<br />

fontes tradicionais <strong>de</strong> cultura.<br />

Neste contexto diferencia<strong>do</strong> <strong>do</strong>s séculos anteriores, as relações entre o clericalismo e o<br />

folclorismo <strong>de</strong>notam suas influências no campo da arte, que se <strong>de</strong>stinava a um público maior<br />

<strong>do</strong> que a literatura conseguia alcançar. O letramento mínimo da população vinha como o<br />

melhor veículo <strong>de</strong> propagação <strong>do</strong>s valores eclesiásticos; ainda assim, necessitava adaptar sua<br />

mensag<strong>em</strong> ao povo através da incorporação <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos familiares à cultura popular. Então,<br />

o amálgama ocorri<strong>do</strong> neste perío<strong>do</strong> não esteve, absolutamente, fora <strong>de</strong> controle das<br />

autorida<strong>de</strong>s clericais; era, sim, uma forma eficiente <strong>de</strong> conquistar a confiança das massas,<br />

principalmente daquelas ainda não convertidas. Franco Jr. (1986), porém, esclarece que a<br />

combinação <strong>do</strong>s el<strong>em</strong>entos ocorreu <strong>de</strong> maneira diversificada no t<strong>em</strong>po e na intensida<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />

acor<strong>do</strong> com o quadro histórico mais amplo.<br />

60


2.2.1.2.1 Literatura<br />

A literatura da fase medievo-central esteve condicionada à bipolarida<strong>de</strong> cultural e ao idioma<br />

utiliza<strong>do</strong>. Duas fortes vertentes apareceram: o latim erudito, representan<strong>do</strong> a cultura clerical e<br />

o vulgar, a cultura popular. É sabi<strong>do</strong> que as tradições populares, <strong>em</strong> que el<strong>em</strong>entos pagãos<br />

sobejam, estão mais impregnadas na linguag<strong>em</strong> vulgar. Franco Jr. (1986), no entanto, assinala<br />

existir aí uma complexida<strong>de</strong>: “Na literatura latina, ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma produção claramente<br />

erudita (crônicas, hagiografias, poesias <strong>de</strong> cunho clássico), havia uma <strong>de</strong> espírito popular e<br />

mesmo antieclesiástica, a <strong>do</strong>s goliar<strong>do</strong>s” (p. 136).<br />

A dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> entendimento e compreensão sobre os goliar<strong>do</strong>s refere-se ao fato da<br />

incerteza quanto à estratificação social <strong>de</strong>sta classe. Franco Jr. questiona o fato <strong>de</strong> os<br />

goliar<strong>do</strong>s ser<strong>em</strong> estudantes pobres e errantes, espécie <strong>de</strong> críticos da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po.<br />

Aponta para a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma variabilida<strong>de</strong> social entre eles e a probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que<br />

realmente foss<strong>em</strong> pobres, mas que <strong>de</strong>tivess<strong>em</strong> el<strong>em</strong>entos culturais ricos. Comenta ainda o<br />

aspecto extr<strong>em</strong>amente satírico, burlesco e erótico que divulgavam nas poesias. De qualquer<br />

forma, a poesia goliar<strong>de</strong>sca era erudita na língua e popular na versificação, na t<strong>em</strong>ática e nas<br />

fontes inspira<strong>do</strong>ras.<br />

O nome recebi<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve-se à característica que tinham <strong>de</strong> apreciar o riso, o gracejo e <strong>de</strong> se<br />

portar<strong>em</strong> contrários aos monges formalistas, que viam peca<strong>do</strong> <strong>em</strong> to<strong>do</strong>s os <strong>de</strong>leites da vida.<br />

Thoorens (1966) completa dizen<strong>do</strong> que o movimento <strong>do</strong>s goliar<strong>do</strong>s, sua poesia alegre e <strong>em</strong><br />

forma <strong>de</strong> jogral, revelava um mal-estar mais compenetra<strong>do</strong>, pois representava a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

livre expressão, <strong>de</strong> reconciliação com a vida, como se concebess<strong>em</strong> que o hom<strong>em</strong> po<strong>de</strong>ria<br />

viver b<strong>em</strong>, <strong>em</strong> paz consigo e com Deus.<br />

A literatura <strong>em</strong> língua vulgar manteve as mesmas relações ambíguas com a cultura: por um<br />

la<strong>do</strong> apresentou textos <strong>de</strong> forte conotação religiosa e, por outro, divulgou mensagens<br />

acentuadamente laicas. Ex<strong>em</strong>plificam a literatura vernácula <strong>de</strong> cunho religioso as canções <strong>de</strong><br />

gesta, já registradas anteriormente. A literatura clerical concebeu o tipo i<strong>de</strong>al que a Instituição<br />

Católica <strong>de</strong>sejava intitular como herói: o cavaleiro das Cruzadas, porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> um halo <strong>de</strong><br />

sacrossantida<strong>de</strong> que o colocava como o correspon<strong>de</strong>nte leigo <strong>do</strong> santo na Terra.<br />

61


A literatura vernácula que se contrapunha à <strong>de</strong> caráter religioso foi representada, sobretu<strong>do</strong>,<br />

pelo conjunto <strong>de</strong> obras composto pela “Matéria da Bretanha”: lendas e contos folclóricos,<br />

possivelmente <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> céltica. Não cabe neste tópico a discussão acerca <strong>do</strong>s entraves que se<br />

opõ<strong>em</strong> às <strong>de</strong>scobertas e registros das verda<strong>de</strong>iras fontes célticas e da transmissão, assim como<br />

da literalização da oralida<strong>de</strong> celta, portanto, há que se <strong>de</strong>stacar apenas os gran<strong>de</strong>s <strong>ciclo</strong>s <strong>de</strong>sta<br />

literatura.<br />

Franco Jr. (1986) refere-se ao primeiro <strong>ciclo</strong> como aquele que se <strong>de</strong>senvolveu <strong>em</strong> torno da<br />

figura <strong>do</strong> Rei Artur e os cavaleiros da Távola Re<strong>do</strong>nda, nas narrativas <strong>de</strong> Chrétiens <strong>de</strong> Troyes.<br />

As influências recebidas <strong>do</strong> medievo sobre estas obras reca<strong>em</strong> sobre uma clericalização a<br />

partir <strong>do</strong> século XIII, quan<strong>do</strong> o eixo da narrativa <strong>de</strong>slocou-se <strong>do</strong> rei para o Graal.<br />

Incansavelmente discutida a sua orig<strong>em</strong>, diz-se que o Graal, provavelmente, era um vaso<br />

mágico da mitologia celta que foi transforma<strong>do</strong> no cálice que, supostamente, teria recebi<strong>do</strong> o<br />

sangue <strong>de</strong> Cristo na cruz. A D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal, uma das obras selecionadas para esta<br />

pesquisa, engloba narrativas concernentes à busca <strong>de</strong>ste cálice sagra<strong>do</strong>. Os registros são<br />

antigos e há mais <strong>de</strong> uma prosificação <strong>do</strong>s versos orais, d<strong>em</strong>onstran<strong>do</strong> as novas tonalida<strong>de</strong>s<br />

adquiridas com a cristianização <strong>do</strong> herói cavaleiresco. Sobre este aspecto, mais <strong>de</strong>talhes serão<br />

aborda<strong>do</strong>s posteriormente, apoia<strong>do</strong>s nas referências da tradução <strong>de</strong> Heitor Megale, cujo texto<br />

é reconheci<strong>do</strong> nacional e internacionalmente pelos avança<strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s.<br />

O segun<strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> da matéria arturiana t<strong>em</strong> como t<strong>em</strong>a principal o amor que não correspondia à<br />

concepção cristã <strong>de</strong> sentimento eleva<strong>do</strong>, que a Igreja <strong>de</strong>clarava como digno <strong>de</strong> Deus. O maior<br />

representante <strong>de</strong>sta fase é Tristão e Isolda, cuja história <strong>do</strong> cavaleiro da Távola Re<strong>do</strong>nda<br />

registra um amor adúltero pela esposa <strong>de</strong> seu próprio tio. O conceito <strong>de</strong> amor ou relação<br />

amorosa, neste contexto, visto como uma relação adúltera é obra da visão cristão-católica e<br />

não representa o mesmo entendimento para os laicos.<br />

O terceiro <strong>ciclo</strong> da matéria da Bretanha reúne pequenas narrativas rimadas ou po<strong>em</strong>etos <strong>de</strong><br />

orig<strong>em</strong> folclórica sobre o amor, a <strong>cavalaria</strong> e o envolvimento sobrenatural, freqüent<strong>em</strong>ente<br />

impulsiona<strong>do</strong> pelo fantástico recebi<strong>do</strong> das lendas celtas. De acor<strong>do</strong> com Franco Jr. (1986), o<br />

maior expoente <strong>de</strong>ste <strong>ciclo</strong> é Maria <strong>de</strong> França e essas narrativas receberam o nome <strong>de</strong> lais<br />

bretões.<br />

62


Outra obra <strong>de</strong> relevância na literatura cavaleiresca oci<strong>de</strong>ntal, que parece pertencer à mesma<br />

t<strong>em</strong>ática <strong>do</strong> amor, também escolhida para esta pesquisa, intitula-se Amadis <strong>de</strong> Gaula.<br />

Narrativa <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> das mais famosas, cuja autoria original t<strong>em</strong> si<strong>do</strong> reivindicada por<br />

alguns portugueses. Atualmente é atribuída a Vasco <strong>de</strong> Lobeira, um trova<strong>do</strong>r <strong>do</strong> século XIII,<br />

entretanto os registros mais antigos, possivelmente sua primeira versão conhecida, datam <strong>de</strong><br />

1508 e são <strong>do</strong> espanhol Garci Ordóñez <strong>de</strong> Montalvo. A <strong>de</strong>speito <strong>de</strong>ste probl<strong>em</strong>a relativo à<br />

autoria da obra medieval <strong>em</strong> questão, importa dizer que o Amadis possui características muito<br />

s<strong>em</strong>elhantes às <strong>novelas</strong> <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> <strong>arturiano</strong>, <strong>em</strong>bora não se estruture <strong>em</strong> nenhum conjunto<br />

<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> <strong>de</strong> lendas.<br />

Alguns autores e críticos portugueses asseveram que o romance se filia, com certeza, nos<br />

gêneros literários da matéria da Bretanha. A t<strong>em</strong>ática amorosa que aproxima a obra <strong>do</strong><br />

segun<strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> <strong>arturiano</strong> é ainda bastante discutível. Entre os principais críticos <strong>de</strong>staca-se<br />

Marques (1942), crítico português que distingue algumas características que colocam o<br />

Amadis <strong>em</strong> posição diferente <strong>de</strong> Tristão e Isolda. Embora haja certa similarida<strong>de</strong> quanto à<br />

t<strong>em</strong>ática, Amadis não carrega o conflito cristão-pagão no cerne da t<strong>em</strong>ática amorosa. Ocorre<br />

que se <strong>em</strong> Tristão e Isolda há a questão <strong>do</strong> adultério posta <strong>em</strong> confronto com o verda<strong>de</strong>iro<br />

amor, <strong>em</strong> Amadis, o amor puro surge como uma “junção <strong>do</strong> el<strong>em</strong>ento cavalheiresco ao<br />

el<strong>em</strong>ento sentimental, <strong>de</strong> influência nitidamente trova<strong>do</strong>resca” (MARQUES, 1942, p. 15).<br />

Marques dispõe o amor como “mola mestra” das ações heróicas <strong>do</strong> cavaleiro. Esta<br />

característica seria distintiva das <strong>novelas</strong> arturianas, mas a obra apresenta s<strong>em</strong>elhanças que as<br />

aproximam. O i<strong>de</strong>al amoroso <strong>do</strong> Amadis, para o crítico português, <strong>de</strong>signa incontestavelmente<br />

uma conformida<strong>de</strong> com as cantigas trova<strong>do</strong>rescas da Ida<strong>de</strong> Média portuguesa e este traço é o<br />

que <strong>de</strong>svia a obra da matéria da Bretanha. Não nega, entretanto, as influências sofridas pelo<br />

escritor quinhentista, <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> se t<strong>em</strong> registro da primeira versão escrita <strong>do</strong> Amadis, que<br />

certamente conhecia o conjunto <strong>de</strong> lendas arturianas e, por isso, atribui à obra as<br />

características que julga aproximá-la e, também, distanciá-la das <strong>novelas</strong> cavaleirescas mais<br />

antigas:<br />

O amor adúltero, toma<strong>do</strong> como forma natural e necessária <strong>do</strong> verda<strong>de</strong>iro<br />

amor; o fatalismo da paixão amorosa; a sua exaltação; certos aspectos<br />

alegóricos e simbólicos <strong>de</strong> carácter místico uniam-se ao maravilhoso <strong>do</strong>s<br />

contos célticos e davam a esta literatura um carácter estranhamente i<strong>de</strong>alista<br />

e sentimental. Nela, o amor, até aí <strong>de</strong> d<strong>em</strong>inuta influência nas canções <strong>de</strong><br />

gesta, torna-se a razão <strong>de</strong>terminante das acções heróicas, e o el<strong>em</strong>ento<br />

63


f<strong>em</strong>inino surge, por sua vez, com a mesma feição que tinha nas canções<br />

trova<strong>do</strong>rescas da língua <strong>de</strong> oc (MARQUES, 1942, p. 15-16).<br />

Outro gênero na literatura vernácula contrapõe-se à t<strong>em</strong>ática religiosa – os fabliaux. Para<br />

Franco Jr. (1986) constitu<strong>em</strong> uma espécie <strong>de</strong> correspon<strong>de</strong>nte <strong>em</strong> língua vulgar da poesia<br />

goliárdica. Pequenos contos versa<strong>do</strong>s, simples, mas carrega<strong>do</strong>s <strong>de</strong> comicida<strong>de</strong> grosseira.<br />

Apresentavam certa s<strong>em</strong>elhança com o teatro cômico clássico e <strong>de</strong>tinham muitas<br />

características orais; especialmente uma intensa crítica social. Numa época <strong>em</strong> que o el<strong>em</strong>ento<br />

f<strong>em</strong>inino ganhava certo <strong>de</strong>staque através <strong>do</strong> culto marial e da imag<strong>em</strong> positiva divulgada<br />

pelas cantigas trova<strong>do</strong>rescas, o fabliaux <strong>de</strong>svelava um forte antif<strong>em</strong>inismo, uma reação<br />

masculina à pequena recuperação da imag<strong>em</strong> social da mulher representada pela Virg<strong>em</strong><br />

Maria e pela sublimação <strong>do</strong> amor inalcançável mostra<strong>do</strong> pela lírica trova<strong>do</strong>resca.<br />

Uma fonte inesgotável <strong>de</strong> medievalida<strong>de</strong> literária, nascida <strong>em</strong> princípios <strong>do</strong> século XII, é a<br />

lírica trova<strong>do</strong>resca. Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> o aspecto correspon<strong>de</strong>nte às relações confrontantes entre as<br />

culturas laica e eclesiástica, po<strong>de</strong>-se dizer que este gênero colocava-se numa posição<br />

intermediária. Na historiografia literária, é concebi<strong>do</strong> como a primeira escola literária<br />

portuguesa, receben<strong>do</strong> o nome <strong>de</strong> Trova<strong>do</strong>rismo.<br />

Franco Jr. (1986) analisa o gênero a partir da bilateralida<strong>de</strong> apresentada pelas características<br />

culturais <strong>do</strong> momento. Por um la<strong>do</strong>, a lírica trova<strong>do</strong>resca sublimava o amor na sua forma<br />

espiritual, assim ocultan<strong>do</strong> o erotismo. Numa acepção religiosa, o trova<strong>do</strong>r enfrentava a<br />

impossibilida<strong>de</strong> da concretização física <strong>do</strong> amor, tornan<strong>do</strong> tal circunstância um ato <strong>de</strong><br />

contrição. Numa acepção mais social, a subordinação <strong>do</strong> poeta à sua senhora ass<strong>em</strong>elhava-se<br />

à relação vassálica e também oportunizava um paralelo com o culto à Virg<strong>em</strong> Maria. Por<br />

outro la<strong>do</strong>, a figura <strong>do</strong> trova<strong>do</strong>r mostrava-se nobre e feudal, pois compunha música e letra<br />

para que foss<strong>em</strong> interpretadas <strong>em</strong> jograis.<br />

As composições eram chamadas <strong>de</strong> cantigas por ser<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre acompanhadas por canto e<br />

instrumentos musicais. As cantigas eram manuscritas <strong>em</strong> galego-português e foram<br />

colecionadas nos chama<strong>do</strong>s cancioneiros, sen<strong>do</strong> que os mais conheci<strong>do</strong>s são: O Cancioneiro<br />

da Ajuda, O Cancioneiro da Biblioteca Nacional e o Cancioneiro da Vaticana. A produção das<br />

cantigas abordava t<strong>em</strong>as freqüentes: o amor, o escárnio e o <strong>de</strong>sprezo. Portanto, foram<br />

64


divididas <strong>em</strong> Líricas e Satíricas e subdivididas <strong>em</strong> Cantigas <strong>de</strong> Amor e <strong>de</strong> Amigo (líricas) e<br />

Cantigas <strong>de</strong> Escárnio e <strong>de</strong> Maldizer (satíricas).<br />

As cantigas <strong>de</strong> amor normalmente traziam um eu-lírico masculino que cantava os atributos <strong>de</strong><br />

seu amor, a qu<strong>em</strong> tratava como superior. Colocava-se s<strong>em</strong>pre à disposição da dama, que se<br />

ass<strong>em</strong>elhava à figura <strong>do</strong> suserano e ele, s<strong>em</strong>pre submisso, reproduzia a figura <strong>do</strong> vassalo. É<br />

neste ponto <strong>em</strong> que se percebe a relação hierárquico-feudal. O eu-lírico canta a <strong>do</strong>r <strong>do</strong> amor<br />

inalcançável e se põe como um presta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> serviços à espera <strong>de</strong> benefícios <strong>de</strong> sua senhora.<br />

As cantigas <strong>de</strong> amigo mostravam um eu-lírico f<strong>em</strong>inino, o que não quer dizer que a autoria<br />

seja f<strong>em</strong>inina, é importante l<strong>em</strong>brar. O eu-lírico canta o amor por seu “amigo”, que naquele<br />

contexto significava namora<strong>do</strong> e aparecia acompanhada <strong>de</strong> amigas e <strong>de</strong> sua mãe. Igualmente<br />

canta a <strong>do</strong>r <strong>de</strong> um amor, porém da ausência <strong>do</strong> ama<strong>do</strong> e não da falta <strong>de</strong> correspondência.<br />

Outro aspecto distintivo das cantigas <strong>de</strong> amigo é que parece não haver, implicitamente, a<br />

relação vassálica que se vislumbra nas cantigas <strong>de</strong> amor. Geralmente, o eu-lírico f<strong>em</strong>inino se<br />

mostra uma mulher <strong>do</strong> povo.<br />

As cantigas satíricas, divididas <strong>em</strong> <strong>de</strong> escárnio e <strong>de</strong> maldizer, apresentam uma t<strong>em</strong>ática<br />

cômica e grosseira ao mesmo t<strong>em</strong>po. Nas cantigas <strong>de</strong> escárnio o eu-lírico satiriza uma pessoa<br />

<strong>em</strong> particular. Era uma sátira indireta, recheada <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s dúbios e que não revelava,<br />

abertamente, o nome da pessoa-alvo. Já as cantigas <strong>de</strong> maldizer traziam também uma sátira,<br />

porém <strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> metáforas ou duplos senti<strong>do</strong>s. Por isso, percebe-se um <strong>de</strong>sprezo b<strong>em</strong> mais<br />

marca<strong>do</strong> <strong>do</strong> que nas cantigas <strong>de</strong> escárnio, on<strong>de</strong> a intenção maior é ridicularizar alguém. Nas<br />

cantigas <strong>de</strong> maldizer é bastante comum uma agressão verbal à pessoa satirizada e, por vezes,<br />

encontram-se até mesmo palavras <strong>de</strong> baixo calão. O nome da pessoa-alvo era revela<strong>do</strong> ou não.<br />

Essas cantigas satíricas foram expressões poéticas que representaram o esta<strong>do</strong> psicológico <strong>de</strong><br />

um t<strong>em</strong>po. É possível que <strong>de</strong>notass<strong>em</strong> as relações pessoais e sociais <strong>do</strong>s trova<strong>do</strong>res, b<strong>em</strong><br />

como abordass<strong>em</strong> assuntos polêmicos que afetass<strong>em</strong> uma <strong>de</strong>terminada comunida<strong>de</strong>.<br />

Atingiram a vida social e política da época, s<strong>em</strong>pre num tom <strong>de</strong> irreverência. Foram escritas<br />

<strong>de</strong> forma rica, apresentan<strong>do</strong> vocabulário vasto, repleto <strong>de</strong> trocadilhos e outras figuras <strong>de</strong><br />

linguag<strong>em</strong>. Também fugiam às normas mais rígidas das cantigas líricas e acabavam por<br />

oferecer novos recursos poéticos.<br />

65


O século XIII <strong>de</strong>senvolveu uma literatura informativa que tencionava compilar to<strong>do</strong> o<br />

conhecimento da época, a literatura en<strong>ciclo</strong>pédica. Franco Jr. (1986) julga que esse t<strong>em</strong>po foi<br />

mais criativo <strong>em</strong> vários campos, mostran<strong>do</strong>-se hábil na sist<strong>em</strong>atização <strong>do</strong> saber. Diversas<br />

sumas <strong>de</strong> variadas t<strong>em</strong>áticas: teológicas, filosóficas, científicas, hagiográficas surgiram.<br />

Escritas <strong>em</strong> língua vulgar, La Divina Commedia e Le Roman <strong>de</strong> la Rose foram as mais<br />

importantes na evolução cultural <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>.<br />

66


3 A MULHER NA IDADE MÉDIA: FEITICEIRAS E BRUXAS COMO FIGURAS DA<br />

MARGINALIDADE<br />

67<br />

“A beleza física não vai além da pele. Se<br />

os homens viss<strong>em</strong> o que está sob a pele,<br />

a visão das mulheres lhes viraria o<br />

estômago. Quan<strong>do</strong> n<strong>em</strong> sequer pod<strong>em</strong>os<br />

tocar com a ponta <strong>do</strong>s <strong>de</strong><strong>do</strong>s um cuspe<br />

ou esterco, como pod<strong>em</strong>os <strong>de</strong>sejar<br />

abraçar esse saco <strong>de</strong> excr<strong>em</strong>ento”.<br />

Aba<strong>de</strong> Cluny, século X.<br />

«História <strong>do</strong> me<strong>do</strong> no Oci<strong>de</strong>nte». In: J.<br />

Delumeau, p. 318 (1989).<br />

O el<strong>em</strong>ento f<strong>em</strong>inino da socieda<strong>de</strong> humana s<strong>em</strong>pre representou papéis controversos, interna e<br />

externamente. A história da humanida<strong>de</strong> registra a mulher <strong>em</strong> situações, posições e<br />

<strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhos bastante varia<strong>do</strong>s e repletos <strong>de</strong> transformações ao longo <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po e da<br />

evolução. A socieda<strong>de</strong> estabelecida no Oci<strong>de</strong>nte europeu convergiu ao centro <strong>de</strong> uma<br />

comunida<strong>de</strong> fundamentada <strong>em</strong> diversas culturas que entraram <strong>em</strong> choque ao final da Era<br />

Antiga. Como já exposto <strong>em</strong> tópicos anteriores, as invasões bárbaras, muitas vezes<br />

consi<strong>de</strong>radas o marco inicial da Ida<strong>de</strong> Média ou ponto crítico da <strong>de</strong>cadência <strong>do</strong> Império<br />

Romano, propiciaram esta mescla cultural que veio a formar o Oci<strong>de</strong>nte Medieval Europeu.<br />

O papel da mulher não esteve, ao longo da história, necessariamente <strong>em</strong> crescente evolução,<br />

como muitas vezes se avalia. O que é <strong>de</strong> conhecimento geral, a partir da criação <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte,<br />

principalmente a partir da Cristianização instituída como Igreja Católica, é o estigma<br />

fundamenta<strong>do</strong> no <strong>do</strong>mínio patriarcalista da socieda<strong>de</strong> medieval. Mas há que se compreen<strong>de</strong>r<br />

que este fato, praticamente oficializa<strong>do</strong> durante o império <strong>de</strong> Carlos Magno, não correspon<strong>de</strong><br />

a uma progressão <strong>do</strong> que antes a mulher vivia na Ida<strong>de</strong> Antiga. As culturas <strong>de</strong> diferentes<br />

povos e tribos, que se situavam <strong>em</strong> localida<strong>de</strong>s, muitas vezes, longínquas umas das outras,<br />

permitiam o <strong>de</strong>senvolvimento social <strong>em</strong> direções as mais variadas e <strong>em</strong> posições distintas,<br />

conforme a herança étnica e as tradições cultuadas.<br />

No capítulo anterior discutiu-se que, culturalmente, outros povos (os celtas, por ex<strong>em</strong>plo)<br />

consi<strong>de</strong>raram a mulher como represente <strong>do</strong> B<strong>em</strong>. Não foi, no entanto, a única postura diante<br />

<strong>do</strong> el<strong>em</strong>ento f<strong>em</strong>inino e a imag<strong>em</strong> da Deusa como companheira eterna <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r. Há<br />

registros <strong>de</strong> outras culturas antigas que, igualmente, <strong>de</strong>legavam à mulher uma posição <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>staque nas ativida<strong>de</strong>s <strong>em</strong> socieda<strong>de</strong> e <strong>em</strong> família, estan<strong>do</strong> esta imag<strong>em</strong> ligada ou não à


divinda<strong>de</strong>. N<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre o aspecto religioso foi <strong>de</strong>terminante. A capacida<strong>de</strong> física<br />

aparent<strong>em</strong>ente frágil e compleição robusta, ao mesmo t<strong>em</strong>po, unidas à capacida<strong>de</strong> gera<strong>do</strong>ra <strong>de</strong><br />

vidas e da reprodução foram fatores <strong>de</strong> admiração, respeito e até mesmo t<strong>em</strong>or por parte <strong>do</strong>s<br />

homens, <strong>em</strong> muitas socieda<strong>de</strong>s.<br />

Da mesma forma, o conceito <strong>de</strong> mulher como um ser inferior não nasceu na Ida<strong>de</strong> Média,<br />

tampouco é criação da Igreja Católica. Já o Império Romano concebia a mulher como<br />

naturalmente inferior. Mace<strong>do</strong> (1990) afirma que a socieda<strong>de</strong> romana excluía as mulheres <strong>do</strong>s<br />

cargos públicos, da carreira administrativa e a relegava a casa, que, por sua vez, era<br />

comandada pelo pai, pelo mari<strong>do</strong> ou pelo sogro. A liberda<strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina era <strong>de</strong> tal maneira<br />

cerceada que mesmo sen<strong>do</strong> a mulher juridicamente livre, estava presa aos interesses<br />

familiares. Além <strong>do</strong> que, a liberda<strong>de</strong> condicionava-se à posição social <strong>em</strong> que uma dama se<br />

encontrasse.<br />

As diferenças no senti<strong>do</strong> mais cultural <strong>do</strong> que <strong>de</strong> gênero, estiveram s<strong>em</strong>pre à frente <strong>do</strong><br />

mistério envolto na criação <strong>do</strong> ser f<strong>em</strong>inino, da mulher. O gênero e as diferenças sexuais<br />

seguiram o rastro <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento cultural <strong>de</strong> cada ponto <strong>do</strong> globo. Houve muita<br />

divergência e convergência, instalan<strong>do</strong>-se aí a chave para a compreensão <strong>do</strong>s fatores que<br />

formaram as opiniões diversificadas quanto ao papel <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penha<strong>do</strong> pela mulher. Isto não se<br />

refere à questão <strong>de</strong> gênero, unicamente. Entretanto, po<strong>de</strong>-se entrever que estas questões<br />

estiveram diretamente associadas ao mo<strong>do</strong> da socieda<strong>de</strong> encarar as relações humanas, as<br />

funções, os parentescos e as profissões. Inclu<strong>em</strong>-se também os traços herda<strong>do</strong>s das tradições<br />

antepassadas, no que concerne às concepções <strong>de</strong> família, lar, hierarquia social e guerreira,<br />

além <strong>do</strong>s aspectos que regulavam o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> cada nação, compreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong>-se como<br />

unida<strong>de</strong> sócio-cultural.<br />

3.1 A FAMÍLIA E A MULHER<br />

O princípio da Ida<strong>de</strong> Média foi um perío<strong>do</strong> bastante conturba<strong>do</strong>, dadas as incursões guerreiras<br />

<strong>de</strong> povos estrangeiros ao Império Romano. Até o século IX as normas bárbaras tocaram<br />

profundamente os povos europeus; nos séculos seguintes, até mesmo durante o auge <strong>do</strong><br />

feudalismo, entre os séculos X e XII, as leis germânicas bárbaras ainda permaneceram na<br />

68


cultura oci<strong>de</strong>ntal. De acor<strong>do</strong> com Mace<strong>do</strong> (1990), a mulher oci<strong>de</strong>ntal, fruto da mescla<br />

cultural, gozava <strong>de</strong> um espaço restrito, juridicamente, à esfera <strong>do</strong>méstica e familiar; mesmo<br />

limitada ao ambiente caseiro, não possuía privilégios.<br />

A família aristocrática era, inicialmente, composta <strong>de</strong> forma linear pelos gran<strong>de</strong>s clãs<br />

forma<strong>do</strong>s. To<strong>do</strong>s que trabalhavam na casa agregavam-se à família, que não era <strong>de</strong>terminada<br />

apenas pelos laços consangüíneos. Deste mo<strong>do</strong>, o grau <strong>de</strong> parentesco era amplo, propician<strong>do</strong><br />

alianças e abarcan<strong>do</strong> filiações. Do estabelecimento das relações feu<strong>do</strong>-vassálicas, esse quadro<br />

foi se transforman<strong>do</strong> num esforço <strong>de</strong> manter o patrimônio, uma vez que o feudalismo<br />

condicionou o teci<strong>do</strong> social <strong>de</strong> áreas nobres da Europa. Assim, o parentesco foi per<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a<br />

linearida<strong>de</strong> horizontal anterior, abrin<strong>do</strong> espaço, cada vez mais, a uma verticalida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte ou a <strong>de</strong>scendência por meio da linhag<strong>em</strong> familiar.<br />

Mace<strong>do</strong> (1990) acrescenta, ainda, que estas mudanças afetaram profundamente a camada<br />

nobre da socieda<strong>de</strong>. Entre os séculos X e XI passaram a favorecer os componentes familiares<br />

<strong>do</strong> sexo masculino, prejudican<strong>do</strong> a mulher no momento da sucessão da herança familiar. Mais<br />

tar<strong>de</strong>, até mesmo filhos homens sofreram prejuízos na sucessão, pois somente aos<br />

primogênitos era da<strong>do</strong> o direito <strong>de</strong> herdar o melhor <strong>do</strong> lega<strong>do</strong> da família. Os irmãos menores,<br />

por sua vez, estavam sujeitos ao irmão mais velho, o chefe da casa, ten<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s os outros<br />

subordina<strong>do</strong>s a sua vonta<strong>de</strong>. T<strong>em</strong>-se registro <strong>de</strong> muitos filhos segun<strong>do</strong>s e terceiros que<br />

aban<strong>do</strong>navam o lar <strong>em</strong> busca da própria fortuna.<br />

Esclarece o historia<strong>do</strong>r que as mudanças ocorridas na forma <strong>de</strong> transmissão <strong>de</strong> bens<br />

representam uma atitu<strong>de</strong> <strong>em</strong> prol da não fragmentação <strong>do</strong> patrimônio familiar. A mulher,<br />

neste contexto, era excluída da sucessão da família <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> ao entrar para a família <strong>do</strong><br />

esposo. Mesmo viúva, <strong>em</strong> sua nova família, a mulher não herdava os bens; apenas mantinha a<br />

sua posse, quan<strong>do</strong> recebi<strong>do</strong>s no casamento. Aos jovens rapazes ainda havia a esperança <strong>de</strong> um<br />

matrimônio satisfatório; era a chance <strong>de</strong> formar sua própria família e conjunto <strong>de</strong> bens, a<br />

partir <strong>do</strong> <strong>do</strong>te que recebiam <strong>do</strong> pai da noiva.<br />

As estratégias matrimoniais tinham por função organizar e controlar as relações sociais. O<br />

casamento, sobretu<strong>do</strong>, não mais era <strong>do</strong> que um pacto entre duas famílias. A mulher exercia<br />

uma passivida<strong>de</strong> esperada pela socieda<strong>de</strong>: era sua principal virtu<strong>de</strong>. Entretanto, poucas<br />

69


mulheres da aristocracia esquivaram-se <strong>de</strong>ssa sujeição. Algumas damas <strong>do</strong> século XII e XIII<br />

pagaram ao rei somas grandiosas <strong>de</strong> suas fortunas <strong>em</strong> troca da escolha <strong>de</strong> um novo casamento.<br />

Os <strong>do</strong>tes po<strong>de</strong>riam chegar a valores altíssimos e isso não constituía vantag<strong>em</strong> para a família<br />

da moça, pois instigava uma disputa consi<strong>de</strong>rável por parte <strong>do</strong>s rapazes, o que representava<br />

uma ameaça aos bens <strong>de</strong> família. Devi<strong>do</strong> a esta situação, muitos pais <strong>de</strong>cidiam enviar suas<br />

filhas aos conventos, con<strong>de</strong>nan<strong>do</strong>-as a se tornar<strong>em</strong> “esposas <strong>de</strong> Cristo”. Nesta época<br />

registrou-se um aumento <strong>de</strong> estabelecimentos religiosos, <strong>em</strong> atendimento à estratégia <strong>de</strong><br />

proteção ao patrimônio familiar. Muitas vezes era menos dispendiosa a união com Deus <strong>do</strong><br />

que a conjunção matrimonial. Mace<strong>do</strong> (1990) conclui que o <strong>de</strong>stino das mulheres aristocratas<br />

esteve completamente vincula<strong>do</strong> aos processos <strong>de</strong> transmissão <strong>de</strong> bens materiais e<br />

econômicos.<br />

Uma vez escolhi<strong>do</strong> o casamento como <strong>de</strong>stino da mulher, é notório como as formas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />

feu<strong>do</strong>-vassálicas se projetavam na relação conjugal. Amor, afeto e carinho eram<br />

manifestações pouco comuns nessas uniões. Segun<strong>do</strong> Mace<strong>do</strong> (1990) “a concepção éticosocial<br />

<strong>do</strong> amor não se i<strong>de</strong>ntificava com os compromissos e juramentos constantes nessa forma<br />

<strong>de</strong> casamento” (p. 16). A mulher dirigia-se ao esposo como seu “senhor”, <strong>de</strong>notan<strong>do</strong> assim a<br />

transposição da vassalag<strong>em</strong>, <strong>do</strong> amplo <strong>do</strong>mínio feudal, para o restringi<strong>do</strong> meio <strong>do</strong>méstico.<br />

O pacto matrimonial efetua<strong>do</strong> entre duas famílias, há que se <strong>de</strong>stacar, privilegiava os<br />

interesses da estirpe <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento <strong>do</strong>s pessoais, d<strong>em</strong>onstran<strong>do</strong> o níti<strong>do</strong> objetivo da<br />

conjugalida<strong>de</strong>: a continuida<strong>de</strong> da linhag<strong>em</strong>. Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que a socieda<strong>de</strong> praticava<br />

esta forma <strong>de</strong> relação conjugal, a Igreja propunha um outro tipo <strong>de</strong> matrimônio. No entanto,<br />

vale ressaltar que o casamento proposto pela Igreja não foi concebi<strong>do</strong> num clima total <strong>de</strong><br />

concordância entre o clero.<br />

De acor<strong>do</strong> com Mace<strong>do</strong> (1990), havia <strong>de</strong>ntro da Igreja três correntes <strong>de</strong> pensamento acerca <strong>do</strong><br />

matrimônio. A primeira era ascética e monástica e pregava a con<strong>de</strong>nação à conjunção carnal,<br />

julgan<strong>do</strong>-a como a mácula <strong>do</strong> corpo humano e, por conseguinte, o maior <strong>em</strong>pecilho à<br />

cont<strong>em</strong>plação divina; a segunda vertente pertencia ao clero secular que julgava o casamento<br />

benéfico a to<strong>do</strong>s, inclusive aos religiosos e, por fim, a terceira corrente <strong>de</strong>fendia o matrimônio<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que realiza<strong>do</strong> entre leigos, con<strong>de</strong>nan<strong>do</strong> as relações amorosas entre padres e freiras. Esta<br />

última corrente prevaleceu sobre as outras e, assim, a Igreja tornan<strong>do</strong> a relação humana um<br />

70


sacramento, pô<strong>de</strong> controlar a sexualida<strong>de</strong> e combater a fornicação. “(...) a união conjugal<br />

tornar-se-ia veículo <strong>de</strong> controle <strong>do</strong> comportamento da socieda<strong>de</strong>” (p. 17).<br />

A Igreja proferia um discurso acerca <strong>do</strong> casamento que continuava a beneficiar, sobretu<strong>do</strong>, os<br />

homens. O matrimônio, sacraliza<strong>do</strong>, garantia a estabilida<strong>de</strong> das relações <strong>do</strong>minadas pelo<br />

el<strong>em</strong>ento masculino, pois apesar <strong>de</strong> a Igreja consentir o sexo unicamente para a procriação,<br />

ainda dispunha a mulher como ser naturalmente inferior ao hom<strong>em</strong>. Essa visão foi<br />

amplamente aceita <strong>em</strong> <strong>de</strong>corrência da interpretação literal das Escrituras Sagradas que<br />

propagava a idéia <strong>de</strong> que Deus havia cria<strong>do</strong> primeiro o hom<strong>em</strong> à sua imag<strong>em</strong> e s<strong>em</strong>elhança; a<br />

mulher, entretanto, vinha como um ser secundário, à imag<strong>em</strong> <strong>do</strong> próprio hom<strong>em</strong>, referin<strong>do</strong>-se<br />

à narrativa bíblica pela qual Eva fora extraída <strong>do</strong> corpo masculino.<br />

O casamento era, s<strong>em</strong> dúvida, forma <strong>de</strong> união entre o hom<strong>em</strong> e a mulher, mas não os<br />

igualava: a mulher permanecia marcada pela fatalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Eva e responsável pela queda <strong>de</strong><br />

Adão. Personificada, ela trazia o estigma <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> e concentrava <strong>em</strong> si to<strong>do</strong>s os vícios<br />

humanos, principalmente aqueles ti<strong>do</strong>s como f<strong>em</strong>ininos, como a gula, a luxúria, a<br />

sensualida<strong>de</strong> e a sexualida<strong>de</strong>. Por to<strong>do</strong>s estes atributos, o clero enxergava a <strong>do</strong>minação <strong>do</strong><br />

esposo e as <strong>do</strong>res <strong>do</strong> parto como um castigo eterno pela danação <strong>de</strong> Eva. A Igreja, o Clero<br />

especificamente, não compreen<strong>de</strong>u o mistério <strong>do</strong> corpo f<strong>em</strong>inino, b<strong>em</strong> como a complexida<strong>de</strong><br />

da orig<strong>em</strong> da mulher, a maternida<strong>de</strong>, entre outras qualida<strong>de</strong>s f<strong>em</strong>ininas.<br />

To<strong>do</strong>s estes aspectos e fatores envolvi<strong>do</strong>s na concepção da mulher na socieda<strong>de</strong> medieval por<br />

seus cont<strong>em</strong>porâneos provinham da fragilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> sexo f<strong>em</strong>inino e da sua fraqueza perante os<br />

perigos da fornicação. A moral cristã não compreendia o prazer físico; julgava-o objeto <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>clínio, <strong>de</strong> queda moral, por ser capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>sviar o bom hom<strong>em</strong> <strong>do</strong> caminho <strong>de</strong> Deus,<br />

aprisionan<strong>do</strong>-o ao próprio corpo. Mace<strong>do</strong> (1990) ex<strong>em</strong>plifica b<strong>em</strong> o pensamento <strong>do</strong>s clérigos<br />

<strong>em</strong> relação à mulher através das idéias <strong>de</strong> um bispo germânico <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século XII, que<br />

escreveu a respeito <strong>de</strong> algumas características <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente f<strong>em</strong>ininas: “(...) são<br />

essencialmente pérfidas, frívolas, luxuriosas, impulsionadas naturalmente para a fornicação”<br />

(p. 20).<br />

Especificamente <strong>em</strong> relação à vida conjugal, o sexo apenas era permiti<strong>do</strong> com vistas à<br />

reprodução humana, sen<strong>do</strong> mesmo assim, extr<strong>em</strong>amente vigia<strong>do</strong> pela Igreja. Os casais<br />

<strong>de</strong>veriam prestar contas sobre suas ativida<strong>de</strong>s sexuais aos padres confessores. A Igreja<br />

71


<strong>de</strong>terminava perío<strong>do</strong>s <strong>em</strong> que a copulação <strong>de</strong>veria ser evitada e até mesmo proibida. Quan<strong>do</strong><br />

se julgava que a <strong>de</strong>scendência estava assegurada, o contato carnal era <strong>de</strong>saconselha<strong>do</strong>. O<br />

maior controle e observância recaíam sobre os perío<strong>do</strong>s <strong>em</strong> que a relação sexual <strong>de</strong>veria ser<br />

severamente vedada, como nas festas religiosas, nos perío<strong>do</strong>s <strong>de</strong> jejum, na menstruação da<br />

esposa, na gravi<strong>de</strong>z e resguar<strong>do</strong> após o parto e também durante o aleitamento materno. Há<br />

registros <strong>de</strong> livros <strong>de</strong> penitências àqueles que burlass<strong>em</strong> as normas religiosas relativas à vida<br />

conjugal.<br />

O <strong>de</strong>sejo sexual era fort<strong>em</strong>ente repreendi<strong>do</strong> pela Igreja, tanto mais para a mulher, mas<br />

também para o hom<strong>em</strong>. Segun<strong>do</strong> os preceitos religiosos <strong>de</strong>sta época, o mari<strong>do</strong> que amasse<br />

d<strong>em</strong>asiadamente a sua esposa e, <strong>de</strong>sta forma, sentisse mais <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> estar com ela, era<br />

igualmente consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um adúltero, pois jamais po<strong>de</strong>ria usar a esposa como um “objeto <strong>de</strong><br />

prazer”, tornan<strong>do</strong>-a sua amante. A esposa também não po<strong>de</strong>ria tratar o mari<strong>do</strong> como um<br />

amante. Seu corpo, através <strong>do</strong> casamento, passava a ser posse <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, mas sua alma<br />

pertencia a Deus, por isso o sentimento alia<strong>do</strong> ao <strong>de</strong>sejo carnal era indigno das almas <strong>do</strong><br />

Paraíso. O sist<strong>em</strong>a jurídico, por sua vez, não cedia espaço para a fantasia, a paixão ou mesmo<br />

aos prazeres mundanos, num esforço <strong>de</strong> manter a estabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s po<strong>de</strong>res e das fortunas.<br />

Portanto, na prática, não havia nenhum impedimento para o hom<strong>em</strong> casa<strong>do</strong> que <strong>de</strong>sejasse<br />

buscar prazer fora <strong>do</strong> ambiente conjugal. Isso mostra claramente que a simpatia exercida pelas<br />

mulheres sobre os homens comuns não era muito diferente ou mais apurada <strong>do</strong> que sobre os<br />

clérigos.<br />

Sobre este aspecto negativo <strong>em</strong> relação ao sexo f<strong>em</strong>inino, Mace<strong>do</strong> (1990) <strong>de</strong>staca que a<br />

socieda<strong>de</strong> medieval dispunha <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os meios que pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> justificar a atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo<br />

<strong>do</strong>s homens pelas mulheres, como por ex<strong>em</strong>plo a etimologia das palavras usadas para<br />

<strong>de</strong>terminar os sexos: “Para os pensa<strong>do</strong>res da época, a palavra latina que <strong>de</strong>signava o sexo<br />

masculino, Vir, l<strong>em</strong>brava-lhes Virtus, isto é, força, retidão, enquanto Mulier, o termo que<br />

<strong>de</strong>signava o sexo f<strong>em</strong>inino l<strong>em</strong>brava Mollitia, relacionada à fraqueza, à flexibilida<strong>de</strong>, à<br />

simulação” (p. 21).<br />

Era reserva<strong>do</strong> aos homens, pais ou mari<strong>do</strong>s, o direito <strong>de</strong> castigar suas mulheres, como se<br />

castigavam uma criança, um <strong>em</strong>prega<strong>do</strong> <strong>do</strong>méstico ou escravo. Tal direito era toma<strong>do</strong> como<br />

inquestionável e absoluto; prevalecia a honra masculina no tocante à direção <strong>de</strong> sua própria<br />

casa. Estes costumes, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s legais, ocorriam tanto na cida<strong>de</strong> como no campo. Mace<strong>do</strong><br />

72


(1990) reitera que o <strong>de</strong>sapreço pelo sexo f<strong>em</strong>inino tinha duas faces: por um la<strong>do</strong> <strong>de</strong>notava<br />

t<strong>em</strong>or e, por outro, <strong>de</strong>sconfiança. Os homens t<strong>em</strong>iam que as esposas lhes cometess<strong>em</strong><br />

adultério, lhes oferecess<strong>em</strong> filtros mágicos que provocass<strong>em</strong> insanida<strong>de</strong> ou impotência.<br />

Principalmente a fragilida<strong>de</strong> viril, representada pelo t<strong>em</strong>or da esterilida<strong>de</strong>, assustava muito<br />

aos homens, o que, freqüent<strong>em</strong>ente, tornava o momento íntimo um momento <strong>de</strong> disputa<br />

sexual.<br />

O matrimônio não figurava a eterna segurança para a mulher, pois mesmo casada nenhum<br />

direito lhe cabia sobre a herança caso viesse a enviuvar. Era preciso mais <strong>do</strong> que isso, ser<br />

somente a esposa não significava privilégios sobre a família. Sobretu<strong>do</strong>, <strong>de</strong>veria ser mãe <strong>de</strong><br />

filhos homens, garantin<strong>do</strong> seu lugar na família. Se viesse a se tornar viúva, com um filho<br />

hom<strong>em</strong>, teria certa ascendência, ao menos moral, sobre o filho. Se continuasse apenas esposa,<br />

s<strong>em</strong> filhos, ou somente com filhas, um único <strong>de</strong>stino lhe era reserva<strong>do</strong>, <strong>em</strong> caso <strong>de</strong> viuvez: o<br />

casamento sagra<strong>do</strong> com Cristo.<br />

Um aspecto tão importante da criação como a reprodução humana foi trata<strong>do</strong> e propaga<strong>do</strong><br />

como algo tão passível <strong>de</strong> repúdio e, igualmente, tão contrário à Lei Divina. Le Goff (2005)<br />

reitera a questão da inferiorida<strong>de</strong> atribuída à mulher, esclarecen<strong>do</strong> que não havia espaço <strong>de</strong><br />

honra<strong>de</strong>z para o el<strong>em</strong>ento f<strong>em</strong>inino numa socieda<strong>de</strong> militar e viril, s<strong>em</strong>pre preocupada com a<br />

própria subsistência, condição comumente ameaçada pelas freqüentes batalhas. A própria<br />

fecundida<strong>de</strong>, consi<strong>de</strong>rada um atributo apenas f<strong>em</strong>inino, era consi<strong>de</strong>rada mais uma maldição<br />

<strong>do</strong> que bênção, dada a interpretação sexual e procria<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> original. Assim é que o<br />

historia<strong>do</strong>r francês conclui que muito pouco fez o Cristianismo para atenuar ou melhorar a<br />

condição moral e material da mulher na socieda<strong>de</strong> medieval.<br />

3.2 MODELOS E REPRESENTAÇÕES FEMININAS<br />

No estu<strong>do</strong> da mulher medieval presentificam-se várias imagens. Entretanto, não haveria<br />

espaço, profundida<strong>de</strong> ou precisão científica, se fosse abordada individualmente cada<br />

representação f<strong>em</strong>inina <strong>de</strong>sse perío<strong>do</strong>. Por conseguinte, faz-se necessário <strong>de</strong>screver alguns<br />

mo<strong>de</strong>los f<strong>em</strong>ininos que se sobressaíram na socieda<strong>de</strong> medieval, seja por virtu<strong>de</strong>s ou por<br />

vícios. De acor<strong>do</strong> com Mace<strong>do</strong> (1990), buscar uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da mulher medieval,<br />

73


eferin<strong>do</strong>-se à sua materialida<strong>de</strong> torna-se tarefa simples, se for<strong>em</strong> leva<strong>do</strong>s <strong>em</strong> conta alguns<br />

registros iconográficos, fontes riquíssimas da vida cotidiana, como as cenas da vida no campo<br />

e na cida<strong>de</strong>, que retratam a mulher <strong>em</strong> várias situações diferentes. Por outro la<strong>do</strong>, o retrato<br />

moral e seus atributos negativos ou positivos requer<strong>em</strong> um estu<strong>do</strong> mais apura<strong>do</strong>.<br />

A literatura medieval está repleta da influência <strong>do</strong> Cristianismo e <strong>de</strong> seus diss<strong>em</strong>ina<strong>do</strong>res, os<br />

clérigos. Por conseguinte, o leitor cientifica-se <strong>de</strong> que a construção da imag<strong>em</strong> f<strong>em</strong>inina <strong>do</strong><br />

medievo sofreu uma substancial influência da mentalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> clero. S<strong>em</strong> <strong>de</strong>ixar muito espaço<br />

para pol<strong>em</strong>ismos, a Igreja divulgou <strong>do</strong>is pontos <strong>de</strong> vista contrários: a mulher perfeita e a<br />

mulher essencialmente má. Mace<strong>do</strong> (1990) salienta que o segun<strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista, o da mulher<br />

naturalmente malévola, foi o mais difundi<strong>do</strong> na socieda<strong>de</strong> (ponto <strong>de</strong> vista que será explicita<strong>do</strong><br />

posteriormente).<br />

A concepção <strong>de</strong> perfeição da mulher esteve intrinsecamente associada ao culto à Virg<strong>em</strong><br />

Maria, conforme já foi assinala<strong>do</strong>. Entretanto, a popularida<strong>de</strong> da Virg<strong>em</strong> não aconteceu ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po da criação da Igreja Católica; <strong>de</strong>senvolveu-se ao longo da Alta Ida<strong>de</strong> Média e<br />

afirmou-se entre os cristãos. No século V, mais precisamente <strong>em</strong> 431, o Concílio <strong>de</strong> Éfeso<br />

proclamou a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Maria como Mãe <strong>de</strong> Deus, anulan<strong>do</strong> a imag<strong>em</strong> anterior <strong>de</strong> Mãe <strong>de</strong><br />

Cristo. A inserção e aceitação <strong>de</strong> seu culto sofreram uma longa evolução, estabelecen<strong>do</strong>-se,<br />

fort<strong>em</strong>ente, por volta <strong>do</strong> século XI.<br />

A Virg<strong>em</strong> Maria, no século XII, por meio <strong>de</strong> Santo Anselmo e <strong>de</strong> Abelar<strong>do</strong>, foi celebrada com<br />

gran<strong>de</strong> alegria, ao revestir-se <strong>do</strong> símbolo da re<strong>de</strong>nção f<strong>em</strong>inina, contrariamente à figura <strong>de</strong><br />

Eva, consi<strong>de</strong>rada peca<strong>do</strong>ra. Assim, apreciada a “nova Eva”, trazia o rótulo da pureza, da<br />

castida<strong>de</strong>, da gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> alma e <strong>de</strong> coração, resumin<strong>do</strong>-se <strong>em</strong> santida<strong>de</strong> sua imag<strong>em</strong>. As<br />

mulheres foram, então, extr<strong>em</strong>amente consoladas ao receber<strong>em</strong> um mo<strong>de</strong>lo oposto à primeira<br />

Eva, responsável pela perdição <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o sexo f<strong>em</strong>inino. Sen<strong>do</strong> assim, o culto marial alcançou<br />

enorme popularida<strong>de</strong>, aparecen<strong>do</strong> <strong>em</strong> vários sermões, trata<strong>do</strong>s e po<strong>em</strong>as feitos <strong>em</strong> louvor à<br />

Virg<strong>em</strong>.<br />

A literatura, <strong>em</strong> meio a to<strong>do</strong> material relaciona<strong>do</strong> ao culto <strong>de</strong> Maria, produziu um tipo <strong>de</strong><br />

texto que merece <strong>de</strong>staque: a narração <strong>de</strong> milagres. Tratava-se, obviamente, <strong>de</strong> uma literatura<br />

<strong>de</strong> cunho religioso e <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> moral edificante. Interessante notar que a linguag<strong>em</strong><br />

comumente utilizada nestes textos era vulgar e não <strong>em</strong> latim erudito, apresentan<strong>do</strong> uma<br />

74


organização narrativa simples e direcionada ao público f<strong>em</strong>inino. Nas referidas narrativas, o<br />

final s<strong>em</strong>pre trazia uma lição <strong>de</strong> regozijo como resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> aperfeiçoamento moral. Mace<strong>do</strong><br />

(1990) assevera que a parte central <strong>de</strong>ssas narrativas é composta por transgressões, calúnias<br />

ou peca<strong>do</strong>s que envolv<strong>em</strong> os protegi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Maria. Assim, a moral revelada pela narração <strong>do</strong>s<br />

milagres esteve diretamente associada ao i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> vida casta para o hom<strong>em</strong> e o <strong>de</strong> virginda<strong>de</strong><br />

para a mulher.<br />

Para alguns estudiosos, porém, o culto à Virg<strong>em</strong> foi um bálsamo para o infortúnio das<br />

mulheres. Para outros, não se constitui <strong>em</strong> melhoria na condição f<strong>em</strong>inina, trazen<strong>do</strong> somente<br />

algum consolo para aquelas que se dispunham seguir o caminho pré-<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>. Le Goff<br />

(2005) reconhece que o culto marial foi, <strong>de</strong> certa forma, uma promoção da mulher nos séculos<br />

XII e XIII. Surge uma nova espiritualida<strong>de</strong> cristã, passan<strong>do</strong> a vislumbrar uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

re<strong>de</strong>nção para o sexo peca<strong>do</strong>r, ao apontar para uma mudança <strong>de</strong> rumos da condição f<strong>em</strong>inina<br />

“(...) não está na orig<strong>em</strong>, mas na conclusão <strong>de</strong> uma melhoria da situação da mulher na<br />

socieda<strong>de</strong>. O papel das mulheres nos movimentos heréticos (...) ou quase heréticos (...) é o<br />

sinal <strong>de</strong> sua insatisfação <strong>em</strong> face <strong>do</strong> lugar que lhe era reserva<strong>do</strong>” (p. 285).<br />

Deste mo<strong>do</strong>, a promoção da imag<strong>em</strong> f<strong>em</strong>inina <strong>de</strong> ente inferior à mulher inspira<strong>do</strong>ra, à dama,<br />

ocorreu entre os séculos XII e XIII, palco <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma cultura fina e brilhante<br />

que floresceu no Oci<strong>de</strong>nte. A cultura era profana, cortês, mas aristocrática – t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que as<br />

cortes principescas abrigaram to<strong>do</strong> e qualquer tipo <strong>de</strong> artista cria<strong>do</strong>r da arte voltada aos<br />

hábitos e costumes <strong>do</strong>s protetores. No campo social, a <strong>cavalaria</strong> pre<strong>do</strong>minava <strong>em</strong> prestígio<br />

entre os nobres, que a regiam por um código <strong>de</strong> ética específico. Paralelamente, abria-se<br />

espaço para outras ativida<strong>de</strong>s sociais que não diziam respeito à política e a batalhas.<br />

Destarte, a corte passou a promover reuniões, bailes, concertos e recitais que se tornaram<br />

tradição regulamentada. As cortes se transformaram <strong>em</strong> verda<strong>de</strong>iras escolas da boa educação.<br />

A cultura cavaleiresca foi lapidada através <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> manejo com as armas, da<br />

aprendizag<strong>em</strong> <strong>de</strong> novas técnicas <strong>de</strong> luta que pu<strong>de</strong>ram ser <strong>de</strong>senvolvidas a partir das justas e<br />

<strong>do</strong>s torneios. Ganhava nova força, assim, a vida intelectual, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> <strong>de</strong> tamanha<br />

importância neste perío<strong>do</strong>, para cavaleiros e damas, a educação no falar, as boas maneiras no<br />

agir e a sutileza no jogo das palavras.<br />

75


Mace<strong>do</strong> (1990) <strong>de</strong>staca o papel imprescindível <strong>do</strong>s literatos <strong>de</strong>ste perío<strong>do</strong>. Foram<br />

responsáveis pelo novo mo<strong>de</strong>lo mental, impregna<strong>do</strong> <strong>de</strong> maneiras refinadas. O<br />

<strong>de</strong>senvolvimento aflorou com as poesias, com as baladas e com os romances recita<strong>do</strong>s nas<br />

reuniões que entretinham toda a nobreza. Há que se ressaltar a corte francesa e portuguesa,<br />

on<strong>de</strong> os trova<strong>do</strong>res, poetas e cortesãos profissionais introduziram uma revolucionária<br />

modalida<strong>de</strong> da lírica cortês. Essa nova lírica tinha por t<strong>em</strong>a central o amor e, pois, relegou às<br />

mulheres um valor altíssimo, revelan<strong>do</strong> um novo código <strong>de</strong> ética da nobreza. Estava criada a<br />

nova palavra <strong>de</strong>signativa para a mulher nobre: a dama. Cabe aqui neste parágrafo uma citação<br />

<strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r Jacques Le Goff, que atribui às próprias damas a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criar<strong>em</strong> o<br />

amor mo<strong>de</strong>rno:<br />

E, claro, na literatura cortês, as damas inspira<strong>do</strong>ras e poetisas – heroínas <strong>de</strong><br />

carne ou <strong>de</strong> sonho: Leonor <strong>de</strong> Aquitânia, Maria <strong>de</strong> Champagne, Maria <strong>de</strong><br />

França, assim como Isolda, Guinevere ou a Princesa distante –<br />

<strong>de</strong>s<strong>em</strong>penham um papel fundamental: elas inventaram o amor mo<strong>de</strong>rno<br />

(2005, p. 286).<br />

Há, porém, um outro fator aponta<strong>do</strong> à figura e a posição da dama. Os séculos XII e XIII<br />

proporcionaram uma elevação da figura f<strong>em</strong>inina resultante da nova concepção <strong>de</strong> amor e <strong>do</strong><br />

crescimento da intelectualida<strong>de</strong> entre damas e cavaleiros. Com o prestígio da poesia <strong>do</strong>s<br />

trova<strong>do</strong>res e a ausência <strong>do</strong>s mari<strong>do</strong>s que haviam parti<strong>do</strong> para as Cruzadas, permitiu-se louvar<br />

a mulher nas cantigas <strong>de</strong> amor. Os trova<strong>do</strong>res se envolviam, quase s<strong>em</strong>pre, <strong>em</strong> amores ilícitos,<br />

ainda que platônicos e as damas, na maioria das vezes, eram casadas.<br />

Deste mo<strong>do</strong>, muitas vezes se preten<strong>de</strong>u que as Cruzadas favoreceram as mulheres <strong>do</strong><br />

Oci<strong>de</strong>nte, por estar<strong>em</strong> sozinhas, trazen<strong>do</strong>-lhes um aumento <strong>de</strong> seus po<strong>de</strong>res e <strong>de</strong> seus direitos.<br />

Tal melhoria na condição da mulher teria si<strong>do</strong> mais pro<strong>em</strong>inente entre as da nobreza, cujos<br />

mari<strong>do</strong>s as aban<strong>do</strong>navam para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os interesses da Igreja. Aparec<strong>em</strong> com certa<br />

freqüência relatos sobre a mulher provençal, no que respeita às questões jurídicas e aos<br />

direitos civis das damas. Diferent<strong>em</strong>ente das que habitavam no norte, as da Provença<br />

gozavam <strong>de</strong> relativa autonomia, pois conservavam a faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> herdar o lega<strong>do</strong> <strong>de</strong> seus pais<br />

ou <strong>de</strong> dispor <strong>do</strong>s bens <strong>do</strong> <strong>do</strong>te ou ainda <strong>de</strong> suas arras, quan<strong>do</strong> viúvas. No entanto, <strong>de</strong>ve-se<br />

alertar que esta autonomia era limitada pelos direitos <strong>do</strong>s filhos à herança da mãe e,<br />

posteriormente, por medidas a<strong>do</strong>tadas pelas linhagens, com o intuito exato <strong>de</strong> preservar a<br />

integralida<strong>de</strong> <strong>do</strong> patrimônio familiar.<br />

76


Alguns pesquisa<strong>do</strong>res afirmam que <strong>do</strong>is momentos foram cruciais na melhora da condição<br />

f<strong>em</strong>inina, principalmente nas cortes francesas <strong>do</strong> sul e na Itália: o perío<strong>do</strong> carolíngio e o<br />

t<strong>em</strong>po das Cruzadas. No entanto, uma controvérsia se estabelece quan<strong>do</strong> os <strong>do</strong>cumentos<br />

jurídicos <strong>de</strong>sse t<strong>em</strong>po d<strong>em</strong>onstram que, no que se refere à gestão <strong>de</strong> bens <strong>do</strong> casal, nos séculos<br />

XII e XIII, a situação da mulher se agravara.<br />

O que se po<strong>de</strong> concluir <strong>de</strong> tal perspectiva? Claro está que a imag<strong>em</strong> f<strong>em</strong>inina sofreu<br />

mudanças para melhor. Entretanto, as transformações não se generalizaram, mas restringiramse<br />

à esfera nobre e tiveram como agentes os artistas. Conclui-se que os homens da arte<br />

diferenciavam-se muito <strong>do</strong>s homens da espada. Evi<strong>de</strong>ncia-se que os primeiros foss<strong>em</strong> mais<br />

afetos aos encantos f<strong>em</strong>ininos, enquanto que os outros visualizass<strong>em</strong> muito mais a<br />

materialida<strong>de</strong> prática da figura da mulher. Por isso, os fatos incríveis ocorri<strong>do</strong>s nas cortes<br />

<strong>de</strong>ste perío<strong>do</strong>, que tiveram gran<strong>de</strong>s damas à frente incentivan<strong>do</strong> a arte e, conseqüent<strong>em</strong>ente,<br />

influencian<strong>do</strong> as mentes, incidiram suas maiores conquistas no campo das idéias e não, ainda,<br />

na realida<strong>de</strong> física das mulheres. Não se discute também que as damas nobres foram<br />

privilegiadas, porém, a mulher contribuiu, significativamente, com suas mãos hábeis no<br />

trabalho <strong>de</strong> casa para a evolução positiva da sua imag<strong>em</strong> no campo e nos gineceus. Mas não<br />

se ignora o fato <strong>de</strong> que as idéias é que mov<strong>em</strong> as práticas, ainda que ambas não ocorram ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po.<br />

A lírica trova<strong>do</strong>resca promoveu a visão mo<strong>de</strong>rna <strong>do</strong> amor, atribuin<strong>do</strong>-lhe pureza e encanto,<br />

mas voltan<strong>do</strong>-se para uma dama inacessível, muitas vezes fluídica. Não foi esta, entretanto, a<br />

única dama surgida nesta fase. Mace<strong>do</strong> (1990) comenta que é impossível traçar uma<br />

caracterização f<strong>em</strong>inina baseada na criação literária <strong>de</strong>sses romances, ao consi<strong>de</strong>rar a sua<br />

intensa produção. No entanto, evi<strong>de</strong>ncia-se a gran<strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong> <strong>em</strong> especificar a figura<br />

f<strong>em</strong>inina por meio da literatura medieval <strong>de</strong>ste perío<strong>do</strong>, <strong>de</strong> forma geral.<br />

Retoman<strong>do</strong> o fato <strong>de</strong> que a proposta <strong>de</strong>sta pesquisa está pautada na teoria literária da<br />

personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> narrativa ficcional, buscan<strong>do</strong> um paralelo entre o real e o fictício, os relatos<br />

históricos sobre a mulher constitu<strong>em</strong>-se uma rica fonte elucidativa quanto a sua função e<br />

papel nas <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>.<br />

A História revela a existência <strong>de</strong> figuras f<strong>em</strong>ininas transgressoras perseguidas pela socieda<strong>de</strong><br />

da época: as <strong>bruxas</strong> e as <strong>feiticeiras</strong>. Mace<strong>do</strong> (1990) assevera que é inegável o fato <strong>de</strong> as<br />

77


mulheres nobres ter<strong>em</strong> contribuí<strong>do</strong> na difusão da literatura cavaleiresca <strong>de</strong>ste perío<strong>do</strong>,<br />

ratifican<strong>do</strong> as transformações acerca <strong>do</strong>s conceitos negativos <strong>em</strong> torno da sua figura.<br />

Ex<strong>em</strong>plifica com a figura extraordinária <strong>de</strong> Leonor <strong>de</strong> Aquitânia, como a gran<strong>de</strong> responsável<br />

pelo <strong>de</strong>senvolvimento e propagação <strong>do</strong>s romances que compuseram a “Matéria da Bretanha”,<br />

entre outros gêneros literários. Esses romances retratavam t<strong>em</strong>as relaciona<strong>do</strong>s ao Rei Artur e<br />

os Cavaleiros da Távola Re<strong>do</strong>nda, populares neste perío<strong>do</strong>, constituin<strong>do</strong>-se um reflexo da<br />

socieda<strong>de</strong> cavaleiresca e da aristocracia <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po.<br />

Diferent<strong>em</strong>ente da dama <strong>do</strong>s trova<strong>do</strong>res, as mulheres s<strong>em</strong>pre estiveram presentes nestas<br />

histórias. Todavia, a inserção <strong>de</strong>las não se resumia às citações poéticas <strong>de</strong> damas<br />

inalcançáveis, e sim como personagens reais <strong>em</strong> suas ações. São mulheres fortes e frágeis ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po, mo<strong>de</strong>los a ser<strong>em</strong> segui<strong>do</strong>s pelas damas da nobreza, pessoas da realida<strong>de</strong>. Entre<br />

as mais famosas <strong>de</strong>staca-se Isolda, rainha da Cornualha e amante <strong>de</strong> Tristão, cavaleiro da<br />

Távola Re<strong>do</strong>nda e também Guinevere, esposa <strong>do</strong> Rei Artur e amante <strong>de</strong> Lancelot. De acor<strong>do</strong><br />

com Mace<strong>do</strong> (1990), estas não foram as únicas heroínas <strong>de</strong>sses romances, mas s<strong>em</strong> dúvida,<br />

foram as mais pro<strong>em</strong>inentes. Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a produção literária cavaleiresca um vasto campo<br />

a ser explora<strong>do</strong>, o autor compl<strong>em</strong>enta: “A vastidão <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> literário apresenta inúmeras<br />

personagens f<strong>em</strong>ininas. De obra a obra, o tratamento reserva<strong>do</strong> a elas teve particularida<strong>de</strong>s”<br />

(p. 51).<br />

Esta citação <strong>de</strong> Mace<strong>do</strong> é importante, pois reflete um aspecto cont<strong>em</strong>pla<strong>do</strong> nos objetivos da<br />

pesquisa: o estu<strong>do</strong> e análise das particularida<strong>de</strong>s da imag<strong>em</strong> da bruxa e da feiticeira nas duas<br />

diferentes <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> escolhidas como corpus. As obras A D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal<br />

e Amadis <strong>de</strong> Gaula faz<strong>em</strong> parte <strong>de</strong> perío<strong>do</strong>s distintos da Ida<strong>de</strong> Média. Por isso, torna-se <strong>de</strong><br />

suma importância a observação sobre as diferenças vividas nos perío<strong>do</strong>s, b<strong>em</strong> como o<br />

proce<strong>de</strong>r das massas e das nobrezas <strong>em</strong> face às transformações iminentes. Que exist<strong>em</strong><br />

dissimilitu<strong>de</strong>s entre as personagens tidas como <strong>feiticeiras</strong> ou <strong>bruxas</strong> <strong>em</strong> cada uma das obras é<br />

fato bastante discuti<strong>do</strong> neste projeto. Cabe à pesquisa <strong>de</strong>screver os aspectos relaciona<strong>do</strong>s a<br />

essas peculiarida<strong>de</strong>s, buscan<strong>do</strong> suporte no contexto histórico <strong>do</strong> qual fizeram parte os<br />

escritores, anônimos ou não, <strong>de</strong>ssas <strong>novelas</strong>.<br />

Como a História caminha <strong>de</strong> mãos dadas com as alterações promovidas pelas idéias, o campo<br />

literário cavaleiresco, com o passar <strong>do</strong>s anos, acabou por se tornar obsoleto no que respeita à<br />

visão majestosa da dama. O número <strong>de</strong> personagens f<strong>em</strong>ininas nas obras circulantes <strong>do</strong><br />

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perío<strong>do</strong> provocou um enfastiamento <strong>do</strong> louvor exagera<strong>do</strong> à mulher nobre. Mace<strong>do</strong> (1990)<br />

explica que os últimos romances <strong>de</strong> Chrétien <strong>de</strong> Troyes, um <strong>do</strong>s principais autores <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong><br />

<strong>arturiano</strong>, já <strong>de</strong>notavam uma progressiva <strong>de</strong>preciação <strong>do</strong>s papéis f<strong>em</strong>ininos. Expõe o autor<br />

que as mulheres <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser a parte central da narrativa para se tornar<strong>em</strong> personagens<br />

laterais, isto é, para servir <strong>de</strong> referência ou <strong>de</strong> prêmio aos cavaleiros errantes, per<strong>de</strong>n<strong>do</strong>,<br />

inclusive a complexida<strong>de</strong> psicológica. A cortesia amplia o espaço para as características<br />

masculinas <strong>do</strong>s cavaleiros elevan<strong>do</strong>-se seus valores. Ex<strong>em</strong>plifica com Perceval, esclarecen<strong>do</strong><br />

que<br />

o amor terreno entre um hom<strong>em</strong> e uma mulher é substituí<strong>do</strong> pela inspiração<br />

espiritual e mística. O cavaleiro não luta pela dama, mas para encontrar o<br />

Graal, o cálice que continha o sangue <strong>de</strong> Cristo. A última visão que t<strong>em</strong>os <strong>de</strong><br />

Perceval é a <strong>de</strong> um hom<strong>em</strong> solitário, ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> um er<strong>em</strong>ita... e com Deus.<br />

(p. 54)<br />

Registra-se o início <strong>do</strong> <strong>de</strong>clínio da imag<strong>em</strong> f<strong>em</strong>inina, cruelmente <strong>de</strong>negrida na produção<br />

literária urbana <strong>do</strong>s séculos XIV e XV. Embora a cortesia continuasse apreciada por uma<br />

parcela da socieda<strong>de</strong>, principalmente entre os eruditos, outros gêneros literários foram<br />

aparecen<strong>do</strong> e ganhan<strong>do</strong> prestígio entre a população urbana e os diferentes níveis sociais.<br />

Refletin<strong>do</strong>, assim, sobre outros valores que prosperavam <strong>em</strong> meio a gran<strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> nas<br />

cida<strong>de</strong>s, a valorização <strong>do</strong> pensamento burguês foi implacável para a <strong>de</strong>terioração da imag<strong>em</strong><br />

da mulher. É neste perío<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> Mace<strong>do</strong> (1990), que a misoginia, antes implícita, tornouse<br />

explícita.<br />

Uma das obras que mais d<strong>em</strong>onstra a mudança no ponto <strong>de</strong> vista relativo à mulher é o Roman<br />

<strong>de</strong> la Rose. De dupla autoria, recebeu influências bastante diversas, uma vez que os autores<br />

não trabalharam conjuntamente. O primeiro autor, que inicialmente concebeu a história, foi<br />

Guillaume <strong>de</strong> Lorris, por volta <strong>de</strong> 1236. Entretanto, <strong>de</strong>ixou-a s<strong>em</strong> uma finalização. Mace<strong>do</strong><br />

explica que o escritor procurou retomar a tradição cortês <strong>em</strong> to<strong>do</strong> o seu senti<strong>do</strong>, fazen<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

amor o t<strong>em</strong>a central, enchen<strong>do</strong>-o <strong>de</strong> alegorias com muita habilida<strong>de</strong>. Quarenta anos <strong>de</strong>pois,<br />

com a tradição cortês já sofren<strong>do</strong> <strong>de</strong> exaustão, Jean <strong>de</strong> Meung <strong>de</strong>cidiu continuar a obra,<br />

acrescentan<strong>do</strong>-lhe muitos versos e, especialmente, <strong>de</strong>svian<strong>do</strong> o t<strong>em</strong>a central original para os<br />

interesses da socieda<strong>de</strong> burguesa. Como comenta Mace<strong>do</strong> (1990), o escritor continua<strong>do</strong>r era<br />

parisiense, viveu numa atmosfera b<strong>em</strong> diferente <strong>do</strong> primeiro autor e, conseqüent<strong>em</strong>ente,<br />

imprimiu à obra uma concepção bastante realista <strong>do</strong> amor, <strong>de</strong>notan<strong>do</strong> uma expressa aversão<br />

pelo sexo f<strong>em</strong>inino. Segun<strong>do</strong> suas idéias, a razão e a natureza <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> é que <strong>de</strong>veriam<br />

ajustar as relações entre os sexos.<br />

79


Assim, atributos negativos que eram ti<strong>do</strong>s como naturalmente próprios da mulher, como a<br />

ingratidão, a traição, a ambição e a vaida<strong>de</strong>, foram fontes inspira<strong>do</strong>ras para muitos contos<br />

<strong>de</strong>ste perío<strong>do</strong>. Inclu<strong>em</strong>-se, também, uma crítica ferrenha ao casamento, nesta época já<br />

sacramenta<strong>do</strong>. Várias obras, segun<strong>do</strong> Mace<strong>do</strong> (1990), tiveram como t<strong>em</strong>a central os<br />

sofrimentos, infortúnios e misérias sofri<strong>do</strong>s pelo hom<strong>em</strong> casa<strong>do</strong>. Subenten<strong>de</strong>-se, então, que<br />

tais vicissitu<strong>de</strong>s foram <strong>de</strong>correntes da convivência com uma mulher. A crítica à mulher,<br />

portanto, penetrou profundamente no espírito humano <strong>de</strong>sses séculos. Autores <strong>de</strong> lugares<br />

distantes e <strong>de</strong> culturas diversas foram influencia<strong>do</strong>s pelo Roman <strong>de</strong> la Rose, <strong>em</strong> sua<br />

continuação. Todavia, uma pergunta se estabelece: a mulher, tão atacada, tão <strong>de</strong>negrida,<br />

manteve-se s<strong>em</strong>pre obediente e submissa a essa concepção moral <strong>de</strong> sua própria condição? Se<br />

a resposta fosse positiva, não haveria tantas obras escritas <strong>em</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>s direitos <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> e<br />

<strong>do</strong>s homens casa<strong>do</strong>s. Provavelmente, as mulheres tenham si<strong>do</strong> in<strong>do</strong>máveis quanto aos abusos<br />

sofri<strong>do</strong>s e, comumente, não tenham se comporta<strong>do</strong> como <strong>de</strong>seja<strong>do</strong>.<br />

3.3 FEITICEIRAS E BRUXAS: FIGURAS DA MARGINALIDADE FEMININA<br />

A mulher não foi a única a sofrer com a marginalização. Destaca-se que qualquer diferença<br />

entre as pessoas, seja na conduta, seja na aparência física, que pu<strong>de</strong>sse causar espanto,<br />

estranheza, ou surpresa era motivo suficiente para que se buscasse um meio <strong>de</strong> afastar as<br />

esquisitices alheias <strong>do</strong>s entes queri<strong>do</strong>s, principalmente das crianças, seres mais facilmente<br />

influenciáveis. Assim, pessoas porta<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> alguma <strong>de</strong>ficiência física ou <strong>de</strong> alguma <strong>do</strong>ença<br />

contagiosa, como a lepra, por ex<strong>em</strong>plo; ou com distúrbios mentais ou comportamentais e<br />

pessoas seguramente livres <strong>em</strong> sua conduta, como prostitutas, cafetões, mendigos e andarilhos<br />

estiveram à marg<strong>em</strong> da socieda<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rada “normal”, ou seja, à marg<strong>em</strong> das pessoas<br />

agentes da moral imposta pela Igreja cristã.<br />

A atuação da mulher foi mais marcante no que concerne aos conhecimentos ocultos da<br />

natureza, transmiti<strong>do</strong>s <strong>de</strong> geração a geração. No campo, essa realida<strong>de</strong> foi mais comum e<br />

menos atacada por muito t<strong>em</strong>po. Na cida<strong>de</strong>, a tolerância às mulheres conhece<strong>do</strong>ras <strong>de</strong><br />

benzeduras, ervas medicinais e simpatias contra fatos in<strong>de</strong>sejáveis foi mais curta e, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po, manteve oculta a aceitação <strong>de</strong> muitos, na necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguma cura <strong>em</strong>ergencial.<br />

80


Em geral, a marginalida<strong>de</strong> das mulheres a ser retratada neste tópico refere-se, especialmente,<br />

às <strong>feiticeiras</strong> ou <strong>bruxas</strong>. Estan<strong>do</strong> <strong>em</strong> ambiente urbano ou rural, o preconceito ocorreu com<br />

mais ou menos intensida<strong>de</strong>; as perseguições alcançaram maior ou menor nível, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com<br />

a época e com a região. Entretanto, não se preten<strong>de</strong> aqui formar opiniões acerca <strong>do</strong>s<br />

persegui<strong>do</strong>res ou mártires. A intenção é retratar um quadro, mais próximo à realida<strong>de</strong><br />

histórica, levan<strong>do</strong> <strong>em</strong> conta as concepções <strong>de</strong> alguns historia<strong>do</strong>res e/ou estudiosos <strong>do</strong> assunto,<br />

para mostrar <strong>de</strong> que forma as condutas sociais <strong>de</strong>terminaram a imag<strong>em</strong> que se teve da<br />

bruxaria e da feitiçaria. É, portanto, <strong>de</strong> suma importância que se coloque <strong>em</strong> evidência,<br />

aspectos relaciona<strong>do</strong>s à orig<strong>em</strong> das práticas mágicas e ao início das maiores intolerâncias<br />

humanas entre as socieda<strong>de</strong>s medievais.<br />

Revela-se importante o papel da Igreja Católica quanto à diss<strong>em</strong>inação <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> Mal entre<br />

a população, com a intenção clara <strong>de</strong> <strong>de</strong>svirtuar o hom<strong>em</strong> <strong>do</strong> caminho <strong>de</strong> Deus e da salvação.<br />

A profusão <strong>do</strong> Mal, porém, foi conveniente para a afirmação das crenças cristãs e <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>do</strong><br />

B<strong>em</strong>. Justifica-se o papel da Igreja como única entida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>rosa para combater, <strong>em</strong> suas<br />

raízes, o Mal representa<strong>do</strong> pelo D<strong>em</strong>ônio que usava as pessoas mais fracas <strong>em</strong> sua fé como<br />

instrumentos <strong>de</strong> ação maléfica.<br />

To<strong>do</strong> este contexto condicionou a Ida<strong>de</strong> Média. No entanto, ressalta-se que a figura da bruxa<br />

ou da feiticeira sofreu alterações ao longo <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po, b<strong>em</strong> como esteve mais ou menos <strong>em</strong><br />

evidência, conforme a região ou época. Segun<strong>do</strong> Franco Jr. (1986), a Ida<strong>de</strong> Média Central e a<br />

Alta Ida<strong>de</strong> Média foram mais generosas com a figura fantasmagórica da bruxa e com a figura<br />

misteriosa da feiticeira, principalmente à época da segunda prosificação da D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong><br />

Santo Graal. Amadis <strong>de</strong> Gaula, concebida algum t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>pois, possui características muito<br />

s<strong>em</strong>elhantes às outras obras (por isso, pertencente ao <strong>ciclo</strong> <strong>arturiano</strong>) e recebeu, entretanto,<br />

influências sociais <strong>de</strong> um t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> constante mudança que já prenunciava o fim <strong>do</strong>s<br />

romances <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> nos mol<strong>de</strong>s mais tradicionais. A imag<strong>em</strong> da bruxa e da feiticeira, nesta<br />

época, também sofrera alterações, provocan<strong>do</strong> um clima <strong>de</strong> me<strong>do</strong>, mistério e terror no hom<strong>em</strong><br />

<strong>do</strong>s séculos XIV e XV.<br />

É a partir <strong>do</strong> século XIV que a mulher recebe o estigma maligno <strong>de</strong> bruxa. As <strong>feiticeiras</strong><br />

passaram a ser vistas como servi<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> d<strong>em</strong>ônio e o estu<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta “religião” ou culto<br />

d<strong>em</strong>oníaco passou a ser objeto <strong>de</strong> interesse <strong>de</strong> muitos homens <strong>do</strong> clero, tornan<strong>do</strong>-o, muito<br />

81


mais <strong>do</strong> que uma ameaça social, um ataque às forças representadas pela Igreja e por seus<br />

m<strong>em</strong>bros. A perseguição às mulheres e homens liga<strong>do</strong>s às práticas mágicas começou a tomar<br />

forma e, é importante salientar que não somente a Igreja teve gran<strong>de</strong> participação neste<br />

processo, mas também os juízes seculares e o próprio povo, que <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pelo t<strong>em</strong>or à ira <strong>de</strong><br />

Deus e pela idéia pavorosa <strong>do</strong> Inferno, muito contribuiu na <strong>de</strong>núncia, busca e apreensão <strong>de</strong><br />

supostos criminosos.<br />

Cabe então, neste tópico a introdução <strong>de</strong> alguns conceitos propostos pelo historia<strong>do</strong>r brasileiro<br />

Carlos Roberto Figueire<strong>do</strong> Nogueira, no tocante às práticas mágicas <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte cristão com<br />

enfoque sobre a conceitualização da bruxaria e da feitiçaria. Também estarão <strong>em</strong> <strong>de</strong>staque,<br />

conforme conveniência <strong>do</strong> assunto, outros autores que apresentam interpretações acerca <strong>do</strong><br />

papel das mulheres através da marginalização <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à i<strong>de</strong>ntificação das mesmas com <strong>bruxas</strong><br />

ou <strong>feiticeiras</strong>. Entre estes autores estão Jacques Le Goff, Hilário Franco Jr. e Jean-Michel<br />

Sallmann.<br />

A evi<strong>de</strong>nte marginalida<strong>de</strong> social atribuída à mulher e, conseqüent<strong>em</strong>ente, às <strong>bruxas</strong> ou<br />

<strong>feiticeiras</strong> não <strong>de</strong>ve ser interpretada unicamente como uma esquivança relacionada ao sexo ou<br />

ao comportamento sexual das mulheres. Obviamente que este aspecto está intimamente<br />

associa<strong>do</strong> ao processo <strong>de</strong> marginalização, porém não é o único fator <strong>de</strong>terminante. Deve-se<br />

salientar que gran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong>s seres marginaliza<strong>do</strong>s esteve ligada a algum tipo <strong>de</strong> heresia,<br />

comportamento ou atitu<strong>de</strong> contrária aos <strong>do</strong>gmas da Igreja Católica e que este da<strong>do</strong> se revela<br />

muito mais significativo <strong>do</strong> que a simples asserção acerca das diferenças sociais e sexuais<br />

entre homens e mulheres.<br />

3.3.1 A feitiçaria<br />

O fato <strong>de</strong> a Ida<strong>de</strong> Média ter recebi<strong>do</strong> o rótulo <strong>de</strong> misteriosa e, até mesmo, envolta <strong>em</strong> trevas<br />

<strong>de</strong>ve-se, <strong>em</strong> parte, à concepção que o hom<strong>em</strong> medieval tinha a respeito <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que o<br />

cercava. Analisan<strong>do</strong> o traça<strong>do</strong> histórico, o ser humano <strong>do</strong> medievo ainda estava <strong>em</strong> fase <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>scobrimento (ou <strong>de</strong> conhecimento) <strong>de</strong> si mesmo e <strong>de</strong> suas relações com o ambiente. Trazia<br />

na m<strong>em</strong>ória, impressas <strong>em</strong> seu subconsciente, as l<strong>em</strong>branças longínquas <strong>de</strong> povos<br />

antepassa<strong>do</strong>s, b<strong>em</strong> como resquícios <strong>de</strong> suas culturas. Entrechocan<strong>do</strong>-se com povos<br />

estrangeiros, na mesma situação, é bastante natural que as pessoas se encontrass<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />

constante esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> dúvida, t<strong>em</strong>or, incompreensão, necessitan<strong>do</strong> <strong>de</strong> algo ou alguém que as<br />

82


direcionasse para o caminho certo. Abriu-se, assim, o espaço para as mentes mais avançadas e<br />

mais <strong>de</strong>senvolvidas que julgavam (e eram julga<strong>do</strong>s) ter um pouco mais <strong>de</strong> esclarecimento<br />

quanto ao papel da humanida<strong>de</strong> sobre a Terra. Estes tiveram a autorida<strong>de</strong> <strong>em</strong> suas mãos e<br />

pu<strong>de</strong>ram servir ao povo menos esclareci<strong>do</strong> como verda<strong>de</strong>iros lí<strong>de</strong>res, pastores ou guias.<br />

Neste contexto, é fácil compreen<strong>de</strong>r a inaceitabilida<strong>de</strong> da orientação proposta por estes<br />

supostos lí<strong>de</strong>res ou guias. A Igreja cristã fixou-se como a entida<strong>de</strong> capaz <strong>de</strong> orientar o hom<strong>em</strong><br />

medieval no caminho <strong>de</strong> Deus; entretanto, poucos havia que não se enquadravam nos mol<strong>de</strong>s<br />

sociais sugeri<strong>do</strong>s por ela e, <strong>em</strong> se tratan<strong>do</strong> <strong>de</strong> mentes tão <strong>de</strong>senvolvidas quanto às <strong>do</strong>s<br />

clérigos, não po<strong>de</strong>riam conjugar <strong>do</strong>s mesmos i<strong>de</strong>ais, uma vez que a concepção acerca <strong>do</strong><br />

divino diferia <strong>em</strong> muito <strong>em</strong> sua orig<strong>em</strong>. Os que discordavam <strong>do</strong>s <strong>do</strong>gmas religiosos católicos<br />

e, <strong>de</strong> alguma forma, buscavam compreen<strong>de</strong>r ou praticar outras maneiras <strong>de</strong> se encontrar com a<br />

divinda<strong>de</strong>, ligavam-se às tradições culturais (folclóricas, religiosas ou sociais) e não viam com<br />

simpatia o esforço <strong>em</strong>prega<strong>do</strong> pela Igreja <strong>de</strong> banir el<strong>em</strong>entos pagãos e culturais, ou propor um<br />

sincretismo entre os símbolos pagãos aos rituais cristãos.<br />

Deve-se salientar que a mentalida<strong>de</strong> medieval esteve cercada por el<strong>em</strong>entos que a<br />

caracterizaram como psicologia coletiva. Franco Jr. (1986) esclarece que os séculos XI ao<br />

XIII oferec<strong>em</strong> mais <strong>do</strong>cumentação sobre este aspecto, o que não anula os séculos anteriores e<br />

posteriores <strong>em</strong> relação a isto. O historia<strong>do</strong>r ressalta que o referencial <strong>de</strong> todas as coisas, para o<br />

hom<strong>em</strong> <strong>do</strong> medievo, era <strong>de</strong>corrente <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>, característica psicossocial muito comum <strong>em</strong><br />

comunida<strong>de</strong>s agrárias que, por <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r<strong>em</strong> da natureza para a manutenção <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> <strong>de</strong> vida,<br />

ficavam sujeitas às forças <strong>de</strong>sconhecidas e incontroláveis pela mão humana. É bastante<br />

compreensível o t<strong>em</strong>or gera<strong>do</strong> por tal circunstância: t<strong>em</strong>or <strong>em</strong> relação às colheitas, às<br />

epid<strong>em</strong>ias, às int<strong>em</strong>péries, enfim, à vida futura. As afirmações <strong>de</strong> Franco Jr. reflet<strong>em</strong> as<br />

afirmações <strong>do</strong> início <strong>de</strong>ste sub-tópico: o <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong> era t<strong>em</strong>i<strong>do</strong> por não haver meios <strong>de</strong><br />

controlá-lo. O hom<strong>em</strong> encontrava-se à mercê das forças da natureza.<br />

A busca por uma segurança frente a um ambiente, muitas vezes hostil, foi, portanto, uma<br />

preocupação constante na vida <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> medieval. Franco Jr. (1986) assevera que por estas<br />

razões, a medievalida<strong>de</strong> procurava por escapatórias num mun<strong>do</strong> além <strong>do</strong> real, além <strong>do</strong><br />

senti<strong>do</strong>. Por isso é que, viven<strong>do</strong> sob o signo <strong>do</strong> <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>, o hom<strong>em</strong> tentou encontrar<br />

refúgio e, quiçá <strong>de</strong>scanso, tranqüilida<strong>de</strong> e conhecimento, num mun<strong>do</strong> imaginário que se<br />

mostrasse <strong>em</strong> seu mun<strong>do</strong> concreto. As palavras <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r explicitam esta afirmação:<br />

83


Não havia propriamente aquilo que chamamos <strong>de</strong> sobrenatural: a própria<br />

palavra surgiu apenas no século XIII, no contexto <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong><br />

uma nova concepção <strong>de</strong> natureza. Ocorriam freqüent<strong>em</strong>ente, isso sim,<br />

hierofanias ou “manifestações <strong>do</strong> sagra<strong>do</strong>” <strong>em</strong> setores da vida que hoje<br />

consi<strong>de</strong>ramos profanos, diferencia<strong>do</strong>s <strong>do</strong> campo “religioso”, como a política<br />

ou a economia. Por ex<strong>em</strong>plo quan<strong>do</strong> o sobrinho <strong>de</strong> Carlos Magno, Rolan<strong>do</strong>,<br />

é morto pelos inimigos na Espanha, <strong>em</strong> toda a França chove, venta, troveja,<br />

escurece, a terra tr<strong>em</strong>e, fenômenos que continuam a ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s<br />

naturais, porém revelan<strong>do</strong> algo mais naquele contexto, a <strong>do</strong>r pela morte <strong>do</strong><br />

herói. Ou seja, o “sobrenatural” se mostran<strong>do</strong> no “natural”, fenômeno <strong>de</strong><br />

todas as religiões, mas especialmente importante no Cristianismo, centra<strong>do</strong><br />

na maior hierofania possível: Deus se fez hom<strong>em</strong> (p. 151).<br />

É o mais puro retrato da concretu<strong>de</strong> da religiosida<strong>de</strong> medieval. O hom<strong>em</strong> necessitava sentir o<br />

aspecto real e concreto <strong>de</strong> sua própria crença, daí os costumes que surgiram relaciona<strong>do</strong>s à<br />

prática cristã católica, como as peregrinações, o culto a relíquias e a imagens, as Cruzadas. A<br />

presença <strong>de</strong> anjos e d<strong>em</strong>ônios era tão comum como a presença <strong>de</strong> uma visita <strong>em</strong> casa. As<br />

exortações e os exorcismos tornaram-se parte da vida, reforçan<strong>do</strong> a dualida<strong>de</strong> B<strong>em</strong> e Mal e<br />

alimentan<strong>do</strong> a importância atribuída às forças maléficas.<br />

Foi, portanto, neste contexto mental que a figura da feiticeira se insere como transgressora das<br />

normas divinais impostas pela Igreja. Isto significa que, por tentar compreen<strong>de</strong>r as forças da<br />

natureza <strong>de</strong> outra maneira que não pela interpretação bíblica, as pessoas que lançavam mão <strong>de</strong><br />

conhecimentos antigos, pré-cristãos, ficaram relegadas à marg<strong>em</strong> <strong>do</strong> padrão sócio-cultural<br />

aceito pelas autorida<strong>de</strong>s eclesiásticas. Todavia, é preciso salientar que o hom<strong>em</strong> medieval, por<br />

estar sujeito às int<strong>em</strong>péries imprevisíveis da natureza, tinha gran<strong>de</strong> interesse (mesmo que<br />

teimasse <strong>em</strong> ocultar) <strong>em</strong> <strong>de</strong>scobrir, conhecer e <strong>de</strong>svendar os meios <strong>de</strong> controlar as forças<br />

naturais, e a figura <strong>de</strong> uma mulher ou hom<strong>em</strong> que <strong>do</strong>minasse esses po<strong>de</strong>res era, por d<strong>em</strong>ais,<br />

atraente. Portanto, o conhecimento pagão, oriun<strong>do</strong> <strong>de</strong> antigas civilizações, repleto <strong>de</strong> imagens,<br />

poções, filtros, rituais, receitas naturais e procedimentos que visavam à influenciação sobre<br />

outr<strong>em</strong> foi objeto <strong>de</strong> interesse, estu<strong>do</strong> e, até mesmo, <strong>de</strong> cobiça.<br />

Nogueira (2004) afirma que o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> magia, a partir <strong>do</strong> século XII,<br />

está calca<strong>do</strong> sobre as relações que o povo estabeleceu com a comunida<strong>de</strong> evangeliza<strong>do</strong>ra e<br />

cristianiza<strong>do</strong>ra que veio sobrepor crenças, práticas e rituais antigos por novos pensamentos<br />

acerca <strong>de</strong> um <strong>de</strong>us supr<strong>em</strong>o. Explica que durante o processo evangelizante, quan<strong>do</strong> o<br />

paganismo ainda possuía força social, a magia se constituía <strong>em</strong> uma crença integrante <strong>do</strong><br />

sist<strong>em</strong>a religioso pagão, <strong>em</strong> contraste e oposição à religião. Isto quer dizer que a religião<br />

84


d<strong>em</strong>onstrava o sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> crenças a partir <strong>de</strong> dualismos: o paganismo se colocava como a<br />

esfera <strong>do</strong> Mal e o Cristianismo como a esfera <strong>do</strong> B<strong>em</strong>, numa relação horizontal <strong>de</strong> forças que<br />

representava a luta entre os vícios e as virtu<strong>de</strong>s, <strong>em</strong> igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> condições.<br />

Para o autor, essa circunstância reflete a política evangeliza<strong>do</strong>ra praticada pela Igreja, sujeita à<br />

autorida<strong>de</strong> eclesiástica, que permitiu a permanência <strong>do</strong>s antigos costumes, num esforço <strong>de</strong>,<br />

pouco a pouco, po<strong>de</strong>r<strong>em</strong> manipulá-los a ponto <strong>de</strong> torná-los obsoletos, esqueci<strong>do</strong>s e, até<br />

mesmo, s<strong>em</strong> efeitos. Entretanto, os resulta<strong>do</strong>s não foram alcança<strong>do</strong>s completamente com<br />

êxito. As marcas <strong>de</strong> uma tradição, crença ou cultura coletiva mostraram-se in<strong>de</strong>léveis no<br />

processo <strong>de</strong>letério movi<strong>do</strong> pelo Cristianismo sobre as forças <strong>do</strong> Paganismo, e como<br />

conseqüência, legaram à posterida<strong>de</strong> as chamadas supertitiones. Para um leitor atento, este<br />

termo se auto-explica e justifica. Assim, o que o processo causou foi uma perda gradativa das<br />

relações <strong>do</strong>s costumes com os antigos sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong> crenças e, para <strong>de</strong>sapontamento geral <strong>do</strong><br />

Clero, tal situação tornara-se incontrolável, pois os clérigos não possuíam meios a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s<br />

para conter ou erradicar o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ste fenômeno <strong>de</strong> supertitiones.<br />

Ainda <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong>, e ultrapassan<strong>do</strong> muitos e vários obstáculos à evangelização a partir da<br />

política da esquivez, a Igreja tornou-se absoluta e concentrou o po<strong>de</strong>r a seu serviço.<br />

Conseqüent<strong>em</strong>ente, pô<strong>de</strong> mudar a condição horizontal da luta entre o B<strong>em</strong> e o Mal,<br />

estabelecen<strong>do</strong> novos conceitos e dispon<strong>do</strong> as relações, agora, <strong>de</strong> forma vertical e sobreposta,<br />

claramente mostran<strong>do</strong> como força superior o B<strong>em</strong> acima da inferiorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Mal. Nogueira<br />

(2004) esclarece que as relações assim dispostas mostravam uma qualificação <strong>de</strong> crenças <strong>em</strong><br />

inferiores e superiores, <strong>de</strong>flagran<strong>do</strong> um terror e repugnância <strong>em</strong> relação à magia, no tocante<br />

ao universo imaginário <strong>do</strong> medievo. Deste mo<strong>do</strong>, as divinda<strong>de</strong>s pagãs, <strong>em</strong>bora percebidas<br />

como entida<strong>de</strong>s reais, passaram a carregar um far<strong>do</strong> <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente negativo.<br />

O combate ao paganismo tornou-se intenso e qualquer prática estranha aos <strong>do</strong>gmas católicos<br />

recebia o rótulo <strong>de</strong> “maldita”. Nogueira (2004) assinala que:<br />

Do combate ao paganismo, e a todas as práticas a este vinculadas, os<br />

teólogos procuraram <strong>de</strong>limitar o campo <strong>de</strong> ação e os efeitos da magia,<br />

colocan<strong>do</strong>-a <strong>em</strong> oposição à religião como pura manifestação <strong>do</strong> Mal e<br />

contan<strong>do</strong> com a intervenção <strong>de</strong> uma “divinda<strong>de</strong>” maléfica: o Diabo (p. 31).<br />

85


A partir das relações estabelecidas entre o povo cristianiza<strong>do</strong> e a Igreja, o conceito <strong>de</strong> magia<br />

pareceu absorver uma necessida<strong>de</strong> coletiva <strong>em</strong> enxergar <strong>em</strong> uma figura, hom<strong>em</strong> ou mulher,<br />

um representante da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong>. Daí o buscar contínuo <strong>do</strong> contato entre<br />

pessoas comuns e pessoas especiais, escolhidas pelos “<strong>de</strong>uses”, através <strong>de</strong> <strong>do</strong>ns<br />

aparent<strong>em</strong>ente divinos, como capacida<strong>de</strong> intelectual aguçada, inteligência marcante, astúcia<br />

saliente, m<strong>em</strong>ória prodigiosa, habilida<strong>de</strong>s com plantas e animais, capacida<strong>de</strong> telepática e<br />

adivinha, entre outros <strong>do</strong>ns naturais atribuí<strong>do</strong>s a magos e magas. Segun<strong>do</strong> Nogueira (2004), o<br />

mago não exerce seus po<strong>de</strong>res através <strong>do</strong>s fenômenos sobrenaturais, mas sim intervém na<br />

ord<strong>em</strong> natural das coisas, isto é, transforman<strong>do</strong> o que s<strong>em</strong>pre pareceu incompreensível para o<br />

povo num universo inteligível e passível <strong>de</strong> manipulação pelo conhecimento <strong>de</strong> práticas e<br />

segre<strong>do</strong>s ocultos.<br />

Assim, compreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> num âmbito geral o conceito <strong>de</strong> magia para o hom<strong>em</strong> da Ida<strong>de</strong> Média,<br />

há que se mostrar o significa<strong>do</strong> e o lugar da feitiçaria e, conseguint<strong>em</strong>ente, o da feiticeira.<br />

Sen<strong>do</strong> a magia um fenômeno que representa uma ação <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong>, a diferenciação <strong>do</strong>s<br />

conceitos relaciona<strong>do</strong>s à bruxaria e à feitiçaria resi<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sta ação, ou seja, na sua<br />

prática, no meio <strong>em</strong> que atua e na maneira <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>senvolução.<br />

Nogueira (2004) comenta, ainda, a complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se compreen<strong>de</strong>r as diferenças entre estas<br />

duas figuras <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à universalida<strong>de</strong> das práticas mágicas. Assim, partin<strong>do</strong> para uma distinção<br />

baseada <strong>em</strong> fatores históricos <strong>de</strong> formação arquetípica, o historia<strong>do</strong>r brasileiro ressalta o fato<br />

<strong>de</strong> o termo ‘feitiçaria’ estar vincula<strong>do</strong> à idéia <strong>de</strong> “algo feito”, ten<strong>do</strong> relações com a palavra<br />

latina fatum, que significa <strong>de</strong>stino. Para alguns autores, a orig<strong>em</strong> está associada à magia<br />

erótica, <strong>de</strong> função realiza<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos e pulsões sexuais. Vinda da magia <strong>de</strong>senvolvida na<br />

Grécia, a feitiçaria estaria intimamente atada às operações mágicas que visavam aten<strong>de</strong>r às<br />

paixões amorosas. Explica que a feiticeira agia como uma intermediária nos casos amorosos,<br />

efetuan<strong>do</strong> trabalhos mágicos juntamente a técnicas e a observações comuns e correntes nos<br />

contextos amorosos.<br />

Duas idéias principais são apresentadas pelo autor: a imag<strong>em</strong> arquetípica da mulher que<br />

encanta e enfeitiça os homens, fazen<strong>do</strong>-os <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iras marionetes. Os termos “encantar” e<br />

“enfeitiçar” são carrega<strong>do</strong>s <strong>de</strong> conotação erótica. Esta imag<strong>em</strong> está associada a uma figura<br />

clássica da mitologia grega, Circe. A outra idéia refere-se a um outro la<strong>do</strong> f<strong>em</strong>inino, o da<br />

tragicida<strong>de</strong> representada pelo forte apelo sexual junto à frustração <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo. Tal<br />

86


circunstância ocasiona a prática <strong>do</strong> mal, <strong>em</strong> <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> vingança passional. Esta idéia está<br />

associada à figura mitológica <strong>de</strong> Medéia. Por conseguinte, à feiticeira é essencial a existência<br />

<strong>de</strong> ambos os conceitos comenta<strong>do</strong>s acima para formar o conjunto <strong>de</strong> características que<br />

<strong>de</strong>terminarão o seu campo <strong>de</strong> atuação. “O mun<strong>do</strong> da feitiçaria é o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo, <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo<br />

<strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente passional, que a tu<strong>do</strong> se sobrepõe para conseguir uma resposta para uma<br />

paixão não correspondida ou proibida” (NOGUEIRA, 2004, p. 43).<br />

As ativida<strong>de</strong>s comuns da feiticeira envolv<strong>em</strong> a utilização <strong>de</strong> ervas e ungüentos, prepara<strong>do</strong>s<br />

especiais para diversas enfermida<strong>de</strong>s, principalmente àquelas advindas <strong>do</strong> coração, s<strong>em</strong>pre<br />

necessitadas <strong>de</strong> orientação psicológica. Dessas ativida<strong>de</strong>s resultavam conhecimentos positivos<br />

que foram transmiti<strong>do</strong>s da feiticeira greco-romana à sua primeira correspon<strong>de</strong>nte oci<strong>de</strong>ntal: a<br />

feiticeira medieval. Como já apresenta<strong>do</strong> anteriormente neste mesmo tópico, durante a Ida<strong>de</strong><br />

Média, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao conceito mental impresso às práticas mágicas, a feitiçaria ficou relegada<br />

unicamente ao <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> Mal.<br />

Le Goff (1980) sintetiza as formas como a Igreja triunfou sobre a cultura folclórica <strong>do</strong>s<br />

camponeses. Para o historia<strong>do</strong>r francês três foram os meios principais pelos quais a cultura<br />

eclesiástica proce<strong>de</strong>u para o combate ao paganismo: a <strong>de</strong>struição, a expunção e a<br />

<strong>de</strong>snaturalização <strong>do</strong>s costumes e crenças antigos. Os <strong>do</strong>is primeiros meios refer<strong>em</strong>-se à<br />

sobreposição <strong>de</strong> t<strong>em</strong>as, rituais e imagens cristãs aos correspon<strong>de</strong>ntes antecessores pagãos. O<br />

terceiro meio utiliza<strong>do</strong>, e segun<strong>do</strong> o autor, o mais importante, refere-se à manutenção parcial<br />

das formas, acompanhada <strong>de</strong> mudanças radicais <strong>em</strong> seus significa<strong>do</strong>s. Assim, a postura da<br />

Igreja <strong>do</strong> século XI, por ex<strong>em</strong>plo, mostrou-se contra especialmente as crenças, punin<strong>do</strong> a<br />

estas e não as ações mágicas, uma vez que não d<strong>em</strong>onstravam a concretu<strong>de</strong> da fé. Para ilustrar<br />

esta afirmação, uma citação que Nogueira (2004) faz <strong>de</strong> Burchard <strong>de</strong> Worms, <strong>em</strong> suas<br />

instruções a bispos e padres a respeito <strong>de</strong> superstições populares e a forma <strong>de</strong> puni-las:<br />

Acreditastes ou participastes nesta impieda<strong>de</strong>, que uma mulher por<br />

malefícios e encantamentos po<strong>de</strong> transformar a mente <strong>do</strong>s homens,<br />

transforman<strong>do</strong> ódio <strong>em</strong> amor e amor <strong>em</strong> ódio, e através <strong>de</strong> feitiços possa<br />

roubar ou <strong>de</strong>struir os bens humanos? Se acreditastes ou participastes um ano<br />

<strong>de</strong> penitências nas festas legítimas (p. 44).<br />

Um outro aspecto importante a <strong>de</strong>clarar é a necessida<strong>de</strong> que os homens da Ida<strong>de</strong> Média<br />

tinham da existência e presença da feiticeira: ela era como uma terapeuta <strong>de</strong> males físicos e<br />

sociais. Toda a socieda<strong>de</strong> buscava seus auxílios, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os mais pobres aos mais abasta<strong>do</strong>s e<br />

87


até mesmo a nobreza. Sua atuação <strong>em</strong> uma al<strong>de</strong>ia chegava às terras mais distantes e a fama<br />

lhe trazia clientes. Portanto, Nogueira (2004) <strong>de</strong>staca que a consciência medieval retoma da<br />

Antigüida<strong>de</strong> Clássica a ação benéfica da magia, que, por sua vez, fundamenta a existência da<br />

boa feiticeira. Esta, na visão popular, utilizava seus conhecimentos oriun<strong>do</strong>s <strong>de</strong> séculos <strong>de</strong><br />

práticas acumuladas <strong>de</strong> feitiçaria para amenizar ou curar enfermida<strong>de</strong>s.<br />

Em suma, a feitiçaria é um fenômeno arquetípico social. Suas origens r<strong>em</strong>ontam a antigos<br />

sist<strong>em</strong>as agrícolas <strong>de</strong> inclinação matriarcal, <strong>em</strong> que a mulher era responsável não somente<br />

pelo cultivo da terra, como também servia <strong>de</strong> sacer<strong>do</strong>tisa. Nogueira (2004) ressalta que a<br />

associação <strong>de</strong>stes cultos neolíticos com aqueles pratica<strong>do</strong>s na Antiguida<strong>de</strong> greco-latina é<br />

bastante significativa, pois que retrata a sobrevivência da feiticeira <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma nova<br />

estrutura mental. No ambiente medievo-oci<strong>de</strong>ntal, num esqu<strong>em</strong>a coletivo, a feiticeira se<br />

encontrava intrinsecamente ligada à realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>do</strong>is sexos, um subjuga<strong>do</strong>r e outro subjuga<strong>do</strong><br />

e, igualmente, à tentativa <strong>de</strong>ste último <strong>de</strong> inverter ou superar esta situação através <strong>de</strong> práticas<br />

e ações psicossimbólicas e materiais. Daí a atribuir-se termos como fascínio, sedutora,<br />

encanta<strong>do</strong>ra não só à figura misteriosa da feiticeira, mas também à mulher comum. Estas<br />

palavras, usadas freqüent<strong>em</strong>ente para <strong>de</strong>signar a ação f<strong>em</strong>inina sobre a masculina, reflet<strong>em</strong> o<br />

nível condicionante <strong>do</strong> sexo <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>r da vida amorosa.<br />

A feitiçaria, rural nos t<strong>em</strong>pos r<strong>em</strong>otos, v<strong>em</strong> para a cida<strong>de</strong> durante o perío<strong>do</strong> clássico da<br />

Antigüida<strong>de</strong> e estabelece quase que um ofício bastante popular na Roma Imperial, mas sofre<br />

uma redução <strong>de</strong> atuação na Alta Ida<strong>de</strong> Média, apenas vin<strong>do</strong> alcançar êxito e popularida<strong>de</strong><br />

novamente com a reurbanização da Europa. Assim, po<strong>de</strong>-se concluir que a feitiçaria era uma<br />

prática essencialmente individual e <strong>de</strong> caráter urbano: as cida<strong>de</strong>s abundavam <strong>em</strong> probl<strong>em</strong>as<br />

humanos que necessitavam <strong>de</strong> pessoas media<strong>do</strong>ras <strong>em</strong> qu<strong>em</strong> se pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> <strong>de</strong>positar<br />

esperanças e <strong>de</strong>sejos. Nogueira (2004) alerta para o fato <strong>de</strong> que não se <strong>de</strong>ve ignorar a<br />

existência <strong>de</strong> feitiçaria no ambiente rural da Ida<strong>de</strong> Média, entretanto, sua atuação urbana é que<br />

foi relevante no que condiz ao processo civilizacional vivi<strong>do</strong> pelos povos que formaram o<br />

oci<strong>de</strong>nte medieval.<br />

3.3.2 A bruxaria<br />

O fenômeno da bruxaria muito se difere da feitiçaria, <strong>em</strong> especial no tocante à opinião<br />

pública. Este fato se faz relevante à medida que a bruxaria somente acontece através da<br />

88


importância e, conseqüent<strong>em</strong>ente da possível comprovação <strong>de</strong> sua existência, que as pessoas<br />

da Ida<strong>de</strong> Média atribuíam à protagonista mágica, muito mais <strong>do</strong> que a própria bruxa po<strong>de</strong>ria<br />

se proporcionar. Isto implica <strong>em</strong> dizer que as noções, <strong>de</strong>scrições e características que exist<strong>em</strong><br />

hoje acerca da figura da bruxa provêm <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentos articula<strong>do</strong>s por terceiros, ou seja, não<br />

há registro feito pelas mãos <strong>de</strong> próprias <strong>bruxas</strong> a respeito <strong>de</strong> suas atuações na Terra. Todas as<br />

referências <strong>em</strong> torno da imag<strong>em</strong> bruxesca foram legadas pelos homens da época e, <strong>de</strong>sta<br />

forma, a visão pre<strong>do</strong>minante que chegou aos dias atuais foi, <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente, humana,<br />

masculina e repleta <strong>de</strong> interpretações influenciadas pela socieda<strong>de</strong> cristianizada.<br />

Nogueira (2004) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a idéia <strong>de</strong> que a bruxaria, ao contrário da feitiçaria, foi uma prática<br />

mágica rural e <strong>de</strong> caráter coletivo, assumin<strong>do</strong> no imaginário <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong> um papel<br />

b<strong>em</strong> mais passivo <strong>do</strong> que a feitiçaria, uma vez que <strong>de</strong>pendia <strong>do</strong> juízo e da <strong>de</strong>liberação das<br />

próprias pessoas <strong>de</strong> uma coletivida<strong>de</strong> mesmo para existir. O autor salienta ainda que essas<br />

distinções receb<strong>em</strong> maior ou menor aceitação entre estudiosos <strong>de</strong> vários segmentos, como a<br />

História, a Filosofia e a Antropologia, também tocan<strong>do</strong> nos conceitos da Sociologia. Assim,<br />

cita Evans-Pritchard, autor da obra Witchcraft, oracles and magic among the Azan<strong>de</strong>, que<br />

tornou clássica para os antropólogos uma distinção entre a feitiçaria e a bruxaria: para<br />

Pritchard, a bruxa não necessita <strong>de</strong> rituais, não pronuncia encantamentos e não utiliza poções<br />

ou filtros mágicos; ela se constitui numa ofensa imaginária, isto é, um ato psíquico. As<br />

<strong>feiticeiras</strong>, estas sim causam danos aos homens através <strong>de</strong> seus rituais e atos maléficos<br />

mágicos que ultrapassam a marg<strong>em</strong> <strong>do</strong> psíquico e alcançam a materialida<strong>de</strong> <strong>em</strong> seus<br />

resulta<strong>do</strong>s.<br />

Destarte, para as <strong>bruxas</strong> e para as <strong>feiticeiras</strong>, os meios <strong>de</strong> se alcançar um <strong>de</strong>sejo são <strong>de</strong>veras<br />

diferentes, <strong>em</strong>bora para ambas os fins sejam bastante s<strong>em</strong>elhantes. Nogueira (2004) comenta<br />

que esta conceitualização feita por Pritchard foi aplicada à coletivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Azan<strong>de</strong>, e não <strong>de</strong>ve<br />

ser tomada amplamente para toda a comunida<strong>de</strong> européia. No entanto, respeitan<strong>do</strong> as <strong>de</strong>vidas<br />

distâncias, há que se compreen<strong>de</strong>r que a distinção proposta pelo autor é <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> ajuda para<br />

esclarecer o probl<strong>em</strong>a psicológico relaciona<strong>do</strong> à bruxaria <strong>em</strong> uma <strong>de</strong>terminada coletivida<strong>de</strong>.<br />

Entre os historia<strong>do</strong>res, segun<strong>do</strong> o autor, existe uma controvérsia entre os conceitos <strong>de</strong> bruxaria<br />

e <strong>de</strong> feitiçaria. Porém, parte <strong>do</strong>s estudiosos aceita que, apesar <strong>de</strong> a distinção antropológica<br />

sugerida por Pritchard apresentar um uso b<strong>em</strong> limita<strong>do</strong>, a feiticeira utiliza objetos materiais<br />

enquanto que as <strong>bruxas</strong> não. Seguin<strong>do</strong> a linha antropológica, as <strong>feiticeiras</strong> são seres reais e<br />

89


palpáveis e as <strong>bruxas</strong>, seres irreais, estão no nível <strong>do</strong> imaginário. Os historia<strong>do</strong>res, porém, não<br />

concordam com esta assertiva, pois há registros <strong>do</strong>cumentais <strong>de</strong> mulheres acusadas <strong>de</strong><br />

bruxaria e que foram con<strong>de</strong>nadas por realmente tentar<strong>em</strong> causar prejuízos a outras pessoas<br />

através <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos maléficos, s<strong>em</strong>, no entanto, utilizar<strong>em</strong>-se <strong>de</strong> técnicas mágicas.<br />

Há que se concordar com Nogueira sobre a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> se estabelecer uma distinção. Há<br />

que se consi<strong>de</strong>rar, ainda, a confusão mental ocorrida <strong>em</strong> fins da Ida<strong>de</strong> Média <strong>em</strong> relação à<br />

“epid<strong>em</strong>ia das <strong>bruxas</strong>”, que veio agravar o universo mágico atribuin<strong>do</strong>-lhe toda sorte <strong>de</strong><br />

horrores, contaminan<strong>do</strong> todas as práticas mágicas, ligadas à bruxaria ou não, associan<strong>do</strong>-as<br />

diretamente aos “agentes <strong>de</strong> Satã”. Aponta, então, para uma situação peculiar que se<br />

<strong>de</strong>senvolveu na Inglaterra <strong>do</strong>s séculos XVI e XVII, evi<strong>de</strong>ncian<strong>do</strong> a <strong>de</strong>sord<strong>em</strong> mental no que<br />

concerne às ativida<strong>de</strong>s mágicas. Duas facções comportamentais se revelaram. Uma <strong>de</strong>fendia a<br />

punição a to<strong>do</strong>s aqueles que se utilizass<strong>em</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res mágicos, s<strong>em</strong> distinção <strong>do</strong>s fins e s<strong>em</strong><br />

consi<strong>de</strong>ração quanto ao grau <strong>de</strong> controle sobre tal po<strong>de</strong>r. Para esta facção, até mesmo as<br />

superstições eram malignas ou tinham orig<strong>em</strong> <strong>em</strong> Roma, o que significava bruxaria. Em<br />

absoluta oposição a este grupo, estavam aqueles que distinguiam as boas e as más <strong>feiticeiras</strong><br />

pelo resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> suas ações e, no caso das <strong>bruxas</strong>, o que proporcionava a distinção era o grau<br />

<strong>de</strong> controle sobre seu próprio po<strong>de</strong>r encanta<strong>do</strong>r.<br />

Nesta perspectiva, as <strong>bruxas</strong> seriam as verda<strong>de</strong>iras executoras das vonta<strong>de</strong>s <strong>do</strong> d<strong>em</strong>ônio,<br />

enquanto que as <strong>feiticeiras</strong> exerciam um coman<strong>do</strong> sobre suas ações, não estan<strong>do</strong> sujeitas a um<br />

mestre. Para a orto<strong>do</strong>xia religiosa, o interlocutor era passível <strong>de</strong> recuperação, portanto,<br />

<strong>de</strong>pendia esta recuperação <strong>do</strong>s graus <strong>de</strong> participação no universo mágico. Assim é que<br />

marcadamente <strong>em</strong> fins da Ida<strong>de</strong> Média, viu-se <strong>de</strong>senvolver uma sist<strong>em</strong>atização das<br />

participações <strong>em</strong> rituais <strong>de</strong> bruxaria, que vieram a se tornar estu<strong>do</strong>s sobre o d<strong>em</strong>ônio, isto é, a<br />

d<strong>em</strong>onologia. Nogueira (2004) expõe, <strong>de</strong>sse mo<strong>do</strong>, que a priori a prática da bruxaria envolvia<br />

um pacto d<strong>em</strong>oníaco e que, por toda a Europa, buscou-se legislar tentan<strong>do</strong> separar outras<br />

práticas mágicas <strong>do</strong> universo da bruxaria. A bruxaria representava o gran<strong>de</strong> Mal a ser<br />

venci<strong>do</strong>, uma prática herética, oposta à religião e que culminou, através da a<strong>do</strong>ração <strong>do</strong> Mal,<br />

com a criação conseqüente <strong>do</strong> crime horren<strong>do</strong> <strong>de</strong> apostasia. 12<br />

12 Com referência à religião, apostasia se constitui <strong>em</strong> aban<strong>do</strong>no da fé <strong>de</strong> uma igreja, especialmente a cristã;<br />

também aban<strong>do</strong>no <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> religioso ou sacer<strong>do</strong>tal.<br />

90


Em relação às origens da bruxaria, apesar <strong>de</strong> inúmeros estu<strong>do</strong>s e pesquisas <strong>em</strong> diversas áreas<br />

<strong>do</strong> conhecimento, seus resulta<strong>do</strong>s ainda são controversos. Para alguns autores, como Jean-<br />

Michel Sallmann (2002), a bruxaria nada mais é <strong>do</strong> que um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> representação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

e das forças telúricas e invisíveis que animam este mun<strong>do</strong>. Para o autor, <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o contexto<br />

comenta<strong>do</strong> até agora no que concerne à <strong>de</strong>scrição da situação mental coletiva da Ida<strong>de</strong> Média,<br />

<strong>em</strong> seus séculos medianos e finais, e sob a influência da heresia e seus conceitos, é que nasceu<br />

o mito da bruxaria. Precisamente o século XV foi <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância para a <strong>de</strong>limitação<br />

<strong>do</strong>s po<strong>de</strong>res da bruxaria e, principalmente, para a difusão <strong>de</strong>sastrosa da mesma através <strong>do</strong>s<br />

movimentos persecutórios realiza<strong>do</strong>s pelo povo e pela Igreja, com a instituição <strong>do</strong> Santo<br />

Ofício.<br />

Nogueira (2004) comenta que o termo bruxaria aparece, pela primeira vez, no ano <strong>de</strong> 589 e se<br />

relaciona diretamente ao campo. Por isso é bastante comum a citação da bruxaria como<br />

fundamentada no meio rural, estan<strong>do</strong> este distante das facilida<strong>de</strong>s da cida<strong>de</strong> e, portanto, mais<br />

facilmente alienável a uma idéia fantástica. Cita as idéias <strong>de</strong> Charles Lancelin (La sorcellerie<br />

dês campagnes): “por sua própria essência, a bruxaria só po<strong>de</strong> evoluir <strong>em</strong> um meio carente <strong>de</strong><br />

instrução como a população camponesa. Não é na cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> se encontra a verda<strong>de</strong>ira bruxa,<br />

mas sim nos campos” (apud NOGUEIRA, 2004, p. 57). Outra consi<strong>de</strong>ração relevante <strong>de</strong><br />

Nogueira refere-se ao <strong>de</strong>senvolvimento da bruxaria, intimamente, liga<strong>do</strong> ao sucesso <strong>do</strong><br />

Cristianismo. Sallmann, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong>, explica que o nascimento <strong>do</strong> mito da bruxaria<br />

associa-se à Inquisição e o século XV: “A bruxaria é uma invenção <strong>do</strong> século XV, à qual o<br />

procedimento inquisitorial confere uma estrutura orgânica” (2002, p.20).<br />

Por intermédio das leituras, enten<strong>de</strong>-se que Nogueira parece concordar com Charles Lancelin<br />

no que respeita à ambientação da bruxa no espaço rural. Sustenta a afirmação <strong>de</strong> que o campo<br />

guardava uma presença mais intensa <strong>de</strong> tradições antigas e gozava <strong>de</strong> uma certa liberda<strong>de</strong><br />

quanto à orto<strong>do</strong>xia religiosa. Desta forma, o historia<strong>do</strong>r brasileiro dispõe a coletivida<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />

final da Ida<strong>de</strong> Média como influenciada pelo dualismo religioso propaga<strong>do</strong> pela heresia<br />

Cátara. Esta heresia pregava certa igualda<strong>de</strong> entre os <strong>do</strong>is po<strong>de</strong>res, o B<strong>em</strong> e o Mal, porém<br />

aqueles que con<strong>de</strong>navam os Cátaros acabaram por lhes conferir uma importância ainda maior,<br />

amplian<strong>do</strong> enorm<strong>em</strong>ente o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> Mal. Em conseqüência, Satã abria os braços e<br />

alcançava uma porção populacional cada vez maior e incr<strong>em</strong>entava a ação <strong>de</strong> seus agentes, as<br />

<strong>bruxas</strong>.<br />

91


Oficializa<strong>do</strong> pelos juízes cristãos, o culto d<strong>em</strong>oníaco os teve como principais test<strong>em</strong>unhas da<br />

repressão aos po<strong>de</strong>res malignos. A bruxa tornou-se uma espécie <strong>de</strong> concubina <strong>do</strong> diabo,<br />

realiza<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> feitos conferi<strong>do</strong>s ao d<strong>em</strong>ônio. Representava o irreal através <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />

suas ações maléficas e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, o real e material palpável a que se podia perseguir,<br />

punir, torturar e banir <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada socieda<strong>de</strong>, uma vez que não se t<strong>em</strong> notícia <strong>de</strong> que<br />

algum tribunal da Inquisição ou mesmo os juízes seculares tenham aprisiona<strong>do</strong> o próprio<br />

D<strong>em</strong>ônio para “averiguação” e punição.<br />

Sallmann (2002) consi<strong>de</strong>ra a bruxaria, <strong>em</strong> toda a extensão <strong>de</strong> suas ativida<strong>de</strong>s, como um mito<br />

cria<strong>do</strong> e construí<strong>do</strong> pelos juízes inquisi<strong>do</strong>res que passaram a perseguir não somente <strong>bruxas</strong>,<br />

mas outros tipos <strong>de</strong> heréticos com o mesmo ar<strong>do</strong>r. Liga a bruxaria ao surgimento <strong>do</strong> mito<br />

d<strong>em</strong>oníaco e às ondas <strong>de</strong> caça às <strong>bruxas</strong>, que ocorreram <strong>em</strong> diversos lugares, com mais ou<br />

menos intensida<strong>de</strong>. O autor comenta que to<strong>do</strong>s estes fatos históricos <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser situa<strong>do</strong>s no<br />

contexto extr<strong>em</strong>amente conturba<strong>do</strong> <strong>do</strong>s séculos XV e XVI, quan<strong>do</strong> a cristanda<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal<br />

encontrava-se dividida pelas heresias e, posteriormente, pela ruptura da Reforma Protestante.<br />

Portanto, o autor sugere que a bruxaria tenha si<strong>do</strong> uma espécie <strong>de</strong> resposta às tribulações<br />

religiosas sofridas pelo povo da época.<br />

As angústias <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> medieval <strong>de</strong>ste t<strong>em</strong>po fortaleceram a coexistência <strong>de</strong> Deus e <strong>do</strong><br />

D<strong>em</strong>ônio, fazen<strong>do</strong> com que este dualismo se tornasse parte <strong>do</strong> próprio universo medieval,<br />

evi<strong>de</strong>ncian<strong>do</strong> um verda<strong>de</strong>iro campo <strong>de</strong> batalha entre as facções <strong>de</strong> um e <strong>de</strong> outro la<strong>do</strong>.<br />

Nogueira (2004) explicita que o Diabo aparece como que assumin<strong>do</strong> uma posição na<br />

hierarquia feudal, pois que oferece proteção e po<strong>de</strong>r <strong>em</strong> troca <strong>de</strong> total submissão e<br />

subserviência, tal qual a relação entre suserano e vassalo. Esta relação, segun<strong>do</strong> o autor,<br />

<strong>de</strong>nota a espontânea rebelião da bruxaria contra a orto<strong>do</strong>xia, o que indica um distanciamento<br />

da feitiçaria e da magia, ainda que estas práticas mantivess<strong>em</strong> outras proximida<strong>de</strong>s. Os<br />

malefícios pratica<strong>do</strong>s pelas <strong>feiticeiras</strong> gozavam <strong>de</strong> uma importância secundária para o<br />

universo das <strong>bruxas</strong>. Estes não representavam gran<strong>de</strong>s feitos ou a concentração <strong>do</strong> Mal; o que<br />

realmente con<strong>de</strong>nava as <strong>bruxas</strong> era a noção <strong>de</strong> que recebiam seus po<strong>de</strong>res <strong>em</strong> <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong><br />

um pacto <strong>de</strong>libera<strong>do</strong> com o Diabo. Tal a gran<strong>de</strong> distinção entre a bruxaria e as outras práticas<br />

mágicas.<br />

A síntese <strong>do</strong> Mal, na bruxaria, não consiste <strong>em</strong> causar danos a outr<strong>em</strong>, mas sim no<br />

conciliábulo com o D<strong>em</strong>ônio, prática <strong>de</strong> caráter herético, <strong>em</strong> que existe a <strong>de</strong>liberada e<br />

92


espontânea renúncia a Deus <strong>em</strong> prol da a<strong>do</strong>ração ao Diabo. É por isso que a bruxaria foi, via<br />

<strong>de</strong> regra, a gran<strong>de</strong> inimiga da Cristanda<strong>de</strong> nestes séculos <strong>de</strong> perturbação religiosa. A Igreja<br />

t<strong>em</strong>eu não conseguir terminar a obra <strong>do</strong> Re<strong>de</strong>ntor. Lutou <strong>de</strong> todas as formas até encontrar um<br />

meio <strong>de</strong> purificação da alma, uma vez que o corpo material já havia pendi<strong>do</strong> ao Inferno. O<br />

fogo da re<strong>de</strong>nção significava o alcance <strong>do</strong> perdão divino. Não importava ao Clero se a bruxa<br />

havia pratica<strong>do</strong> mal a alguém ou a alguma comunida<strong>de</strong> inteira; só o fato <strong>de</strong> ser bruxa já<br />

implicava <strong>em</strong> pena mortal, afinal era a figura da bruxa a verda<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>sertora <strong>do</strong> exército <strong>de</strong><br />

Deus. Parece clara a noção <strong>de</strong> que a própria Igreja promoveu a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Satã e <strong>de</strong> seus<br />

agentes num esforço <strong>de</strong> apregoar a fé cristã e o po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> B<strong>em</strong>, mesmo se valen<strong>do</strong> <strong>de</strong> práticas<br />

que não condiziam com os preceitos <strong>do</strong> Cristo. Da mesma maneira, afiguram-se os gran<strong>de</strong>s<br />

benefícios que a Igreja obteve com a elevação <strong>do</strong> Mal e com a perseguição aos agentes <strong>do</strong><br />

D<strong>em</strong>ônio. Sallmann (2002) conclui que uma das características mais comuns <strong>do</strong>s homens<br />

medievais <strong>de</strong>stes séculos, já <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>clínio, foi a promoção da imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Satã como a<br />

concentração maligna <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os infortúnios. O autor, sabiamente, resume a atuação da<br />

Igreja <strong>em</strong> relação aos excluí<strong>do</strong>s:<br />

A crença na existência <strong>de</strong> uma seita <strong>de</strong> a<strong>do</strong>ra<strong>do</strong>res <strong>do</strong> D<strong>em</strong>ônio é atestada<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XI e constitui o estereótipo da exclusão praticada pelo clero<br />

<strong>em</strong> relação aos grupos heréticos ou pretensos heréticos. Para legitimar a<br />

repressão, os que protestavam eram apresenta<strong>do</strong>s à opinião pública <strong>de</strong>scritos<br />

da maneira mais sombria. Assim nasceram os t<strong>em</strong>as da a<strong>do</strong>ração <strong>do</strong> Diabo,<br />

da execração da religião cristã, da missa negra, <strong>do</strong> assassinato ritual, <strong>do</strong><br />

canibalismo, da promiscuida<strong>de</strong> sexual. A maior parte <strong>do</strong>s movimentos<br />

heréticos foi acusada <strong>de</strong>ssas abominações (...) (p. 24).<br />

Encontram-se pontos <strong>de</strong> convergência entre alguns autores, mesmo que as consi<strong>de</strong>rações<br />

tenham si<strong>do</strong> feitas <strong>em</strong> senti<strong>do</strong>s diferentes. Apesar <strong>de</strong> a orig<strong>em</strong> verda<strong>de</strong>ira da bruxaria e<br />

feitiçaria estar sob uma nuv<strong>em</strong> <strong>de</strong> mistérios, dadas a imprecisão <strong>de</strong> registros históricos e as<br />

divergentes interpretações <strong>de</strong> estudiosos, um fator concordante parece estar presente na<br />

maioria das afirmações entre os pesquisa<strong>do</strong>res: bruxaria e religião, ou mesmo bruxaria e<br />

Igreja s<strong>em</strong>pre estiveram intrinsecamente unidas, ainda que representan<strong>do</strong>, cada uma, a face<br />

distinta <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r.<br />

A literatura medieval nunca <strong>de</strong>sprezou totalmente as referências ao mun<strong>do</strong> mágico. Menções<br />

a uma realida<strong>de</strong> fantástica on<strong>de</strong> habitam seres extraordinários, animais espetaculares e<br />

pessoas <strong>do</strong>tadas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res extra-sensoriais s<strong>em</strong>pre povoaram o imaginário medieval e<br />

alimentaram os t<strong>em</strong>ores, b<strong>em</strong> como estimularam a curiosida<strong>de</strong> científica e espiritual. Deste<br />

93


mo<strong>do</strong>, é bastante evi<strong>de</strong>nte a permanência <strong>de</strong> imagens como as da bruxa e da feiticeira fora<br />

<strong>de</strong>ste ambiente fantástico e habitan<strong>do</strong>, principalmente, a realida<strong>de</strong> humana. Da mesma<br />

maneira que a razão atualiza os atos litúrgicos, também renova a relação existente entre o<br />

mun<strong>do</strong> real e o imaginário, alimenta<strong>do</strong>s pela mente humana.<br />

Feiticeiras e <strong>bruxas</strong> continuam a existir entre os seres humanos. As mudanças sofridas<br />

encontram-se na esfera <strong>do</strong> conhecimento acerca <strong>de</strong> seres fantásticos e também da percepção<br />

humana. Ora, isso equivale a dizer que as personagens fantásticas são as mesmas, o que se<br />

alteram são as interpretações atribuídas a elas ao longo <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po.<br />

A mulher medieval e a feiticeira ou bruxa existentes no corpus da pesquisa serão postas <strong>em</strong><br />

confronto, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> como são apresentadas pelos seus autores. Suas características físicas e<br />

comportamentais serão <strong>de</strong>lineadas para estabelecer-se o contraste entre ficção e realida<strong>de</strong>,<br />

personag<strong>em</strong> e pessoa, segun<strong>do</strong> a teoria literária que apóia a proposta <strong>de</strong> pesquisa. A D<strong>em</strong>anda<br />

<strong>do</strong> Santo Graal e Amadis <strong>de</strong> Gaula serão, no próximo capítulo, analisadas ten<strong>do</strong> como<br />

referência a História, ressaltan<strong>do</strong> o seu valor literário, numa discussão teórico-literária sobre a<br />

questão <strong>do</strong> reverso da figura f<strong>em</strong>inina.<br />

94


4 O REVERSO DA FIGURA FEMININA NAS OBRAS: AMADIS DE GAULA E A<br />

DEMANDA DO SANTO GRAAL<br />

Configura-se neste capítulo a importante tarefa <strong>de</strong> se estabelecer uma abordag<strong>em</strong> teóricocrítico-literária,<br />

ten<strong>do</strong> como cenário a contextualização histórica. A proposta <strong>de</strong> análise das<br />

personagens <strong>bruxas</strong> e <strong>feiticeiras</strong> existentes nas obras Amadis <strong>de</strong> Gaula e A D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo<br />

Graal fundamenta-se na teoria da personag<strong>em</strong>, vislumbran<strong>do</strong>-se a sua construção, a partir das<br />

informações históricas discutidas nos capítulos anteriores, objetivan<strong>do</strong> d<strong>em</strong>onstrar as<br />

s<strong>em</strong>elhanças e diversida<strong>de</strong>s, distâncias e proximida<strong>de</strong>s que exist<strong>em</strong> entre a ficção e a<br />

realida<strong>de</strong>. Destarte, personag<strong>em</strong> e pessoa irão assumir <strong>de</strong>stacada posição entre to<strong>do</strong>s os outros<br />

fatores que influ<strong>em</strong> diretamente na narrativa.<br />

Literatura e História formam um duo intrica<strong>do</strong> e complexo <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s que impregnam o ser<br />

humano, esteja este <strong>em</strong> qualquer situação <strong>de</strong> vida: pessoa comum, trabalha<strong>do</strong>r, nobre, servo,<br />

escritor, leitor, narra<strong>do</strong>r, entre outras tantas. Bastante presumível é o fato <strong>de</strong> que as ligações<br />

entre Literatura e História s<strong>em</strong>pre influenciaram gerações e continuarão a influenciar. Po<strong>de</strong>r<br />

analisar alguns aspectos convergentes e divergentes <strong>de</strong>stas ligações t<strong>em</strong> si<strong>do</strong> um privilégio <strong>de</strong><br />

estudiosos e a priorida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste trabalho.<br />

As obras estão representadas no panorama literário das <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> da Ida<strong>de</strong> Média.<br />

Entretanto, sen<strong>do</strong> este um intervalo histórico d<strong>em</strong>asiadamente extenso, faz-se necessária a<br />

constatação <strong>de</strong> características distintas <strong>em</strong> cada uma das obras, no que se refere à construção<br />

literária e a aspectos <strong>de</strong> formação histórica e aos momentos <strong>em</strong> que circularam pela Europa<br />

medieval, como também aos anseios <strong>do</strong>s ouvintes e/ou leitores atentos <strong>de</strong> cada perío<strong>do</strong>.<br />

A <strong>cavalaria</strong> n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre foi a mesma no <strong>de</strong>correr <strong>do</strong>s séculos medievais. Sofreu mudanças<br />

físicas e <strong>de</strong> ord<strong>em</strong> i<strong>de</strong>ológica que transparec<strong>em</strong> nos textos característicos que exaltam a figura<br />

<strong>do</strong> cavaleiro. Importante é ressaltar que este trabalho preten<strong>de</strong> centrar a atenção <strong>em</strong><br />

personagens f<strong>em</strong>ininas secundárias, fantásticas e, quase s<strong>em</strong>pre, marginais à narrativa e à<br />

História. Provenientes <strong>do</strong> ambiente pagão mescla<strong>do</strong> ao cristão, presente nas <strong>novelas</strong><br />

cavaleirescas, estas personagens revestiram-se <strong>de</strong> mistério, incompreensão e, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po, fascínio. Exerceram e continuam a exercer, uma intensa atração sobre os leitores, que<br />

95


as fizeram se elevar <strong>do</strong>s cantos escusos para povoar o imaginário fantástico das gerações até<br />

os dias <strong>de</strong> hoje.<br />

As <strong>bruxas</strong> ou <strong>feiticeiras</strong> constitu<strong>em</strong> uma parte freqüente <strong>do</strong>s el<strong>em</strong>entos <strong>de</strong> cunho pagão que<br />

conviveram ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s el<strong>em</strong>entos cristãos nas <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>. Essa convivência, até<br />

certo ponto pacífica e harmoniosa, não ocorreu <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada n<strong>em</strong> tampouco<br />

inesperada. Este assunto, especificamente a respeito da vivência conjunta <strong>de</strong> aspectos pagãos<br />

e cristãos, constitui parte relevante para a análise das obras, pois que reveste um <strong>do</strong>s objetivos<br />

<strong>de</strong>ste trabalho. Sua essência repousa nos el<strong>em</strong>entos constitutivos da figura da feiticeira ou<br />

bruxa, que recebeu ambas as influências <strong>em</strong> sua roupag<strong>em</strong> medieval.<br />

É preciso comentar que antes <strong>do</strong> advento da Cristanda<strong>de</strong>, a feitiçaria antiga esteve presente<br />

<strong>em</strong> todas as civilizações a que se t<strong>em</strong> conhecimento. O que as diferenciava eram os ritos <strong>de</strong><br />

acor<strong>do</strong> com os panteões <strong>de</strong> cada cultura. Desta forma, <strong>de</strong>ve-se enten<strong>de</strong>r o termo “pagão” após<br />

a vinda <strong>do</strong> Cristo e a instituição <strong>do</strong> Cristianismo como religião monoteísta e universal. O que<br />

permite dizer que apenas <strong>em</strong> paralelo com os <strong>do</strong>gmas e crenças cristãs é que a feitiçaria ou<br />

el<strong>em</strong>entos sobrenaturais pod<strong>em</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s pagãos. Por isso, é importante salientar que a<br />

Ida<strong>de</strong> Média como perío<strong>do</strong> histórico, ten<strong>do</strong> servi<strong>do</strong> aos propósitos <strong>do</strong> Catolicismo, formou os<br />

conceitos relativos ao paganismo, ou seja, a tu<strong>do</strong> quanto se colocava além da interpretação<br />

materialista <strong>do</strong>s evangelhos <strong>do</strong> Novo Testamento.<br />

Com base nestas consi<strong>de</strong>rações, a partir <strong>de</strong> agora, iniciar-se-á uma introdução relativa ao<br />

ambiente das <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>, às suas características literárias e históricas, b<strong>em</strong> como os<br />

<strong>de</strong>talhes <strong>de</strong> formação, a fim <strong>de</strong> apresentar um panorama <strong>de</strong>ste gênero literário narrativo.<br />

Igualmente incorporar-se-ão as obras corpus <strong>de</strong>sta pesquisa, a saber, Amadis <strong>de</strong> Gaula e A<br />

D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal, <strong>de</strong>stacan<strong>do</strong>-lhes o fio narrativo que compõe os conteú<strong>do</strong>s<br />

diegéticos <strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>las.<br />

4.1 NOVELAS DE CAVALARIA<br />

As <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> traz<strong>em</strong> muito mais <strong>do</strong> que apenas informações literárias. Cabe<br />

afirmar, antes <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>scrição mais pormenorizada, que o termo “novela”, utiliza<strong>do</strong> no título<br />

e ao longo <strong>de</strong>ste trabalho, se constitui uma escolha pessoal entre outros termos também<br />

96


usa<strong>do</strong>s para <strong>de</strong>signá-las como “romance <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>”, “narrativa cavaleiresca” ou “livro <strong>de</strong><br />

<strong>cavalaria</strong>”. É importante esclarecer que existe, para alguns críticos literários, uma<br />

diferenciação formal entre estas <strong>de</strong>nominações; não no que respeita à <strong>cavalaria</strong>, mas,<br />

principalmente, às possibilida<strong>de</strong>s entre “novela” e “romance”. Entretanto, há especialistas que<br />

não consi<strong>de</strong>ram relevantes tais distinções e, por isso, encontram as classificações “novela <strong>de</strong><br />

<strong>cavalaria</strong>” e “romance <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>” como equivalentes.<br />

A intenção não é discutir tais discordâncias. Consi<strong>de</strong>rar-se-á a equivalência entre os termos,<br />

uma vez que o corpus seleciona<strong>do</strong> apresenta características constitutivas <strong>de</strong> novela; no<br />

entanto, é interessante esclarecer que por se tratar<strong>em</strong> <strong>de</strong> obras pertencentes a t<strong>em</strong>pos<br />

históricos distintos na Ida<strong>de</strong> Média, elas sofreram influências diversificadas <strong>em</strong> suas<br />

construções, cada uma obe<strong>de</strong>cen<strong>do</strong> às tendências comportamentais próprias <strong>de</strong> sua época. As<br />

<strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> são entendidas como um gênero narrativo e buscou-se compreendê-las a<br />

partir das propostas da teoria da narrativa. Sen<strong>do</strong> assim, o uso <strong>do</strong> termo “romance <strong>de</strong><br />

<strong>cavalaria</strong>” equivalerá ao <strong>de</strong> “<strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>”, cujas categorias correspond<strong>em</strong> às <strong>do</strong><br />

romance mo<strong>de</strong>rno.<br />

Como produções literárias da Ida<strong>de</strong> Média, as <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> são uma das manifestações<br />

literárias <strong>de</strong> ficção <strong>em</strong> prosa mais ricas <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> medieval. Historia<strong>do</strong>res e estudiosos<br />

<strong>de</strong> literatura afirmam que elas formam um verda<strong>de</strong>iro código <strong>de</strong> conduta medieval e<br />

cavaleiresca, propician<strong>do</strong> aos leitores uma visão mais <strong>de</strong>talhada e, por isso, mais próxima da<br />

realida<strong>de</strong> vivida pelo hom<strong>em</strong> <strong>do</strong> medievo. Possuíam caráter simbólico e místico para relatar<br />

aventuras e feitos maravilhosos <strong>de</strong> heróis cavaleiros, imbuí<strong>do</strong>s <strong>de</strong> espiritualida<strong>de</strong> cristã e, ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po, <strong>de</strong> enigmática pagã.<br />

A orig<strong>em</strong> das <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> não está completamente certa. A maioria <strong>do</strong>s<br />

pesquisa<strong>do</strong>res as <strong>de</strong>clara como originadas das canções <strong>de</strong> gesta, cuja prosificação e escrita<br />

teriam si<strong>do</strong> o <strong>em</strong>brião das <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>. Para alguns estudiosos, estas <strong>novelas</strong> não se<br />

ligam a estas canções, principalmente porque as primeiras pertenc<strong>em</strong> à prosa e as segundas, à<br />

poesia. Por outro la<strong>do</strong>, suger<strong>em</strong> que as <strong>novelas</strong> cavaleirescas tenham se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra<strong>do</strong>, <strong>em</strong><br />

algum momento, da epopéia clássica. Não há dúvidas que as <strong>novelas</strong> apresentam traços <strong>em</strong><br />

comum tanto com as canções <strong>de</strong> gesta, como com a epopéia clássica. Difícil, realmente, se faz<br />

precisar o momento <strong>do</strong> nascimento das <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> e, então, <strong>de</strong>terminar sua real<br />

orig<strong>em</strong>, ressaltan<strong>do</strong>-se que tal probl<strong>em</strong>ática existe.<br />

97


As <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> propalaram-se durante a Ida<strong>de</strong> Média e representaram, por muito<br />

t<strong>em</strong>po, os anseios e fantasias <strong>de</strong> to<strong>do</strong> um continente, especialmente na França, Grã-Bretanha,<br />

Portugal e Espanha. Suas principais características t<strong>em</strong>áticas giram <strong>em</strong> torno <strong>de</strong> heróis<br />

cavaleiros e façanhas extraordinárias, proven<strong>do</strong> às necessida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> imaginário oci<strong>de</strong>ntal <strong>do</strong><br />

medievo, <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos bárbaros. Não há como ignorar que estas <strong>novelas</strong> sugeriam origens<br />

nacionais aqui e ali e também relações entre reinos e esta<strong>do</strong>s num momento histórico <strong>em</strong> que<br />

muitos ainda estavam se configuran<strong>do</strong>.<br />

Esse gênero constitui-se uma tradição européia que foi amplamente pratica<strong>do</strong> <strong>do</strong> século XII<br />

ao XVI, per<strong>de</strong>n<strong>do</strong> o seu fascínio na Baixa Ida<strong>de</strong> Média. Porém, suas lendas, mistérios e<br />

aventuras permaneceram vivos no substrato da cultura oci<strong>de</strong>ntal. Traduzin<strong>do</strong> a cultura<br />

medieval e divulgan<strong>do</strong> altos valores vigentes, as <strong>novelas</strong> tentaram refletir a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

senhores e vassalos e os i<strong>de</strong>ais cavaleirescos que <strong>em</strong>polgavam o po<strong>de</strong>r da classe <strong>do</strong>minante.<br />

Apesar <strong>de</strong> recorrer, <strong>em</strong> sua t<strong>em</strong>ática, a el<strong>em</strong>entos <strong>de</strong> ord<strong>em</strong> sobrenatural, não <strong>de</strong>ixavam <strong>de</strong><br />

retratar a socieda<strong>de</strong> feudal e n<strong>em</strong> mesmo a <strong>de</strong>sfiguravam. Moisés (1977) <strong>de</strong>staca que o<br />

ambiente <strong>de</strong> maior circulação <strong>de</strong>ssas <strong>novelas</strong> era a fidalguia e a realeza. Deste mo<strong>do</strong>, irradiava<br />

i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> honra, corag<strong>em</strong> e <strong>do</strong>ação espiritual a todas as outras classes.<br />

A historiografia literária convencionou dividir a matéria cavaleiresca <strong>em</strong> <strong>ciclo</strong>s. São<br />

conheci<strong>do</strong>s três <strong>ciclo</strong>s, a saber: o <strong>ciclo</strong> bretão ou <strong>arturiano</strong>, que traz a figura <strong>do</strong> Rei Artur e<br />

seus cavaleiros como personagens centrais; o <strong>ciclo</strong> carolíngio, que se refere a Carlos Magno e<br />

os <strong>do</strong>ze pares da França e o <strong>ciclo</strong> clássico, que apresenta <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> t<strong>em</strong>as greco-latinos.<br />

Indiscutivelmente, o <strong>ciclo</strong> <strong>arturiano</strong> foi aquele que mais fama obteve e, segun<strong>do</strong> Moisés<br />

(1977), há países europeus <strong>em</strong> que apenas este <strong>ciclo</strong> <strong>de</strong>ixou marcas <strong>de</strong> sua passag<strong>em</strong>, como é<br />

o caso <strong>de</strong> Portugal.<br />

É preciso salientar também que o <strong>ciclo</strong> bretão foi pioneiro <strong>em</strong> apresentar os ex<strong>em</strong>plos<br />

específicos <strong>de</strong>ste gênero narrativo <strong>em</strong> prosa durante o século XII, através <strong>do</strong>s diversos relatos<br />

sobre o Rei Artur. Embora tais obras estivess<strong>em</strong> presentes <strong>em</strong> uma época <strong>de</strong> forte expressão<br />

religiosa cristã, pois a Igreja usava <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os esforços para se tornar universal, isto é,<br />

católica, o inconsciente popular oci<strong>de</strong>ntal resgatou parte da cultura celta e, portanto, pagã,<br />

através das histórias que compuseram a Matéria da Bretanha. A estranheza causada por estes<br />

fatos é <strong>de</strong>vida à pre<strong>do</strong>minância <strong>de</strong> recursos <strong>de</strong> caráter fantástico ou sobrenatural que<br />

estabeleciam certa “parceria” com os el<strong>em</strong>entos cristãos e/ou já cristianiza<strong>do</strong>s. A maior parte<br />

98


das <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>, <strong>em</strong> especial as <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> <strong>arturiano</strong>, apresentavam componentes<br />

mágicos e exóticos, seres <strong>de</strong> mun<strong>do</strong>s imaginários, porém <strong>em</strong> atuação na realida<strong>de</strong> material,<br />

auxilian<strong>do</strong>, por sua vez, na <strong>de</strong>scrição lírica <strong>de</strong> uma natureza mais i<strong>de</strong>alizada <strong>do</strong> que real.<br />

A influência registrou-se por toda a Alta Ida<strong>de</strong> Média européia. Moisés (1977) aponta para a<br />

existência <strong>de</strong> ex<strong>em</strong>plares <strong>de</strong> algumas <strong>novelas</strong> como Tristão e Isolda, Merlin e o Livro <strong>de</strong><br />

Galaaz na biblioteca <strong>de</strong> D. Duarte, <strong>em</strong> Portugal, comprovan<strong>do</strong> o gran<strong>de</strong> apreço <strong>de</strong> que eram<br />

alvos e as ligações que exerceram, sobr<strong>em</strong>aneira, com as populações palacianas. Absorven<strong>do</strong><br />

praticamente toda a caracterização das <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>, o <strong>ciclo</strong> <strong>arturiano</strong> abarcou, durante<br />

o t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> auge <strong>de</strong> sua circulação na Europa, as t<strong>em</strong>áticas mais recorrentes que foram,<br />

posteriormente, imitadas por outras <strong>novelas</strong> <strong>em</strong> outros <strong>ciclo</strong>s. Entre os t<strong>em</strong>as, o amor cortês, o<br />

senti<strong>do</strong> da honra e lealda<strong>de</strong> ao rei, b<strong>em</strong> como da fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> aos i<strong>de</strong>ais da Igreja e o sentimento<br />

guerreiro aguça<strong>do</strong> são os mais <strong>de</strong>staca<strong>do</strong>s. Aguiar e Silva (1973) confirma estas<br />

características ao expor como bases t<strong>em</strong>áticas fundamentais das <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> o amor e<br />

a aventura. Entretanto, alerta para o verda<strong>de</strong>iro senti<strong>do</strong> da palavra “aventura” nessas <strong>novelas</strong>,<br />

a qual significa uma regra narrativa e não, simplesmente, o contar <strong>de</strong> fatos extraordinários.<br />

Refere-se à aventura como um meio <strong>de</strong> prova para o herói que <strong>de</strong>verá alcançar uma posição<br />

mais elevada após a execução da mesma. Por esta razão, o autor salienta que as <strong>novelas</strong><br />

cavaleirescas conced<strong>em</strong> “uma importância capital às aventuras ou peripécias externas<br />

motivadas pelo amor ou com ele relacionadas” (p. 250).<br />

Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os fatores <strong>de</strong> mudanças existentes e atuantes nos séculos centrais da Ida<strong>de</strong><br />

Média, caracteriza<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s t<strong>em</strong>pos <strong>de</strong> dúvidas e incertezas, não é surpresa que até mesmo os<br />

t<strong>em</strong>as das <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> sofress<strong>em</strong> a pressão <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> medieval, no tocante às<br />

constantes invasões culturais e, portanto, <strong>de</strong> costumes. Desta forma, Moisés (1977) ressalta<br />

que o surgimento da D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal foi uma reação da Igreja contra o<br />

<strong>de</strong>svirtuamento da Cavalaria. Devi<strong>do</strong> aos t<strong>em</strong>pos difíceis vivi<strong>do</strong>s pela instituição <strong>do</strong><br />

feudalismo, os cavaleiros andantes acabaram por se tornar indivíduos <strong>de</strong>socupa<strong>do</strong>s, viven<strong>do</strong><br />

aleatoriamente e, <strong>em</strong> conseqüência, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong>-se levar por atitu<strong>de</strong>s agressivas, muitas vezes<br />

realizan<strong>do</strong> pilhagens, assaltan<strong>do</strong> al<strong>de</strong>ias e amedrontan<strong>do</strong> pessoas comuns. Por ter<strong>em</strong> si<strong>do</strong>,<br />

outrora, homens <strong>de</strong> estirpe elevada e, por isso, com valores a ser<strong>em</strong> resgata<strong>do</strong>s, a Igreja<br />

<strong>de</strong>cidiu trazê-los <strong>de</strong> volta à civilização. Em 1095, o Concílio <strong>de</strong> Clermont <strong>de</strong>liberou a<br />

organização da primeira Cruzada e a constituição <strong>de</strong> uma <strong>cavalaria</strong> cristã. Iniciou-se, pois,<br />

uma ampla pregação <strong>em</strong> prol <strong>do</strong>s i<strong>de</strong>ais altruístas e <strong>de</strong> respeito às instituições.<br />

99


Moisés (1977) elucida estes fatos transformacionais <strong>do</strong> caráter <strong>do</strong> cavaleiro andante feudal no<br />

<strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramento <strong>do</strong> caráter <strong>do</strong> cavaleiro cristão:<br />

100<br />

A D<strong>em</strong>anda, cristianizan<strong>do</strong> a lenda pagã <strong>do</strong> Santo Graal, colabora<br />

intimamente com o processo restaura<strong>do</strong>r da Cavalaria andante: caracteriza-se<br />

por ser uma novela mística, <strong>em</strong> que se contém uma especial noção <strong>de</strong> herói<br />

antifeudal, qualifica<strong>do</strong> por seu estoicismo inquebrantável e sua total ânsia da<br />

perfeição. Novela a serviço <strong>do</strong> movimento renova<strong>do</strong>r <strong>do</strong> espírito<br />

cavaleiresco, <strong>em</strong> que o herói também está a serviço, não mais <strong>do</strong> senhor<br />

feudal mas <strong>de</strong> sua salvação sobrenatural, uma brisa <strong>de</strong> teologismo varre-a <strong>de</strong><br />

ponta a ponta, o que não impe<strong>de</strong>, porém, a existência <strong>de</strong> circunstanciais<br />

jactos líricos e eróticos, n<strong>em</strong> algumas notas <strong>de</strong> fantástico ou mágico, <strong>em</strong> que<br />

o real e o imaginário se cruzam <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> surpreen<strong>de</strong>nte (p. 35).<br />

Ressalta a convivência entre o fantástico e o real que nesta obra produz uma ambigüida<strong>de</strong><br />

encontrada também <strong>em</strong> outras <strong>novelas</strong> <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> <strong>arturiano</strong>, <strong>em</strong> que gran<strong>de</strong>s tensões místicas<br />

contracenam com situações repletas <strong>de</strong> realismo vivo, preenchen<strong>do</strong> as aventuras <strong>do</strong>s<br />

cavaleiros com provas <strong>em</strong> que a fortaleza <strong>de</strong> seus ânimos é testada. Para Moisés (1977), a<br />

D<strong>em</strong>anda encerra uma elevada intenção e é possui<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> vigor narrativo, tornan<strong>do</strong>se,<br />

assim,<br />

o retrato <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> da Ida<strong>de</strong> Média mística, e o maior monumento literário<br />

que a época nos legou no campo da ficção, porquanto traduz um soberbo<br />

i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> vida expresso <strong>de</strong> forma artisticamente superior, a ponto <strong>de</strong> alcançar<br />

um grau <strong>de</strong> perfeição estética não muito freqüente na prosa <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po (p. 36).<br />

Concomitant<strong>em</strong>ente à época <strong>do</strong> Trova<strong>do</strong>rismo na Península Ibérica, as <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong><br />

afloraram para um público ávi<strong>do</strong> <strong>de</strong> conhecimento acerca <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> melhor <strong>do</strong> que o que<br />

se configurava naquele instante histórico. Isto se <strong>de</strong>ve à miscelânea cultural que eclodiu no<br />

Oci<strong>de</strong>nte Europeu ao longo <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> medieval, caracterizan<strong>do</strong> uma transição múltipla para<br />

os t<strong>em</strong>pos mo<strong>de</strong>rnos ainda porvin<strong>do</strong>uros. A Ida<strong>de</strong> Média não é, necessariamente, consi<strong>de</strong>rada<br />

uma era transicional; no entanto, ao estudar<strong>em</strong>-se os mecanismos <strong>de</strong> progressão a que esteve<br />

sujeita, é possível sugerir uma transição multifacetada que ocasionou a formação <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte<br />

Europeu. Neste contexto, as <strong>novelas</strong> cavaleirescas respon<strong>de</strong>ram aos anseios <strong>do</strong> hom<strong>em</strong><br />

medieval na medida <strong>em</strong> que proporcionaram aos leitores e ouvintes um mergulho num mun<strong>do</strong><br />

paralelo e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, uma reafirmação <strong>de</strong> padrões comportamentais que se<br />

configuravam mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> conduta e ética.


4.1.1 Amadis <strong>de</strong> Gaula<br />

Amadis <strong>de</strong> Gaula é uma das mais célebres obras cavaleirescas da Medievalida<strong>de</strong>. Alcançou<br />

gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque na Península Ibérica, on<strong>de</strong> permanece uma discussão apaixonada e<br />

controvertida acerca <strong>do</strong> idioma e <strong>do</strong> país <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> <strong>de</strong>ste personag<strong>em</strong> ilustre da <strong>cavalaria</strong>.<br />

Para muitos europeus, o Ciclo <strong>do</strong>s Amadises, que veio a ser forma<strong>do</strong> com a continuação <strong>de</strong><br />

histórias sobre os personagens que figuram no Amadis <strong>de</strong> Gaula, é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> o mais famoso<br />

entre as <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>. O mesmo não ocorre neste país, pois as obras pertencentes ao<br />

Ciclo Arturiano encerram mais notorieda<strong>de</strong> entre a população. Há muitos motivos, <strong>de</strong><br />

diferentes or<strong>de</strong>ns, para que tal aconteça e, neste caso, não há espaço suficiente para uma<br />

alongada discussão sobre este assunto. O que importa é que on<strong>de</strong> nasceu e nos países<br />

circundantes, o Amadis <strong>de</strong> Gaula representa uma nova força para a narrativa cavaleiresca,<br />

resgatan<strong>do</strong> valores um pouco já agasta<strong>do</strong>s e assumin<strong>do</strong> características inéditas para as <strong>novelas</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>, o que conce<strong>de</strong> à obra um aspecto diferencial <strong>de</strong> todas as <strong>novelas</strong> anteriores.<br />

Muitos estudiosos consi<strong>de</strong>ram Amadis s<strong>em</strong>elhante às <strong>novelas</strong> arturianas. De fato, encontramse<br />

inúmeras similarida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> forma e conteú<strong>do</strong> t<strong>em</strong>ático na obra, aproximan<strong>do</strong>-a <strong>do</strong> Ciclo<br />

Arturiano. Essas s<strong>em</strong>elhanças levam a crer e afirmar que pertença à Matéria da Bretanha.<br />

Entretanto, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> variadas leituras, entre opiniões diversas, há qu<strong>em</strong> assegure que Amadis<br />

não diz respeito a nenhum conjunto <strong>de</strong> lendas <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>. Po<strong>de</strong>-se, igualmente, consi<strong>de</strong>rar<br />

que exist<strong>em</strong> reais motivos para que se acredite na individualida<strong>de</strong> da obra: a personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Amadis, suas aventuras <strong>em</strong> castelos longínquos encanta<strong>do</strong>s, lutas com feras, feiticeiros, anões<br />

e gigantes, tu<strong>do</strong> apenas para ser digno <strong>do</strong> amor <strong>de</strong> Oriana. Inicialmente, as características são<br />

parecidas, no entanto, o que as difere <strong>em</strong> muito das aventuras <strong>de</strong> Lancelot, Tristão ou Galaaz,<br />

é a finalida<strong>de</strong> para qual as viv<strong>em</strong>.<br />

Os cavaleiros <strong>arturiano</strong>s, <strong>em</strong>bora se ass<strong>em</strong>elh<strong>em</strong> nos feitos e realizações maravilhosas,<br />

anseiam uma sublimação <strong>de</strong> ord<strong>em</strong> religiosa e espiritual: a busca <strong>de</strong> um el<strong>em</strong>ento sacro que<br />

encerra a sabe<strong>do</strong>ria divina ao hom<strong>em</strong> puro, que <strong>de</strong>seja a ascensão aos céus, o Graal. Como<br />

discuti<strong>do</strong> anteriormente, o cunho cristão católico é fort<strong>em</strong>ente divulga<strong>do</strong> pelos personagens da<br />

D<strong>em</strong>anda, representan<strong>do</strong>, como afirmou Moisés (1977), uma reação da Igreja <strong>em</strong> prol <strong>do</strong><br />

resgate das virtualida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> cavaleiro medieval andante que, por sofrer as vicissitu<strong>de</strong>s sociais<br />

e econômicas <strong>do</strong> momento histórico, encontrava-se <strong>de</strong>svia<strong>do</strong> <strong>do</strong> caminho honesto. Na novela<br />

<strong>em</strong> questão, <strong>em</strong>bora existam muitas passagens que d<strong>em</strong>onstram sua crença e fé <strong>em</strong> Deus,<br />

101


percebe-se a inexistência <strong>de</strong> uma razão religiosa que o move às suas aventuras. Somente o<br />

amor <strong>de</strong> Oriana o precipita para o mun<strong>do</strong> das justas e das batalhas com homens e feras.<br />

Depreen<strong>de</strong>-se, assim, que a exaltação <strong>do</strong> el<strong>em</strong>ento sentimental e erótico, a i<strong>de</strong>alização quase<br />

casta e fiel da conquista amorosa e da própria conduta <strong>do</strong> cavaleiro formam um conjunto <strong>de</strong><br />

características que prenunciam as formas estéticas <strong>do</strong> Renascimento.<br />

Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a época <strong>em</strong> que Amadis <strong>de</strong> Gaula foi edita<strong>do</strong> pela primeira vez, século XVI,<br />

mais precisamente <strong>em</strong> 1508, é aceitável a hipótese <strong>de</strong> que a obra apresente aspectos t<strong>em</strong>áticos<br />

diferencia<strong>do</strong>s das <strong>novelas</strong> cavaleirescas anteriores, que, por sua vez retratavam atitu<strong>de</strong>s<br />

próprias <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> <strong>do</strong>s séculos XII ao XV. A História é test<strong>em</strong>unha <strong>de</strong> todas as mudanças<br />

estruturais vividas pelo medievo; a Literatura representa essas mudanças através <strong>do</strong> registro<br />

fictício <strong>de</strong> personagens e fatos diegéticos que procuram espelhar a realida<strong>de</strong>, portanto, não é<br />

<strong>de</strong> to<strong>do</strong> incomum que o Amadis encontre-se <strong>em</strong> posição bastante distinta da D<strong>em</strong>anda.<br />

Quanto à polêmica existente <strong>em</strong> relação à gênese da novela, é importante que se mencione o<br />

panorama <strong>de</strong>ssas discussões. Segun<strong>do</strong> Moisés (1977), há três correntes <strong>de</strong> opinião que<br />

<strong>de</strong>fend<strong>em</strong> a língua e local <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> da obra: a primeira corrente ligava a obra à literatura<br />

francesa, mas atualmente está posta <strong>de</strong> la<strong>do</strong>; a segunda argumenta que a autoria se <strong>de</strong>ve a um<br />

português e a terceira corrente <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a tese <strong>de</strong> que a autoria é espanhola. Na história<br />

literária <strong>de</strong> Amadis, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com Gonçalves (1997), po<strong>de</strong>-se concluir que se trata <strong>de</strong> um<br />

texto <strong>do</strong> final <strong>do</strong> século XIII. Em versões como a <strong>de</strong> Vasco <strong>de</strong> Lobeira (1370) traduzida por<br />

Montalvo, observam-se correções e ampliações na publicação <strong>em</strong> 1508. Para este estudioso,<br />

ocorreram mais <strong>de</strong> <strong>do</strong>is séculos <strong>de</strong> circulação <strong>de</strong> um texto que nascera sob uma visão <strong>de</strong><br />

mun<strong>do</strong> completamente distinta daquela <strong>em</strong> que se <strong>de</strong>u a sua versão final.<br />

Depreend<strong>em</strong>-se <strong>de</strong>sse fato as diferenças marcantes referentes às t<strong>em</strong>áticas religiosa e amorosa<br />

que se encontram na obra. Gonçalves (1997) ainda a consi<strong>de</strong>ra <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> trova<strong>do</strong>rismo<br />

amoroso, além <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar a personag<strong>em</strong> central com heróis das <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>, como<br />

Galaaz e Percival. Nesta afirmação, há que se concordar com a assertiva <strong>do</strong> crítico, no que<br />

concerne à caracterização <strong>do</strong> cavaleiro medieval e seu papel heróico nas aventuras. O seu<br />

ponto <strong>de</strong> vista se justifica, ao explicar que essas s<strong>em</strong>elhanças entre as personagens (o espírito<br />

<strong>de</strong> aventura, os el<strong>em</strong>entos mitológicos e pagãos, como fadas, <strong>feiticeiras</strong>, feras, anões, gigantes<br />

e florestas encantadas) são r<strong>em</strong>iniscências das <strong>novelas</strong> bretãs. Ressalta ainda que tu<strong>do</strong> isso<br />

fazia parte <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> céltico lega<strong>do</strong> pelo processo <strong>de</strong> transculturação registra<strong>do</strong> na Galiza e<br />

102


irradia<strong>do</strong> para to<strong>do</strong> o universo galego-português. Concluin<strong>do</strong> suas idéias, Gonçalves aponta<br />

que talvez seja por esta razão que Portugal, ao contrário da Espanha, tenha se i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong><br />

mais com o sentimento das <strong>novelas</strong> <strong>do</strong> Rei Artur da Távola Re<strong>do</strong>nda.<br />

Amadis <strong>de</strong> Gaula é uma compilação e tradução realizadas por Costa Marques <strong>do</strong>s três livros<br />

existentes: o livro primeiro, o segun<strong>do</strong> e o terceiro. São capítulos seleciona<strong>do</strong>s, seguin<strong>do</strong> a<br />

cronologia <strong>de</strong> vida da personag<strong>em</strong> principal, reescritos <strong>em</strong> português atualiza<strong>do</strong>, edita<strong>do</strong> <strong>em</strong><br />

1942. Embora não seja, necessariamente, uma obra recente, não interferiu no<br />

<strong>de</strong>senvolvimento da pesquisa, porque a linguag<strong>em</strong> utilizada pelo compila<strong>do</strong>r encontra-se<br />

compatível com o português atual.<br />

O primeiro episódio apresenta a infância <strong>de</strong> Amadis: qu<strong>em</strong> foram seus pais e <strong>em</strong> que<br />

circunstâncias o nascimento <strong>do</strong> mais famoso cavaleiro aconteceu. O Rei Periom <strong>de</strong> Gaula,<br />

certa vez, hospeda<strong>do</strong> na casa <strong>do</strong> rei Garinter, da Pequena Bretanha, apaixona-se pela filha<br />

<strong>de</strong>ste, Elisena. Também apaixonada por Periom, passam a se encontrar às escondidas. Deste<br />

amor nasce Amadis. Neste t<strong>em</strong>po, ainda não casa<strong>do</strong>s, uma <strong>do</strong>nzela da princesa Elisena,<br />

Darioleta, <strong>de</strong>spacha o recém-nasci<strong>do</strong> numa arca b<strong>em</strong> calafetada ao mar, levan<strong>do</strong> também uma<br />

espada s<strong>em</strong> bainha, um anel e um pergaminho coberto <strong>de</strong> cera, on<strong>de</strong> havia escrito o nome da<br />

criança e a informação <strong>de</strong> que era filho <strong>de</strong> rei. Posteriormente, o amor <strong>do</strong>s pais <strong>de</strong> Amadis é<br />

legitima<strong>do</strong> pelo casamento.<br />

A arca fora avistada por um pequeno barco <strong>de</strong> um cavaleiro escocês, chama<strong>do</strong> Gandales, que<br />

recolheu Amadis e o <strong>de</strong>u à esposa para criar junto ao filho <strong>de</strong>les, Gandalim. Assim, Gandales<br />

<strong>de</strong>u-lhe o nome <strong>de</strong> Donzel <strong>do</strong> Mar, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à ocasião <strong>de</strong> seu aparecimento. Certo dia, Gandales<br />

encontra-se com uma <strong>do</strong>nzela, salvan<strong>do</strong>-a <strong>de</strong> um cavaleiro raivoso que a perseguia e ela<br />

realiza uma profecia sobre o Donzel <strong>do</strong> Mar, pois, na verda<strong>de</strong>, ela era Urganda, a<br />

Desconhecida. Profetiza que a criança recolhida <strong>do</strong> mar será a flor <strong>do</strong>s cavaleiros <strong>do</strong> seu<br />

t<strong>em</strong>po; executará obras incríveis e inacreditáveis; será bon<strong>do</strong>so para aqueles que merecer<strong>em</strong> e<br />

cruel para aqueles <strong>de</strong> má conduta. Também será o cavaleiro <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po mais leal ao amor.<br />

Amadis, nesta época, contava três anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> e já apresentava feições tão belas que a to<strong>do</strong>s<br />

maravilhavam.<br />

Aos cinco anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, o Rei Languines esteve <strong>de</strong> passag<strong>em</strong> <strong>em</strong> sua casa e a rainha<br />

encantou-se com o Donzel. Tamanha a admiração que causou nos visitantes que estes o<br />

103


levaram para sua corte, acompanha<strong>do</strong> <strong>de</strong> Gandalim, que o estimava como a um irmão. O Rei<br />

Languines soubera <strong>de</strong> Gandales as circunstâncias <strong>em</strong> que o Donzel fora encontra<strong>do</strong>. Passa<strong>do</strong><br />

um t<strong>em</strong>po, o rei da Dinamarca, Lisuarte, passa pela Escócia a caminho da Grã-Bretanha.<br />

Trazia consigo sua filha Oriana, <strong>de</strong> beleza incomparável. Estan<strong>do</strong> cansada da viag<strong>em</strong>, pediu a<br />

seu pai para ficar na corte <strong>de</strong> Languines. O Donzel <strong>do</strong> Mar é posto a seu serviço e as duas<br />

crianças, ao se conhecer<strong>em</strong>, se apaixonam.<br />

Quan<strong>do</strong> alcança a ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> quinze anos o Donzel, ainda ignorante <strong>do</strong> segre<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua orig<strong>em</strong>,<br />

<strong>de</strong>seja ar<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente tornar-se cavaleiro para po<strong>de</strong>r ser merece<strong>do</strong>r <strong>do</strong> amor <strong>de</strong> Oriana. Em<br />

<strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> uma coincidência, ele é arma<strong>do</strong> cavaleiro pelo Rei Periom, que estava <strong>de</strong><br />

passag<strong>em</strong> pela corte <strong>de</strong> Languines solicitan<strong>do</strong> ajuda para combater o rei da Irlanda.<br />

Aten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ao pedi<strong>do</strong> da filha e <strong>de</strong> Oriana, Periom conce<strong>de</strong> a <strong>cavalaria</strong> ao Donzel, ambos s<strong>em</strong><br />

ter<strong>em</strong> conhecimento <strong>do</strong> verda<strong>de</strong>iro parentesco entre eles. A partir daí, Amadis parte com<br />

Gandalim, agora seu escu<strong>de</strong>iro, para viver aventuras.<br />

O restante da obra se divi<strong>de</strong> <strong>em</strong> episódios que narram diversas peripécias <strong>de</strong> Amadis que<br />

confirmam a superiorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> cavaleiro na força, na beleza, na honra, na lealda<strong>de</strong>, na fé e,<br />

sobretu<strong>do</strong>, na <strong>de</strong>voção amorosa. Entre estes episódios, o Donzel v<strong>em</strong> a conhecer a sua<br />

verda<strong>de</strong>ira linhag<strong>em</strong> nobre e também luta por vencer to<strong>do</strong>s os <strong>em</strong>pecilhos relativos à união<br />

com Oriana. A glória final está diretamente associada à legitimação <strong>do</strong>s sentimentos vivi<strong>do</strong>s<br />

por Amadis e Oriana. Mesmo nas lutas mais cruentas, o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> alcançar a perfeita união com<br />

sua dama é o que move Amadis e o que lhe sustenta nos momentos <strong>em</strong> que periga fraquejar.<br />

Tanto isso é evi<strong>de</strong>nte na obra que, no momento <strong>em</strong> que ele sente per<strong>de</strong>r sua amada, <strong>de</strong>siste da<br />

<strong>cavalaria</strong> e encerra-se a viver com um ermitão, para penitenciar-se e abreviar a própria vida,<br />

que per<strong>de</strong>ra o senti<strong>do</strong>. Ao receber seu amor <strong>de</strong> volta, o cavaleiro reassume a posição<br />

aban<strong>do</strong>nada e volta a aventurar-se por Oriana.<br />

4.1.2 A D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal<br />

Consi<strong>de</strong>rada a mais famosa <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> <strong>arturiano</strong>, venceu o t<strong>em</strong>po e a distância conquistan<strong>do</strong><br />

leitores <strong>de</strong> todas as partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua criação. De extr<strong>em</strong>a importância para o<br />

estu<strong>do</strong> da literatura cavaleiresca medieval, a novela é apontada como o livro inaugural da<br />

Matéria da Bretanha. Não se <strong>de</strong>terá esta pesquisa nas possíveis origens e autorias <strong>de</strong>sta<br />

novela, mesmo porque se correria o risco <strong>de</strong> veicular informação errônea, da<strong>do</strong>s os poucos<br />

104


egistros históricos sobre a sua autoria. É verda<strong>de</strong>, entretanto, que uma autoria legítima seja<br />

impossível <strong>de</strong> se estabelecer no momento; busca-se conhecer, assim, a obra no que possui <strong>de</strong><br />

mais rica: o seu conteú<strong>do</strong>. Deste mo<strong>do</strong>, a escolha recaiu sobre a tradução brasileira <strong>de</strong> Heitor<br />

Megale, autor <strong>de</strong> outros livros sobre o <strong>ciclo</strong> <strong>arturiano</strong>, proporcionan<strong>do</strong> ao leitor da<strong>do</strong>s<br />

importantes para o esclarecimento <strong>do</strong> texto e <strong>de</strong> suas várias edições e adições.<br />

Segun<strong>do</strong> Megale (2003) as histórias sobre o Rei Artur associam-se diretamente a outros<br />

personagens bastante conheci<strong>do</strong>s e divulga<strong>do</strong>s pelas <strong>novelas</strong> medievais: Merlin e Tristão.<br />

Embora ambos tenham suas próprias histórias, muito ce<strong>do</strong> passaram a fazer parte <strong>do</strong>s contos<br />

<strong>arturiano</strong>s, integran<strong>do</strong> seus textos. Merlin já participava <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os romances <strong>em</strong> verso<br />

<strong>de</strong> Robert <strong>de</strong> Boron, os quais vieram a influenciar os posteriores <strong>ciclo</strong>s prosifica<strong>do</strong>s. Tristão<br />

veio participar <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> um pouco mais tar<strong>de</strong>, à época da segunda prosificação.<br />

A primeira prosificação ocorreu por volta <strong>de</strong> 1220 a partir <strong>do</strong>s romances canta<strong>do</strong>s <strong>em</strong> versos<br />

por Robert <strong>de</strong> Boron. De acor<strong>do</strong> com Moisés (1977), a prosificação <strong>de</strong>stes versos se <strong>de</strong>u por<br />

influxo religioso. O fato <strong>de</strong> a Igreja <strong>de</strong>sejar o resgate moral <strong>do</strong>s cavaleiros fez com que se<br />

operass<strong>em</strong> transformações profundas na lenda, cujas origens repousam, provavelmente, sobre<br />

os longínquos celtas e traduz<strong>em</strong> nitidamente costumes pagãos. Cristianizan<strong>do</strong> a lenda, seus<br />

principais símbolos, como a espada, o vaso e o escu<strong>do</strong>, passaram a evocar valores místicocristãos.<br />

Em vez <strong>de</strong> se encontrar o relato <strong>de</strong> aventuras repletas <strong>de</strong> realismo profano, o que<br />

existe na primeira prosificação é a marca da ascese, “traduzida no <strong>de</strong>sprezo <strong>do</strong> corpo e no<br />

culto da vida espiritual (...)” (p. 34).<br />

Os títulos que compõ<strong>em</strong> esta primeira prosificação, segun<strong>do</strong> Megale (2003), são: Estória <strong>do</strong><br />

Santo Graal; Merlim; O Livro <strong>de</strong> Lancelote <strong>do</strong> Lago; As Aventuras ou a D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo<br />

Graal; A Morte <strong>do</strong> Rei Artur. É importante alertar que A D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal, nesta<br />

prosificação, não se constitui a matéria da qual se extraiu os episódios traduzi<strong>do</strong>s por Megale<br />

e escolhi<strong>do</strong>s para corpus <strong>de</strong>sta pesquisa. A obra primeiramente prosificada apresenta um<br />

caráter <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente alegórico e didático. De fun<strong>do</strong> extr<strong>em</strong>amente religioso, e havia uma<br />

razão lógica para isso, as aventuras vão apartan<strong>do</strong> os cavaleiros <strong>em</strong> grupos que se <strong>de</strong>nominam<br />

mais puros ou menos puros, isto é, aqueles que se aproximam mais da perfeição e os d<strong>em</strong>ais<br />

que não chegam tão perto.<br />

105


A segunda prosificação, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o tradutor brasileiro, ficou com apenas três títulos: O<br />

Livro <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Arimatéia; Merlim com suas Continuações e A D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal. Os<br />

episódios seleciona<strong>do</strong>s para este trabalho pertenc<strong>em</strong> à segunda prosificação, traduzi<strong>do</strong>s por<br />

Megale. Essa prosificação, escrita <strong>em</strong> português, está conservada na Biblioteca Nacional <strong>de</strong><br />

Viena, <strong>em</strong> códice pergamináceo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XIII, haven<strong>do</strong> também uma cópia <strong>do</strong> século<br />

XV.<br />

A D<strong>em</strong>anda se inicia na véspera <strong>de</strong> Pentecostes, na corte <strong>do</strong> Rei Artur, <strong>em</strong> Camelot, capital <strong>do</strong><br />

reino <strong>de</strong> Logres, on<strong>de</strong> se espera a chegada <strong>do</strong> bom cavaleiro para a primeira revelação <strong>do</strong><br />

Graal. Uma <strong>do</strong>nzela chega à corte à procura <strong>de</strong> Lancelot <strong>do</strong> Lago. Ao se encontrar<strong>em</strong>, segu<strong>em</strong><br />

para uma igreja on<strong>de</strong> Lancelot arma Galaaz cavaleiro e volta a Camelot com Boorz. Em<br />

seguida, um escu<strong>de</strong>iro anuncia o aparecimento <strong>de</strong> uma fantástica espada enterrada numa pedra<br />

<strong>de</strong> mármore sobre a água. Lancelot e os outros tentam retirá-la s<strong>em</strong> sucesso. Neste ínterim,<br />

Galaaz chega s<strong>em</strong> ser anuncia<strong>do</strong> e ocupa a ca<strong>de</strong>ira perigosa que estava reservada para o<br />

“escolhi<strong>do</strong>”, o bom cavaleiro. Entre as cento e cinqüenta ca<strong>de</strong>iras da Távola Re<strong>do</strong>nda, apenas<br />

uma ainda não estava ocupada, pois era reservada ao cavaleiro Tristão.<br />

Galaaz vai ao rio e r<strong>em</strong>ove a espada da pedra. Logo <strong>de</strong>pois, vão para um torneio. Aparece<br />

Tristão para ocupar o seu lugar na Távola, o último assento vazio. Durante a refeição, algo<br />

maravilhoso acontece: os cavaleiros são agracia<strong>do</strong>s com a visão <strong>do</strong> Graal, que aparece <strong>em</strong><br />

meio a uma atmosfera <strong>de</strong> êxtase e alvoroço, irradian<strong>do</strong> uma luminosida<strong>de</strong> sobrenatural que os<br />

transfigura e os alimenta, apesar <strong>de</strong> durar somente um breve instante. Assim, Galvão sugere<br />

que partam <strong>em</strong> busca <strong>do</strong> Cálice Sagra<strong>do</strong>. No dia seguinte, após a missa, os cavaleiros segu<strong>em</strong><br />

caminhos diferentes.<br />

Iniciam-se os fatos aventureiros que envolv<strong>em</strong> os cavaleiros enquanto buscam o símbolo<br />

maior da sabe<strong>do</strong>ria cristã. O primeiro episódio narra a chegada <strong>de</strong> Galaaz e Boorz ao Castelo<br />

<strong>de</strong> Brut, on<strong>de</strong> a filha <strong>do</strong> rei enamora-se loucamente por Galaaz. Ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> muito b<strong>em</strong><br />

recebi<strong>do</strong>s pelo rei, os cavaleiros passam a noite no castelo. Apaixonada por Galaaz, a filha <strong>do</strong><br />

rei trava uma luta íntima consigo mesma, mas não consegue aplacar os <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> seu<br />

coração. Durante a noite, <strong>de</strong>ita-se ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> Galaaz que, ao acordar, espanta-se com a loucura<br />

da <strong>do</strong>nzela, revelan<strong>do</strong>-lhe sua castida<strong>de</strong> e fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> à causa religiosa. Tomada pelo<br />

<strong>de</strong>sespero <strong>de</strong> que não teria o amor <strong>de</strong>seja<strong>do</strong> e pela insensatez <strong>de</strong> seu ato, <strong>de</strong>sfere a espada<br />

contra o peito. Os cavaleiros são acusa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> assassínio e traição ao anfitrião que os recebera.<br />

106


Somente após o duelo individual entre o rei Brut e Boorz, que o vence, põe fim à confusão.<br />

Brut acredita finalmente nos cavaleiros e aceita o fato indigno <strong>de</strong> sua filha. O episódio<br />

termina com a partida <strong>de</strong> Galaaz e Boorz.<br />

Após <strong>de</strong>ixar<strong>em</strong> o castelo <strong>do</strong> rei Brut, os <strong>do</strong>is cavaleiros encontram o cavaleiro da besta,<br />

Palama<strong>de</strong>s, que lhes pergunta se haviam visto a besta ladra<strong>do</strong>ra. Diante da resposta afirmativa<br />

<strong>de</strong> Boorz, o cavaleiro lhes diz que a besta é sua caça, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong>-os para trás. Em seguida, eles<br />

encontram Esclabor (o <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>), um cavaleiro i<strong>do</strong>so que lhes oferece albergue pela<br />

noite. Conta-lhes como o rei Artur lhe <strong>de</strong>ra uma mulher pagã, a seu pedi<strong>do</strong> e como teve com<br />

ela <strong>do</strong>ze filhos. Havia perdi<strong>do</strong> onze <strong>de</strong> seus filhos numa perseguição à besta ladra<strong>do</strong>ra. O filho<br />

r<strong>em</strong>anescente jurou que nunca mais <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> procurar a besta e matá-la ou ser morto por<br />

ela. Galaaz e Boorz reconheceram, pela narrativa <strong>de</strong> Esclabor, que se tratava <strong>de</strong> Palama<strong>de</strong>s,<br />

recent<strong>em</strong>ente encontra<strong>do</strong>. No dia seguinte, segu<strong>em</strong> os seus caminhos e <strong>de</strong>sped<strong>em</strong>-se <strong>de</strong> seu<br />

anfitrião.<br />

Esses <strong>do</strong>is episódios, sucintamente apresenta<strong>do</strong>s, ex<strong>em</strong>plificam as aventuras <strong>do</strong>s cavaleiros da<br />

Távola Re<strong>do</strong>nda. Dos cento e cinqüenta cavaleiros, os mais <strong>de</strong>staca<strong>do</strong>s são Galaaz, Boorz,<br />

Persival, Lancelot, Galvão, Leonel, Mor<strong>de</strong>rete, Erec, mas poucos permanec<strong>em</strong> vivos. A<br />

narração <strong>do</strong>s episódios seguintes se entrelaça num <strong>em</strong>aranha<strong>do</strong> <strong>de</strong> aventuras. Por<br />

merecimento ou por exaustão, os cavaleiros se reduz<strong>em</strong> a um pequeno grupo. Galaaz, <strong>em</strong><br />

Sarras, d<strong>em</strong>onstran<strong>do</strong> estar pleno <strong>em</strong> sua ativida<strong>de</strong> religiosa, recebe a graça <strong>de</strong> presenciar o<br />

Santo Cálice, símbolo da Eucaristia e consagração <strong>de</strong> toda uma vida <strong>de</strong>votada ao louvor e<br />

culto das atitu<strong>de</strong>s morais elevadas, das virtu<strong>de</strong>s físicas e espirituais. A narrativa relata, ainda,<br />

os últimos feitos <strong>de</strong> Lancelot, a morte <strong>do</strong> Rei Artur e a vingança <strong>do</strong> Rei Mars.<br />

4.2 CONHECENDO OS REVERSOS<br />

A investigação sobre as personagens mulher e bruxa proporciona ao pesquisa<strong>do</strong>r inúmeras<br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> interpretações. A palavra “reverso”, <strong>em</strong>bora não apresente nos dicionários<br />

conceitos diferencia<strong>do</strong>s, po<strong>de</strong> suscitar compreensões variadas <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a perspectiva<br />

teórica e histórica escolhidas. Apresentada como substantivo ou adjetivo po<strong>de</strong> levar o leitor a<br />

interpretações errôneas ou a <strong>de</strong>svios <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> que se lhe quer atribuir.<br />

107


4.2.1 Conceito <strong>de</strong> reverso<br />

Três conceitos <strong>de</strong> dicionários brasileiros foram escolhi<strong>do</strong>s para iniciar a discussão <strong>do</strong><br />

significa<strong>do</strong> da palavra. Segun<strong>do</strong> Bueno (1992), o termo “reverso” aparece como adjetivo<br />

<strong>de</strong>notan<strong>do</strong> “má ín<strong>do</strong>le”. Já como substantivo, significa “la<strong>do</strong> oposto ao principal; parte<br />

posterior; o que é contrário” (p. 995). O primeiro senti<strong>do</strong> refere-se à sinonímia da palavra<br />

“revés” que, por sua vez, apresenta o seguinte verbete: “Reverso; pancada com as costas da<br />

mão; golpe oblíquo; aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>sfavorável; fatalida<strong>de</strong>; <strong>de</strong>sgraça; contrário; avesso; <strong>de</strong>rrota”<br />

(p. 995). Há uma associação entre os termos; o adjetivo posto como primeiro significa<strong>do</strong> pelo<br />

autor, liga-se diretamente com o primeiro senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> substantivo “revés”, como que <strong>de</strong>riva<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong>ste. Ambos revelam senti<strong>do</strong>s anexos a inci<strong>de</strong>ntes não <strong>de</strong>seja<strong>do</strong>s, a acontecimentos<br />

inespera<strong>do</strong>s e tristes, a fatos <strong>de</strong>sventura<strong>do</strong>s.<br />

Ferreira (1999) apresenta o verbete <strong>de</strong> forma diferente. Apesar <strong>de</strong> colocá-lo, também, como<br />

adjetivo, não lhe atribui o primeiro senti<strong>do</strong> como “má ín<strong>do</strong>le” e sim como “revira<strong>do</strong>”. O<br />

significa<strong>do</strong> relaciona<strong>do</strong> à má ín<strong>do</strong>le aparece como senti<strong>do</strong> figura<strong>do</strong>. Em seguida, apresenta o<br />

substantivo masculino da seguinte maneira: “Face ou la<strong>do</strong> contrário ao que se t<strong>em</strong> como<br />

principal; avesso, revesso; a parte posterior ou interior <strong>de</strong> certas coisas, por oposição àquela<br />

que está voltada para frente ou para fora”. E como senti<strong>do</strong> conotativo: “aquilo que é contrário;<br />

o outro la<strong>do</strong>; o oposto”. É clara a distinção <strong>de</strong> conceitos entre estes <strong>do</strong>is autores. Quanto ao<br />

termo “revés”, que está mostra<strong>do</strong> como comparativo com “reverso”, por apresentar<br />

s<strong>em</strong>elhanças <strong>de</strong>rivativas nos verbetes construí<strong>do</strong>s por Bueno, o verbete elabora<strong>do</strong> por Ferreira<br />

apresenta-se como: “S.m. 1.Reverso (6 a 8). 2. Golpe aplica<strong>do</strong> com as costas da mão. 3.<br />

Pancada oblíqua. 4. Aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>sfavorável; vicissitu<strong>de</strong>. 5. Fig. Desgraça, infortúnio,<br />

insucesso.” As indicações entre parênteses refer<strong>em</strong>-se aos significa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> “reverso” como<br />

substantivo. Parec<strong>em</strong> os <strong>do</strong>is autores concordar que o termo “revés” t<strong>em</strong> a mesma orig<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />

“reverso”. Entretanto, o que Bueno aponta como primeiro senti<strong>do</strong>, <strong>em</strong> Ferreira está como<br />

senti<strong>do</strong> figura<strong>do</strong>. Cabe a este trabalho, portanto, interpretar os significa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a<br />

contextualização da pesquisa.<br />

Um terceiro dicionário difere <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is primeiros consulta<strong>do</strong>s. De autoria <strong>de</strong> Ruth Rocha, o<br />

dicionário aponta o significa<strong>do</strong> <strong>de</strong> “reverso” como “adj 1 Que se opõe ao anverso ou à face<br />

principal; situa<strong>do</strong> na face posterior. 2 Que voltou para o ponto <strong>de</strong> partida. sm 3 O la<strong>do</strong> oposto<br />

ao principal; o contrário; o oposto” (1996, p. 540). Nota-se que o verbete não apresenta o<br />

108


senti<strong>do</strong> referi<strong>do</strong> à “má ín<strong>do</strong>le”, n<strong>em</strong> mesmo como figura<strong>do</strong>. Comparan<strong>do</strong>, novamente, com o<br />

termo “revés”, o dicionário indica: “sm 1 Reverso. 2 Golpe da<strong>do</strong> obliquamente; pancada com<br />

as costas da mão. 3 Aci<strong>de</strong>nte que muda para má uma situação boa; vicissitu<strong>de</strong>; <strong>de</strong>sgraça;<br />

infortúnio” (p. 540). Assim, po<strong>de</strong>-se observar que o termo foi consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> sinônimo <strong>de</strong><br />

“reverso” no que se refere ao primeiro significa<strong>do</strong>. Apenas Ferreira (1999) apresenta a<br />

orig<strong>em</strong> das palavras, “reverso”, <strong>do</strong> Latim reversu e “revés” origina-se da mesma palavra<br />

latina, porém com apócope. O fato <strong>de</strong> ambas ter<strong>em</strong> a mesma orig<strong>em</strong> as aproxima <strong>em</strong> senti<strong>do</strong> e<br />

forma: revés como substantivo e reverso, adjetivo.<br />

Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> os senti<strong>do</strong>s “má ín<strong>do</strong>le; infortúnio” e “contrário, oposto” aponta<strong>do</strong>s pelos três<br />

dicionários e aplican<strong>do</strong>-os ao contexto <strong>do</strong> corpus escolhi<strong>do</strong> justifica-se a primeira proposição<br />

da pesquisa, ao avaliar a figura da bruxa ou feiticeira como a outra face da mulher medieval,<br />

historicamente estudada. Toman<strong>do</strong> como ponto <strong>de</strong> partida os conceitos cristãos <strong>de</strong> b<strong>em</strong> e mal,<br />

o b<strong>em</strong> se refere à mulher medieval e o mal à bruxa e à feiticeira. No entanto, po<strong>de</strong>-se observar<br />

que a Igreja distorce o papel f<strong>em</strong>inino no meio social, indiferent<strong>em</strong>ente <strong>do</strong> seu la<strong>do</strong><br />

d<strong>em</strong>oníaco. As relações <strong>de</strong> gênero assomam-se ao âmbito <strong>do</strong> divino, no tocante à castida<strong>de</strong><br />

praticada tanto para a mulher casada, digna e à virginda<strong>de</strong> <strong>de</strong>fendida para a mulher solteira,<br />

honrada que queria se manter pura e digna <strong>do</strong> Reino <strong>do</strong>s Céus.<br />

Tais conceitos foram amplamente divulga<strong>do</strong>s neste perío<strong>do</strong> histórico. A aplicação <strong>do</strong> termo<br />

“reverso”, como um substantivo, po<strong>de</strong> se referir tanto à mulher comum como à bruxa ou<br />

feiticeira, não significan<strong>do</strong> uma duplicida<strong>de</strong> pessoal, mas uma <strong>de</strong>sgraça, um infortúnio, um<br />

insucesso. A mulher era consi<strong>de</strong>rada um reverso para o hom<strong>em</strong> medieval, <strong>de</strong>svirtuan<strong>do</strong>-o e a<br />

bruxa ou feiticeira encarnam, nestas acepções <strong>do</strong> termo, o mal propriamente dito e realiza<strong>do</strong>.<br />

A mulher, indiscutivelmente, na Ida<strong>de</strong> Média, é a porta<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> mal, inerente ao gênero<br />

f<strong>em</strong>inino. Tanto a bruxa como a feiticeira, como forças cósmicas, também pertenc<strong>em</strong> ao<br />

universo f<strong>em</strong>inino. O hom<strong>em</strong>, neste contexto, nada mais é <strong>do</strong> que uma vítima <strong>de</strong>ste ambiente<br />

sacrílego e d<strong>em</strong>oníaco, residi<strong>do</strong> e presidi<strong>do</strong> por mulheres.<br />

O reverso, portanto, apresenta-se <strong>em</strong> ambos senti<strong>do</strong>s para <strong>de</strong>screver a mulher medieval e suas<br />

relações com a esfera sobrenatural e malévola atribuída às <strong>bruxas</strong> ou <strong>feiticeiras</strong>. Bruxa era<br />

sinônimo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgraça, não somente para o sexo masculino, como também às comunida<strong>de</strong>s <strong>em</strong><br />

geral. Trouxe <strong>em</strong> sua história as referências apenas daqueles que, supostamente, sofreram<br />

algum tipo <strong>de</strong> sortilégio. Feiticeira, por sua vez, significava uma mulher real, que fora<br />

109


instruída nas artes mágicas, e utilizava seus conhecimentos para alcançar o sobrenatural. Em<br />

<strong>de</strong>terminada época <strong>do</strong> medievo, estas duas concepções se confundiram e, graças às ações da<br />

Igreja e <strong>do</strong>s juízes seculares, alcançaram uma conotação una e <strong>de</strong>finitiva que con<strong>de</strong>nava as<br />

mulheres: bruxaria ou feitiçaria era associada ao d<strong>em</strong>ônio, representan<strong>do</strong> o Mal materializa<strong>do</strong><br />

na Terra, da mesma forma como o B<strong>em</strong> já se materializara nas formas <strong>do</strong>s Pais da Igreja.<br />

4.2.2 Mulher e bruxa: reversos?<br />

Os senti<strong>do</strong>s concorrentes para uma resposta a esta questão são varia<strong>do</strong>s, diversos e até mesmo<br />

dispersos. Ambos os termos são substantivos f<strong>em</strong>ininos e atribuí<strong>do</strong>s, adjetivalmente, ao sexo<br />

f<strong>em</strong>inino. Entretanto, não há como ignorar o peso substancial <strong>do</strong>s seus significa<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong><br />

aplica<strong>do</strong>s a uma situação real <strong>de</strong> discurso. Afinal, os termos são substantivos concretos ou<br />

abstratos? Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> o senso comum, diríamos que “mulher” é concreto e “bruxa” é<br />

abstrato. Mas será tão simples assim? O caso é que não há dúvida quanto à palavra “mulher”,<br />

<strong>de</strong>signativa <strong>do</strong> el<strong>em</strong>ento humano fêmea, mesmo abarcan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s referentes e<br />

referi<strong>do</strong>s a esta figura na socieda<strong>de</strong>. O probl<strong>em</strong>a se instaura na <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> bruxa. Uma vez<br />

nascida <strong>do</strong> inconsciente popular humano, difícil é estabelecer o ponto <strong>em</strong> que ela alcança a<br />

materialida<strong>de</strong> e o grau <strong>em</strong> que chega à imaginação.<br />

Os obstáculos que se impõ<strong>em</strong> à análise <strong>do</strong> termo “bruxa” <strong>em</strong> contraposição ao termo<br />

“mulher” <strong>de</strong>v<strong>em</strong>-se ao fato da estreita ligação entre estes <strong>do</strong>is seres, estabelecida <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

Antigüida<strong>de</strong> e ten<strong>do</strong> sofri<strong>do</strong> profundas transformações na Ida<strong>de</strong> Média. É sabi<strong>do</strong> que o<br />

perío<strong>do</strong> medieval esteve intimamente associa<strong>do</strong> às forças naturais <strong>do</strong>s seres viventes.<br />

Entretanto, o hom<strong>em</strong> ainda não possuía o conhecimento a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> para <strong>de</strong>svendar os segre<strong>do</strong>s<br />

da natureza para utilizá-los <strong>em</strong> seu próprio b<strong>em</strong>. Mulheres <strong>em</strong> maior número recebiam<br />

cultural e geneticamente, heranças <strong>de</strong> sabe<strong>do</strong>rias antigas <strong>em</strong> que a manipulação <strong>de</strong> certas<br />

substâncias po<strong>de</strong>ria causar varia<strong>do</strong>s efeitos sobre pessoas e animais, nos mais diversos casos<br />

<strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>. Durante a Ida<strong>de</strong> Média, esses conhecimentos se apuraram, <strong>de</strong>senvolveram e<br />

entraram <strong>em</strong> contato com culturas diferentes, dadas as inúmeras invasões na Europa. Muitos<br />

foram os fatores que favoreceram a evolução ou a eliminação <strong>de</strong> práticas medicinais<br />

realizadas, principalmente, por mulheres. No entanto, essas práticas não foram exclusivas <strong>do</strong><br />

sexo f<strong>em</strong>inino; também os homens se <strong>de</strong>dicaram aos conhecimentos ocultos.<br />

110


Com o <strong>de</strong>correr <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po alia<strong>do</strong> às mudanças sócio-culturais, tais conhecimentos ficaram<br />

relaciona<strong>do</strong>s à magia, pois encerravam sabe<strong>do</strong>ria não disponível a to<strong>do</strong>s, indistintamente.<br />

Fácil é <strong>de</strong>duzir que a ignorância ou mesmo a falta <strong>de</strong> meios <strong>de</strong> aprendizag<strong>em</strong> sist<strong>em</strong>atizada<br />

levou uma população inteira a atribuir curas ao <strong>do</strong>mínio sobrenatural. Deste mo<strong>do</strong>, também<br />

fácil se torna enten<strong>de</strong>r por que o universo f<strong>em</strong>inino foi mais povoa<strong>do</strong> por fantasmas <strong>do</strong> que o<br />

masculino. Não se po<strong>de</strong> afirmar que tais concepções sejam <strong>de</strong>finitivamente medievais. A<br />

misoginia que se instalou neste perío<strong>do</strong> justifica-se pelo fato <strong>de</strong> a mulher receber e executar,<br />

com maestria, os conhecimentos milenares <strong>do</strong>s ingredientes “mágicos”, mesmo não ten<strong>do</strong><br />

si<strong>do</strong> exclusivida<strong>de</strong> da mulher medieval. Esta apenas <strong>de</strong>u-se ao <strong>de</strong>senvolvimento das práticas<br />

num momento histórico repleto <strong>de</strong> mudanças, guerras, mortes, pestes, <strong>do</strong>enças e, sobretu<strong>do</strong>,<br />

indistinção espiritual.<br />

Há muito estabelecidas, as relações entre a mulher comum e a bruxaria, são indicativas da<br />

complexa personalida<strong>de</strong> f<strong>em</strong>inina. Durante milênios ela esteve envolvida com as forças<br />

naturais, o que equivale dizer que mesmo quan<strong>do</strong> se eximiam <strong>de</strong> suas próprias capacida<strong>de</strong>s,<br />

ainda assim po<strong>de</strong>riam recebê-las por atribuição <strong>de</strong> outr<strong>em</strong>. A mulher abraça a criação; está<br />

<strong>de</strong>notada <strong>em</strong> todas as religiões antigas no papel principal <strong>de</strong> criação e her<strong>do</strong>u a parte física<br />

<strong>de</strong>sta criação. O <strong>de</strong>senvolvimento e o aparecimento das religiões, <strong>em</strong> geral, estiveram liga<strong>do</strong>s<br />

a tu<strong>do</strong> quanto se configurava mistério para o hom<strong>em</strong>. E, neste caso, a concepção, o ato <strong>do</strong><br />

nascimento, a possibilida<strong>de</strong> gera<strong>do</strong>ra da mulher foram os primeiros mistérios da vida humana.<br />

Os povos <strong>do</strong> medievo trouxeram impressos no subconsciente as marcas <strong>de</strong>ixadas pelos<br />

mistérios divinos quanto ao <strong>de</strong>stino <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> post-mort<strong>em</strong>. E, <strong>de</strong>sta forma, o hom<strong>em</strong><br />

medieval construiu sua imag<strong>em</strong> ao la<strong>do</strong> da mulher e, posteriormente, acima <strong>de</strong>la.<br />

Não é tarefa muito simples <strong>de</strong>linear o <strong>de</strong>senvolvimento humano no que concerne às<br />

faculda<strong>de</strong>s mentais associadas ao <strong>de</strong>sprendimento espiritual. Ten<strong>do</strong> <strong>em</strong> vista a história das<br />

religiões la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong> com as mudanças ocorridas por toda a Ida<strong>de</strong> Média, po<strong>de</strong>-se notar a<br />

posição inferiorizada da mulher. Não discutin<strong>do</strong> conceitos <strong>de</strong> gênero, não há como <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />

assinalar que as discriminações ao sexo f<strong>em</strong>inino na cultura oci<strong>de</strong>ntal é uma verda<strong>de</strong><br />

consumada e atestada pela História, tanto quanto a construção da imag<strong>em</strong> da bruxa e sua<br />

carga s<strong>em</strong>ântica negativa que se lhe atribui, apontam, diretamente à mulher. Assim, tomar o<br />

termo “reverso” apenas como “o la<strong>do</strong> oposto” <strong>de</strong> algo seria simplificar ao extr<strong>em</strong>o o papel da<br />

mulher na socieda<strong>de</strong> medieval, b<strong>em</strong> como o da bruxa no imaginário da Ida<strong>de</strong> Média.<br />

111


Consi<strong>de</strong>rar a bruxa como o contrário da mulher comum medieval po<strong>de</strong> ocultar (ou omitir)<br />

to<strong>do</strong>s os fatores indicativos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ais e conceitos existentes entre estes <strong>do</strong>is termos, como o<br />

B<strong>em</strong> e o Mal, por ex<strong>em</strong>plo. Ou apresentar a visão social a partir da distinção espiritual<br />

calcada no reconhecimento das forças que mov<strong>em</strong> o mun<strong>do</strong>: Deus e o Diabo. O hom<strong>em</strong>, por<br />

sua vez, encontra-se <strong>em</strong> posição intermediária, receben<strong>do</strong> influências das forças <strong>de</strong> ambos os<br />

la<strong>do</strong>s. É-lhe concedi<strong>do</strong> o livre arbítrio para escolher sua própria direção, porém é vulnerável<br />

aos engo<strong>do</strong>s pratica<strong>do</strong>s pelo Mal, que intenciona <strong>de</strong>sviar-lhe o caminho. Tais concepções,<br />

bastante simplificadas <strong>do</strong> comportamento humano foram essenciais para a instituição <strong>do</strong><br />

Cristianismo como religião universal, solidificada e representada pela Igreja Católica<br />

Apostólica Romana.<br />

Partin<strong>do</strong>-se das referências sobre a conduta humana i<strong>de</strong>alizada no medievo pela Igreja, é<br />

possível vislumbrar o “reverso” da figura f<strong>em</strong>inina. A luta entre o b<strong>em</strong> e o mal se evi<strong>de</strong>ncia<br />

como o fio condutor que leva a um r<strong>em</strong>ate, possivelmente <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>, das duas faces da mulher<br />

medieval. Isto não significa, porém, que estas idéias exprimam to<strong>do</strong>s os pensamentos <strong>do</strong><br />

hom<strong>em</strong> medieval <strong>em</strong> relação à mulher <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po. O b<strong>em</strong> e o mal se apresentam como as<br />

principais diretivas eclesiásticas na avaliação <strong>do</strong> papel f<strong>em</strong>inino numa socieda<strong>de</strong><br />

patriarcalista, misógina e exclusivista que enxergava no hom<strong>em</strong> uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

virtu<strong>de</strong>s e possibilida<strong>de</strong>s e, na mulher, apenas <strong>do</strong>is ângulos: um que se inclina para o b<strong>em</strong> e o<br />

outro para o mal.<br />

Neste senti<strong>do</strong>, o reverso <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> se instaura na mulher; esta abarca toda a iminência <strong>do</strong><br />

mal, inclusive a figura da bruxa ou feiticeira, como executantes sobrenaturais <strong>de</strong>ste mal. As<br />

opiniões <strong>em</strong> contrário, os sentimentos e pressentimentos daqueles que não conseguiam<br />

enxergar o ser f<strong>em</strong>inino sob uma perspectiva tão <strong>de</strong>sprezível foram consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s pagãos,<br />

filósofos persegui<strong>do</strong>s e, mais tar<strong>de</strong>, rotula<strong>do</strong>s e acusa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> heresia. Instalou-se o crime <strong>do</strong>s<br />

heréticos e apóstatas e, conjuntamente, a perseguição às <strong>bruxas</strong>, já na Baixa Ida<strong>de</strong> Média. Nos<br />

séculos anteriores, houve mentalida<strong>de</strong>s discordantes, ainda não criminosas. É por isso que o<br />

reverso <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>, <strong>em</strong> forma <strong>de</strong> mulher e, conseqüent<strong>em</strong>ente, <strong>de</strong> bruxa, se fez presente nos<br />

t<strong>em</strong>pos <strong>em</strong> que a Igreja irradiava o seu po<strong>de</strong>r absoluto.<br />

As <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> mostram esta realida<strong>de</strong>, cada qual a inserin<strong>do</strong> no contexto <strong>de</strong> suas<br />

aventuras na visão <strong>do</strong>s autores anônimos, que por trás escondiam sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, mas<br />

revelavam-se <strong>em</strong> seus conceitos. Por isso é que as obras escolhidas para esta pesquisa<br />

112


apresentam focos diferencia<strong>do</strong>s <strong>em</strong> alguns aspectos sociais, como é o caso <strong>de</strong> A D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong><br />

Santo Graal e <strong>de</strong> Amadis <strong>de</strong> Gaula. Essas duas <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> d<strong>em</strong>onstram várias<br />

disparida<strong>de</strong>s a respeito da visão medieval acerca da mulher e da feiticeira ou bruxa. Estan<strong>do</strong><br />

distante t<strong>em</strong>poralmente, sofreram transformações <strong>em</strong> suas t<strong>em</strong>áticas a ponto <strong>de</strong> apresentar<strong>em</strong><br />

quase que um oposto entre os i<strong>de</strong>ais cavaleirescos que difundiram. Fica, portanto, o<br />

significa<strong>do</strong> <strong>de</strong> “reverso” nas relações entre a mulher e a feiticeira restrito à análise literária e<br />

aos registros históricos, nas <strong>novelas</strong>. Configura-se a resposta à questão <strong>de</strong>ste tópico pautada<br />

nos diversos fatores que <strong>de</strong>fin<strong>em</strong>, socialmente, a inserção <strong>do</strong> sobrenatural no ambiente<br />

material <strong>do</strong> medievo e a ação da mulher, evocada como bruxa.<br />

4.3 AMADIS DE GAULA: UM OLHAR SOBRE URGANDA<br />

A obra Amadis <strong>de</strong> Gaula t<strong>em</strong> si<strong>do</strong> objeto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s e <strong>de</strong> inúmeras controvérsias. As<br />

divergências entre críticos e historiógrafos literários repousam na busca, argumentação e<br />

<strong>de</strong>fesa quanto à orig<strong>em</strong> da autoria e da língua <strong>em</strong> que foi, primeiramente, escrita. É clara a<br />

noção <strong>de</strong> que são concepções diferentes, pois a autoria não significa a língua originária, como<br />

se po<strong>de</strong> supor. Muitas são as alterações <strong>de</strong>fendidas por portugueses e espanhóis; estes foram<br />

os territórios <strong>em</strong> que a novela mais se <strong>de</strong>stacou e foi, inicialmente, publicada no século XVI.<br />

Entretanto, há indícios <strong>de</strong> que a novela original seja b<strong>em</strong> anterior. Garcia Or<strong>do</strong>ñez <strong>de</strong><br />

Montalvo ao editá-la <strong>em</strong> 1508, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Saragoça, faz uma advertência no prólogo aos<br />

leitores <strong>de</strong> que está “corrigien<strong>do</strong> estos três libros <strong>de</strong> Amadis que por falta <strong>de</strong> los malos<br />

escritores ó compone<strong>do</strong>res muy corruptos ó viciosos se leian, y trasladan<strong>do</strong> y enmendan<strong>do</strong> el<br />

libro cuarto” (MONTALVO, 1508 apud MARQUES, 1942, p. 05).<br />

Marques (1942) ressalta que <strong>de</strong>ssas idéias apresentadas por Montalvo, muitas conclusões<br />

po<strong>de</strong>riam ser tiradas. A principal <strong>de</strong>las é a referência a uma tradução <strong>de</strong> originais, levan<strong>do</strong> a<br />

crer que estavam escritos <strong>em</strong> outra língua que não o castelhano. As dissensões quanto a esta<br />

concepção são muitas, e não se po<strong>de</strong> afirmar que a provável língua seja a portuguesa. O que<br />

parece incontestável é que Montalvo tenha traduzi<strong>do</strong>, suprimi<strong>do</strong> termos in<strong>de</strong>seja<strong>do</strong>s e<br />

acresci<strong>do</strong> vocábulos mais arroja<strong>do</strong>s, conforme sua própria opinião expressa. Não é intenção<br />

<strong>de</strong>ste trabalho esgotar ou levantar a discussão acerca <strong>de</strong>sta polêmica. Acatan<strong>do</strong> a<br />

recomendação <strong>de</strong> Marques (1942), <strong>de</strong>ve-se partir da assertiva <strong>de</strong> que faltam da<strong>do</strong>s concretos<br />

113


da redação original <strong>de</strong> Amadis: “n<strong>em</strong> tampouco as suas alterações, possíveis traduções e<br />

acrescentamentos anteriores à edição <strong>de</strong> Montalvo, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que se torna inconsistente<br />

formular juízos acerca <strong>do</strong> texto original ou <strong>do</strong>s imediatamente anteriores a 1508” (p. 14).<br />

Depreen<strong>de</strong>-se da leitura que toda a história <strong>de</strong> Amadis refere-se a pessoas e fatos ocorri<strong>do</strong>s há<br />

muito t<strong>em</strong>po antes <strong>de</strong> sua escrita; pelo menos, essa certeza se concretiza ao pensar a obra no<br />

contexto social da sua primeira publicação, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-se a influência recebida das canções<br />

<strong>de</strong> gesta e não <strong>de</strong>scartan<strong>do</strong> a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que a novela tenha nasci<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>ssas<br />

canções, ainda <strong>de</strong>sconhecida.<br />

Apesar <strong>de</strong> ter circula<strong>do</strong>, com mais intensida<strong>de</strong>, pela Península Ibérica, as locações, reinos e<br />

ilhas citadas na obra refer<strong>em</strong>-se a terras da Grã-Bretanha e não a Portugal ou a Espanha.<br />

Gaula, para muitos estudiosos, é outra palavra para Gales e não para Gália. Reinos da Irlanda<br />

e da Inglaterra aparec<strong>em</strong> com freqüência e as pequenas distâncias percorridas entre eles<br />

propõ<strong>em</strong> o País <strong>de</strong> Gales como indicativo <strong>de</strong> Gaula e, assim, <strong>de</strong>scarta-se a referência à<br />

França, ou seja, à Gália. Estes apontamentos pod<strong>em</strong> sugerir a relação intrínseca da obra com a<br />

Matéria da Bretanha ou a sua inserção no conheci<strong>do</strong> Ciclo Arturiano. Mesmo não sen<strong>do</strong> uma<br />

história <strong>de</strong> cavaleiros da Távola Re<strong>do</strong>nda, Amadis enquadra-se <strong>em</strong> várias características que<br />

compõ<strong>em</strong> as <strong>novelas</strong> <strong>de</strong>ste <strong>ciclo</strong>. Ainda assim, apresenta <strong>de</strong>senvolvimento t<strong>em</strong>ático bastante<br />

diferencia<strong>do</strong>. Por conseguinte, é evi<strong>de</strong>nte a mescla <strong>de</strong> aspectos sociais e literários aparentes<br />

nesta novela.<br />

As características que aproximam a obra da Literatura Portuguesa são aquelas vigentes nas<br />

ações e comportamentos das personagens que <strong>de</strong>notam o envolvimento <strong>do</strong> amor trova<strong>do</strong>resco.<br />

A personag<strong>em</strong> Amadis é movida pelo amor <strong>de</strong> Oriana e encontra-se acima <strong>de</strong> qualquer outro<br />

valor. Difere <strong>do</strong> amor platônico vivi<strong>do</strong> pelo trova<strong>do</strong>r das cantigas <strong>de</strong> amor, mas ass<strong>em</strong>elha-se<br />

à noção nascente <strong>do</strong> amor cortês. Esses aspectos estão diretamente liga<strong>do</strong>s à literatura<br />

lusitana; no entanto, encontram-se traços que r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> a obra aos costumes pagãos <strong>do</strong>s povos<br />

britânicos. Entre estes indícios, pod<strong>em</strong>-se citar os atos ilícitos pratica<strong>do</strong>s pelas personagens<br />

Amadis e Oriana, à realização <strong>do</strong>s <strong>de</strong>sejos amorosos. Igualmente, as referências à personag<strong>em</strong><br />

Urganda, a Desconhecida, que apresenta feições mágicas e, <strong>de</strong>sta forma, insere-se no universo<br />

fantástico. Estes são ex<strong>em</strong>plos que mostram a complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> forma e conteú<strong>do</strong> <strong>de</strong> Amadis<br />

<strong>de</strong> Gaula, no que respeita às tentativas <strong>de</strong> situar a novela, literariamente, na historiografia.<br />

Consi<strong>de</strong>rada bruxa, ou a que apresenta aspectos convencionais conheci<strong>do</strong>s <strong>de</strong>sta figura<br />

114


histórica, Urganda será o nosso objeto <strong>de</strong> análise. Um levantamento sobre a personag<strong>em</strong> e sua<br />

relação com a vida real faz-se necessário, confirman<strong>do</strong> o papel da História como base<br />

fundamental para a leitura, além das particularida<strong>de</strong>s pagãs e cristãs que moldam a<br />

personag<strong>em</strong>.<br />

4.3.1 Personag<strong>em</strong> e História: aspectos narrativos, formativos e comportamentais<br />

Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a importância que alguns teóricos atribu<strong>em</strong> à personag<strong>em</strong> no universo narrativo<br />

romanesco, inserin<strong>do</strong> a novela <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> neste rico ambiente, é inevitável apontar<br />

Urganda, a Desconhecida, como ex<strong>em</strong>plo marcante <strong>de</strong>ssa relevância. Em contato com os<br />

outros el<strong>em</strong>entos da narrativa, forma a ca<strong>de</strong>ia intrínseca <strong>de</strong> episódios que conduz<strong>em</strong> à história.<br />

As relações entre estes conceitos, objeto da História, b<strong>em</strong> como as relações entre <strong>bruxas</strong> e<br />

mulheres; as relações entre personag<strong>em</strong>, pessoa e leitor, objeto da literatura e sua teoria<br />

constro<strong>em</strong> um conjunto <strong>de</strong> fatores divergentes e convergentes que culmina na busca <strong>de</strong> uma<br />

compreensão globalizada <strong>do</strong> papel <strong>de</strong>ssas figuras (bruxa – mulher – pessoa – personag<strong>em</strong>) no<br />

ambiente medieval, com <strong>de</strong>staque à formação da mentalida<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal nascente.<br />

Destacan<strong>do</strong>, primeiramente, o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> apresentação da personag<strong>em</strong>-foco, encontra-se a<br />

figura <strong>de</strong> um narra<strong>do</strong>r, que se ass<strong>em</strong>elha a um “conta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> histórias”, d<strong>em</strong>onstran<strong>do</strong> vestígios<br />

<strong>do</strong>s aspectos que proporcionaram a base para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> canções, po<strong>em</strong>as<br />

narrativos, contos orais e, posteriormente, as narrativas romanescas. Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-o uma<br />

entida<strong>de</strong> discursiva, o narra<strong>do</strong>r <strong>de</strong> Amadis apresenta algumas diferenças com os narra<strong>do</strong>res<br />

mais comuns <strong>de</strong> <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>. Entre as particularida<strong>de</strong>s, po<strong>de</strong>-se citar uma que mais se<br />

<strong>de</strong>staca: a presença verbo-pessoal. Narra<strong>do</strong>r heterodiegético, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a classificação <strong>de</strong><br />

Genette (1972, apud Aguiar e Silva, 1973), posiciona-se distante da história narrada, mas não<br />

está imune a intrusões na narração <strong>do</strong>s fatos, <strong>em</strong>itin<strong>do</strong> idéias e juízos <strong>de</strong> valor.<br />

Entretanto, há trechos <strong>em</strong> que o narra<strong>do</strong>r se apresenta dirigin<strong>do</strong>-se ao leitor, utilizan<strong>do</strong> a<br />

primeira pessoa <strong>do</strong> plural <strong>do</strong> discurso, configuran<strong>do</strong>-se, neste instante, como narra<strong>do</strong>r<br />

homodiegético: “On<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar<strong>em</strong>os ir Urganda com o seu amigo, e contar-se-á <strong>de</strong> D. Gandales<br />

que, parti<strong>do</strong> <strong>de</strong> Urganda, se tornou para o seu castelo...” (AG, p. 29) 13 . Como tal, conduz a<br />

história, relatan<strong>do</strong> os fatos ao leitor. Dirige a narrativa, às vezes omitin<strong>do</strong> a fala <strong>de</strong> uma<br />

13 Todas as referências às obras <strong>do</strong> corpus <strong>de</strong>ste trabalho serão feitas utilizan<strong>do</strong>-se as iniciais <strong>de</strong> seus títulos. A<br />

saber: AG para Amadis <strong>de</strong> Gaula e ADSG para A D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal.<br />

115


personag<strong>em</strong>, expõe tal <strong>de</strong>cisão e narra sobre outro personag<strong>em</strong>. Indica, pois, este artifício<br />

narrativo que a personag<strong>em</strong> <strong>de</strong>ixada por um t<strong>em</strong>po ainda continua a agir na diegese, mesmo<br />

não estan<strong>do</strong>, naquele momento, sob o foco das atenções <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r.<br />

O narra<strong>do</strong>r se mostra, assim, conhece<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s el<strong>em</strong>entos que <strong>de</strong>senvolv<strong>em</strong> o conteú<strong>do</strong><br />

diegético, fazen<strong>do</strong> sobressair aventuras e feitos heróicos, a presença <strong>do</strong> maravilhoso e <strong>do</strong><br />

fantástico, que extrapolam o real e alcançam o imaginário. Compreend<strong>em</strong>-se estas passagens<br />

narrativas como inserções homodiegéticas, herança da oralida<strong>de</strong>, pois que ocorre nos<br />

momentos <strong>em</strong> que o narra<strong>do</strong>r dispõe o texto a falar <strong>de</strong> outro assunto, <strong>de</strong> outra aventura ou <strong>de</strong><br />

outra personag<strong>em</strong>. Estes trechos pod<strong>em</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s como introdutórios e, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po, transitórios, <strong>de</strong> um episódio a outro, chaman<strong>do</strong> a atenção <strong>do</strong> leitor.<br />

Segun<strong>do</strong> Bourneuf & Ouellet (1976), esse tipo <strong>de</strong> narra<strong>do</strong>r revelou-se assíduo e eficaz na<br />

narrativa romanesca. Os críticos franceses <strong>de</strong>stacam esta característica, especialmente, a partir<br />

da ótica externa com que narram as personagens, suas aventuras e feitos maravilhosos.<br />

Levan<strong>do</strong> <strong>em</strong> conta que aventuras, feitos inéditos e maravilhas são aspectos inerentes às<br />

<strong>novelas</strong> cavaleirescas, não é surpreen<strong>de</strong>nte encontrar, nesta narrativa quinhentista, a referência<br />

marcada a este tipo <strong>de</strong> focalização, que prioriza as personagens pelas circunstâncias <strong>em</strong> que se<br />

envolv<strong>em</strong> e muito menos pelas características individuais. Aliás, é forçoso afirmar que os<br />

aspectos individuais apenas são aponta<strong>do</strong>s como reflexos das ações, atitu<strong>de</strong>s e<br />

comportamentos das personagens. Nítida a a<strong>de</strong>quação <strong>de</strong>sta focalização às <strong>novelas</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>cavalaria</strong>, pois que retrata fielmente o espírito <strong>de</strong> aventura fort<strong>em</strong>ente impresso nas narrativas<br />

medievais.<br />

A personag<strong>em</strong>-foco <strong>de</strong>sta obra, Urganda, a Desconhecida surge logo no primeiro capítulo,<br />

intitula<strong>do</strong> “Infância <strong>de</strong> Amadis”, cuja referência à tradução <strong>de</strong> Montalvo é “Livro Primeiro,<br />

Capítulo II”. Urganda aparece a Gandales, pai a<strong>do</strong>tivo <strong>de</strong> Amadis, e ao revelar um enigma,<br />

suscita dúvida quanto às suas palavras, porque se nega a explicar-lhe o real senti<strong>do</strong>. No<br />

entanto, momentos <strong>de</strong>pois, encontra-se <strong>em</strong> situação <strong>de</strong> perigo e roga proteção e <strong>de</strong>fesa,<br />

alegan<strong>do</strong> sofrer perseguições. Não conhecen<strong>do</strong> a <strong>do</strong>nzela, mas agin<strong>do</strong> como perfeito<br />

cavaleiro, mantém a conversa e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>-a. Nesta altura, Urganda mostra-se conhece<strong>do</strong>ra <strong>de</strong><br />

acontecimentos passa<strong>do</strong>s e futuros relaciona<strong>do</strong>s ao Donzel <strong>do</strong> Mar e procura alertar Gandales<br />

<strong>do</strong>s perigos que corre e profetiza a gran<strong>de</strong> personalida<strong>de</strong> que se formará no jov<strong>em</strong> <strong>do</strong>nzel:<br />

116


117<br />

__ Falo-te daquele que achaste no mar, que será a flor <strong>do</strong>s cavaleiros <strong>do</strong> seu<br />

t<strong>em</strong>po; ele fará estr<strong>em</strong>ecer os fortes, ele começará e acabará com honra todas<br />

as coisas <strong>em</strong> que os outros faleceram; ele obrará tais façanhas que ninguém<br />

cuidaria que pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> ser começadas e acabadas por corpo <strong>de</strong> hom<strong>em</strong>; ele<br />

fará amansar os soberbos; ele terá crueza <strong>de</strong> coração contra aqueles que o<br />

merecer<strong>em</strong>; e mais te digo ainda que este será o cavaleiro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que<br />

mais lealmente há-<strong>de</strong> manter o amor... E sabe que ambas as partes v<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />

reis. Agora vai-te, disse a <strong>do</strong>nzela, e acredita firm<strong>em</strong>ente que tu<strong>do</strong><br />

acontecerá como te digo; mas, se o <strong>de</strong>scobrires, por isso te virá maior mal <strong>do</strong><br />

que b<strong>em</strong>. (AG, p. 28)<br />

Traços <strong>de</strong> sua individualida<strong>de</strong> estão expressos nesta passag<strong>em</strong>. Urganda manifesta-se<br />

porta<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> conhecimentos importantes aos personagens. Aborda Gandales e profetiza que o<br />

Donzel <strong>do</strong> Mar há <strong>de</strong> se tornar o melhor cavaleiro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Desta maneira, Urganda mostrase<br />

amiga e grata por ter si<strong>do</strong> <strong>de</strong>fendida por Gandales. Ao mesmo t<strong>em</strong>po, ela <strong>de</strong>nota astúcia e<br />

bonda<strong>de</strong>, pois apenas explicou os enigmas <strong>em</strong> troca <strong>de</strong> um favor recebi<strong>do</strong>.<br />

Não há referência a Urganda, na obra, como nenhum tipo <strong>de</strong> ser fantástico. Não aparece<br />

<strong>de</strong>nominada como bruxa, feiticeira ou fada; apenas como “a Desconhecida”. É inicialmente<br />

por seu nome que o leitor conhece sua condição especial. “Desconhecida” r<strong>em</strong>ete a mistério,<br />

ao que se não distingue ao que não se reconhece, enfim, a algo in<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>. Urganda percorre a<br />

história <strong>de</strong> Amadis s<strong>em</strong> pertencer a lugar algum. Aparece e <strong>de</strong>saparece como num passe<br />

mágico. Tu<strong>do</strong> quanto se relaciona a ela liga-se a po<strong>de</strong>res sobrenaturais, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a in<strong>de</strong>finição<br />

quanto a sua orig<strong>em</strong>. Entretanto, <strong>em</strong> contato com os outros personagens, Urganda não causa<br />

estranheza. Sua presença é b<strong>em</strong> recebida e s<strong>em</strong>pre significa mudanças ou prenúncios <strong>de</strong><br />

mudanças. Com exceção <strong>de</strong> alguns momentos <strong>em</strong> que utiliza seus po<strong>de</strong>res mágicos, não causa<br />

espanto. O fato <strong>de</strong>, algumas vezes, d<strong>em</strong>onstrar suas habilida<strong>de</strong>s extranaturais, não a distingue<br />

como um ser t<strong>em</strong>erário. Há uma convivência bastante natural entre Urganda e os outros<br />

personagens da novela. As suas aparições, apesar <strong>de</strong> inesperadas, faz<strong>em</strong> parte das maravilhas<br />

perseguidas pelos cavaleiros, como Amadis. Suas intervenções são b<strong>em</strong> vindas, pois age, <strong>de</strong><br />

certo mo<strong>do</strong>, a favor da justiça e da lealda<strong>de</strong>.<br />

Não existe, no texto, informação sobre a compleição física <strong>de</strong> Urganda, entretanto, <strong>em</strong> sua<br />

primeira aparição, ao i<strong>de</strong>ntificar-se a Gandales, utiliza-se abertamente, <strong>de</strong> magia para ser<br />

reconhecida por ele. De <strong>do</strong>nzela transfigura-se <strong>em</strong> uma senhora muito i<strong>do</strong>sa, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> o<br />

cavaleiro terrifica<strong>do</strong> por presenciar tal maravilha:<br />

- Então dizei-me o vosso nome, pela fé que <strong>de</strong>veis à cousa <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que<br />

mais amais.


118<br />

- Dir-to-ei, já que tanto me conjuras; (...) sabe que meu nome é Urganda, a<br />

Desconhecida. Olha-me agora b<strong>em</strong>, e vê se me reconheces. E ele, que <strong>de</strong><br />

começo a vira <strong>do</strong>nzela, como qu<strong>em</strong> aparentava <strong>de</strong>zoito anos, viu-a tão velha<br />

e tão lassa que se espantou <strong>de</strong> como podia suster-se <strong>em</strong> cima <strong>do</strong> seu<br />

palafrém. Começou ele a benzer-se daquela maravilha, mas, quan<strong>do</strong> ela<br />

assim o viu, e pegou <strong>de</strong> uma boceta que trazia no regaço, e por si voltou à<br />

sua primeira feição (AG, p. 28-29).<br />

Ao perceber o susto <strong>de</strong> Gandales, novamente usan<strong>do</strong> <strong>de</strong> artifícios mágicos, retorna à sua<br />

forma inicial. Este trecho da narrativa encaixa-se perfeitamente nas atitu<strong>de</strong>s mágicas da<br />

feiticeira e da bruxa medieval, se as afirmações <strong>de</strong> Nogueira (2004) for<strong>em</strong> consi<strong>de</strong>radas<br />

quanto às características que <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> o campo <strong>de</strong> ação <strong>de</strong>ssas figuras. Ao utilizar-se <strong>de</strong> tais<br />

artifícios Urganda se configura feiticeira e, ao transmudar sua fisionomia, s<strong>em</strong> a ajuda <strong>de</strong><br />

subsídios materiais, ela, simplesmente, se torna bruxa. Segun<strong>do</strong> o historia<strong>do</strong>r, há aspectos<br />

formativos bastante distintos quanto à imag<strong>em</strong> que se t<strong>em</strong> da bruxa e da feiticeira. No<br />

medievo, a bruxa assume um caráter rural e basicamente inato; os seus po<strong>de</strong>res foram-lhe<br />

atribuí<strong>do</strong>s por meio <strong>de</strong> uma conspiração com o D<strong>em</strong>ônio. Portanto, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

transformar-se, instantaneamente na figura <strong>de</strong> uma <strong>do</strong>nzela para uma i<strong>do</strong>sa, significaria muito<br />

mais bruxaria <strong>do</strong> que somente feitiçaria. No entanto, quan<strong>do</strong> Urganda <strong>de</strong>sfaz o feitiço, ou seja,<br />

o ato mágico, ela usa algo <strong>de</strong> uma caixinha que trazia consigo, configuran<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong>,<br />

uma recorrência à materialida<strong>de</strong>, ainda que <strong>de</strong>stinada ao ato sobrenatural. Isto a aproxima <strong>do</strong><br />

caráter da feiticeira. O fato <strong>de</strong> valer-se <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos não espirituais inscreve a mulher no<br />

universo da feitiçaria.<br />

Nogueira (2004) consi<strong>de</strong>ra a feiticeira como urbana, agin<strong>do</strong> <strong>em</strong> ambientes repletos <strong>de</strong> pessoas<br />

que recorriam aos seus conhecimentos, diferent<strong>em</strong>ente da bruxa, que buscava isolamento no<br />

campo. A união <strong>de</strong>stes <strong>do</strong>is aspectos <strong>em</strong> Urganda d<strong>em</strong>onstra que estes conceitos se uniram,<br />

forman<strong>do</strong> uma imag<strong>em</strong> unipolarizada da mulher <strong>de</strong>tentora <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res mágicos, a bruxa ou<br />

feiticeira. Neste ponto, os encontros são níti<strong>do</strong>s <strong>em</strong> Amadis <strong>de</strong> Gaula. Urganda representa<br />

ambas as configurações mágicas <strong>em</strong> corpo <strong>de</strong> mulher.<br />

Outras duas razões, <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente f<strong>em</strong>ininas, concorr<strong>em</strong> para a <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> caráter da<br />

feiticeira: uma relacionada ao encantamento <strong>de</strong> homens, ou ainda ao enfeitiçamento <strong>do</strong> sexo<br />

masculino, com a intenção <strong>de</strong> subjugá-lo; outra, concernente ao la<strong>do</strong> trágico da mulher, no<br />

que se refere à frustração amorosa. Urganda mostra-se, <strong>em</strong> <strong>do</strong>is momentos <strong>de</strong> sua primeira<br />

passag<strong>em</strong>, ex<strong>em</strong>plifican<strong>do</strong> estas duas razões e, portanto, inscreven<strong>do</strong>-se na acepção da


feiticeira sugerida por Nogueira. No trecho <strong>em</strong> que se encontra com Gandales e lhe pe<strong>de</strong><br />

ajuda, está sen<strong>do</strong> perseguida por um hom<strong>em</strong> que a <strong>de</strong>testa. Inicialmente, a razão não é<br />

revelada pelo cavaleiro e após Gandales <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a <strong>do</strong>nzela, utilizan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> armas, Urganda<br />

or<strong>de</strong>na que se apart<strong>em</strong> e ao tomar a palavra o cavaleiro que a perseguia cai aos seus pés,<br />

tornan<strong>do</strong>-se seu servo, para o espanto <strong>de</strong> Gandales.<br />

Ao se revelar, <strong>de</strong>clara o seu amor àquele hom<strong>em</strong>, mesmo sabe<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> seu ódio. Entretanto,<br />

não suportan<strong>do</strong> a idéia <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>samor, apela para os meios naturais ilícitos, objetivan<strong>do</strong> a<br />

realização <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>sejos amorosos e trazê-lo para junto <strong>de</strong> si: “(...) mas a cousa <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

que mais amo, sei eu que mais me <strong>de</strong>sama; é aquele mui formoso cavaleiro, com qu<strong>em</strong> te<br />

bateste; mas n<strong>em</strong> por isso <strong>de</strong>ixo <strong>de</strong> o trazer sujeito a minha vonta<strong>de</strong>, s<strong>em</strong> que ele algo mais<br />

possa fazer” (AG, p. 28). O motivo to<strong>do</strong> da pequena trama entre estes personagens é que o<br />

cavaleiro ama<strong>do</strong> <strong>de</strong> Urganda estava <strong>em</strong> companhia <strong>de</strong> outra <strong>do</strong>nzela. O sentimento <strong>de</strong> ciúmes<br />

é confessa<strong>do</strong> por Urganda, logo após tê-lo enfeitiça<strong>do</strong>:<br />

119<br />

- Dizei àquela <strong>do</strong>nzela, que está <strong>de</strong>baixo da árvore, que se vá <strong>em</strong>bora quanto<br />

antes; se não, que lhe talhareis a cabeça.<br />

- Ah, malvada! Maravilha<strong>do</strong> estou <strong>de</strong> te não cortar a cabeça.<br />

A <strong>do</strong>nzela viu que o seu amigo estava encanta<strong>do</strong>, montou seu palafrém,<br />

choran<strong>do</strong>, e foi-se logo <strong>em</strong>bora (AG, p. 27).<br />

Desta forma, Urganda é movida pelo sentimento <strong>de</strong> frustração trágica <strong>do</strong> qual Nogueira expõe<br />

como motiva<strong>do</strong>r <strong>de</strong> feitiçaria. Age levada pelo sentimento <strong>de</strong> amor que a impele a encantar o<br />

cavaleiro na intenção <strong>de</strong> subjugá-lo. O trecho cita<strong>do</strong> no parágrafo anterior mostra claramente<br />

a sujeição <strong>do</strong> cavaleiro às vonta<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Urganda.<br />

Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> tais concepções a respeito <strong>de</strong> bruxa e feiticeira, configura-se Urganda como<br />

uma personag<strong>em</strong> que reflete, <strong>em</strong>bora não precisamente, as características <strong>de</strong> uma figura que<br />

existiu na Ida<strong>de</strong> Média, <strong>em</strong> verda<strong>de</strong> ou no imaginário coletivo. Para muitos estudiosos da<br />

História, a bruxa é uma construção mental coletiva que representa as atribulações espirituais<br />

<strong>do</strong> hom<strong>em</strong> medieval a partir <strong>do</strong> século XV. Sallmann (2002) expõe este fato <strong>de</strong> forma<br />

coerente, ao afirmar que os juizes seculares e a Igreja foram responsáveis pela perseguição às<br />

<strong>bruxas</strong> e a outros tipos <strong>de</strong> heréticos. Aponta os séculos XV e XVI como extr<strong>em</strong>amente<br />

conturba<strong>do</strong>s, uma vez que a cristanda<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal era dividida pelas heresias e sofria diversos


golpes estruturais, como a Reforma Protestante, por ex<strong>em</strong>plo. Para o autor, <strong>de</strong>ve-se, pois,<br />

situar o conceito <strong>de</strong> bruxaria nestes contextos atribula<strong>do</strong>s <strong>do</strong> medievo final.<br />

Ao levar <strong>em</strong> conta a época <strong>em</strong> que a obra Amadis <strong>de</strong> Gaula foi publicada pela primeira vez,<br />

po<strong>de</strong>-se situar Urganda como <strong>de</strong>tentora das características que Sallmann <strong>de</strong>staca como<br />

próprias da bruxa medieval. Aparecen<strong>do</strong> e <strong>de</strong>saparecen<strong>do</strong> s<strong>em</strong> <strong>de</strong>ixar vestígios, não<br />

pertencen<strong>do</strong> a lugar algum, não se <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> encontrar, a não ser que ela mesma <strong>de</strong>seje, são<br />

indícios da diafaneida<strong>de</strong> que cerca a mulher misteriosa, personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Urganda. Representa,<br />

pois, aquela que age às escondidas, que busca isolamento, e somente surge <strong>em</strong> momentos<br />

importantes da trama, apontan<strong>do</strong> para o perigo e prenúncio <strong>de</strong> catástrofes, t<strong>em</strong>pos<br />

probl<strong>em</strong>áticos <strong>em</strong> varia<strong>do</strong>s aspectos.<br />

Assim se apresenta Urganda no texto <strong>de</strong> Amadis. Entretanto, apesar <strong>de</strong> abarcar tão fort<strong>em</strong>ente<br />

as características <strong>do</strong> século XV, a personag<strong>em</strong> ainda confere à obra o resgate das heranças<br />

folclóricas e pagãs (lega<strong>do</strong> anticristão e ante-Cristo), permanecen<strong>do</strong> impressas no<br />

subconsciente coletivo da população. Revela uma ligação não t<strong>em</strong>poral entre a época retratada<br />

na novela e a época da editoração primeira. São particularida<strong>de</strong>s inerentes à novela<br />

cavaleiresca, pois a própria obra é objeto <strong>de</strong> investigação literária e histórica, revelan<strong>do</strong><br />

mistérios insolúveis, com a falta <strong>de</strong> registros <strong>do</strong>cumentais que prov<strong>em</strong> esta ou aquela teoria<br />

histórica. Outrossim, converte-se <strong>em</strong> transparência a noção <strong>de</strong> que a personag<strong>em</strong> po<strong>de</strong>, <strong>de</strong><br />

fato, estar associada à imag<strong>em</strong> coletiva existente na Ida<strong>de</strong> Média <strong>do</strong>s seres pertencentes ao<br />

mun<strong>do</strong> fantástico, alcançan<strong>do</strong>, sobr<strong>em</strong>aneira, a materialida<strong>de</strong> física das pessoas comuns da<br />

época através <strong>de</strong> suas próprias crenças, resultadas da <strong>de</strong>senvolução não comedida <strong>de</strong> suas<br />

tradições culturais.<br />

Partin<strong>do</strong> para uma observação acerca da construção da personag<strong>em</strong>, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> as<br />

afirmações relacionadas à focalização narrativa e às s<strong>em</strong>elhanças com a figura histórica da<br />

bruxa ou feiticeira, é importante <strong>de</strong>stacar a noção da autoria. Involuntariamente, evoca-se a<br />

presença <strong>de</strong> um autor que se posiciona por trás <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r. A idéia <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> uma<br />

personag<strong>em</strong> literária s<strong>em</strong>pre esteve associada à maneira que um autor concebe seus<br />

protagonistas <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> universo diegético. Deste mo<strong>do</strong>, tentan<strong>do</strong> adaptar a obra Amadis <strong>de</strong><br />

Gaula, com enfoque na personag<strong>em</strong> Urganda, às teorias literárias escolhidas para este<br />

trabalho, <strong>de</strong>fronta-se com a questão da “autoria”, que <strong>em</strong> <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>, não está b<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>finida como na maioria <strong>do</strong>s romances. Amadis t<strong>em</strong> sérios probl<strong>em</strong>as relaciona<strong>do</strong>s à autoria<br />

120


e à língua originária, portanto, não há como iniciar a investigação sobre a construção da<br />

personag<strong>em</strong> valen<strong>do</strong> da noção <strong>de</strong> autoria por trás <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r. Este é um ponto relevante, pois<br />

que limita a observação ao narra<strong>do</strong>r e, principalmente, ao contexto histórico da novela. São<br />

estes os indícios que po<strong>de</strong>rão revelar traços <strong>de</strong>sta construção <strong>de</strong> personag<strong>em</strong> e não o contexto<br />

pessoal ou individual <strong>em</strong> que o autor está inseri<strong>do</strong>.<br />

Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a teoria escolhida, e <strong>de</strong>stacan<strong>do</strong> a distinção <strong>de</strong> personagens proposta por<br />

Forster (1963 apud AGUIAR E SILVA, 1973), <strong>em</strong> que estas pod<strong>em</strong> ser planas ou re<strong>do</strong>ndas,<br />

po<strong>de</strong>-se entrever Urganda como uma personag<strong>em</strong> plana. Seus traços comportamentais<br />

padroniza<strong>do</strong>s por toda a narrativa, incluin<strong>do</strong>-se a inserção <strong>de</strong> seus po<strong>de</strong>res mágicos, não<br />

causam tanta surpresa aos d<strong>em</strong>ais personagens, o que leva a inferir que para os leitores da<br />

época (ou mesmo para os ouvintes das canções e/ou po<strong>em</strong>as narrativos), também, não<br />

ocasionava espanto algum. Os indícios históricos apresenta<strong>do</strong>s anteriormente pod<strong>em</strong> justificar<br />

esta assertiva. Assim, no <strong>de</strong>curso da obra, a personag<strong>em</strong> se <strong>de</strong>lineia como bruxa ou feiticeira<br />

medieval, tal qual ficou conhecida nos séculos seguintes. Não se po<strong>de</strong> afirmar que as <strong>novelas</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> tenham si<strong>do</strong> as únicas responsáveis pela construção <strong>de</strong> personagens <strong>do</strong> tipo bruxa<br />

ou feiticeira; a orig<strong>em</strong> <strong>de</strong>stes termos e <strong>de</strong>stas figuras r<strong>em</strong>onta a séculos anteriores ao medievo,<br />

b<strong>em</strong> como a culturas bastante diversas e longínquas.<br />

Urganda é uma personag<strong>em</strong> plana (<strong>em</strong> distinção ao conceito <strong>de</strong> “re<strong>do</strong>nda”, não apresentan<strong>do</strong><br />

modificações <strong>de</strong> caráter) pela capacida<strong>de</strong> previsível <strong>de</strong> suas ações. Por toda a narrativa, ela<br />

aparece s<strong>em</strong>pre da mesma maneira, não sofren<strong>do</strong> alterações <strong>de</strong> caráter íntimo. Os fatos aos<br />

quais se liga não influenciam <strong>em</strong> sua personalida<strong>de</strong>, logo não <strong>de</strong>terminam alterações <strong>em</strong> suas<br />

atitu<strong>de</strong>s. Apesar <strong>de</strong> sua presença ser um tanto “etérea”, isso não caracteriza modificação<br />

interior na personag<strong>em</strong>. Ela s<strong>em</strong>pre age <strong>de</strong> forma s<strong>em</strong>elhante: aparece e <strong>de</strong>saparece<br />

inesperadamente, utiliza seus po<strong>de</strong>res sensoriais, faz predições, profetiza o futuro, avisa,<br />

alerta e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, busca satisfação pessoal através <strong>de</strong> suas habilida<strong>de</strong>s sobrenaturais.<br />

Urganda engloba perfeitamente aspectos <strong>do</strong>s mo<strong>de</strong>los marginais <strong>de</strong> representação f<strong>em</strong>inina<br />

medieval: a bruxa ou a feiticeira.<br />

Analisan<strong>do</strong>, <strong>em</strong> última instância, a intrínseca relação existente entre pessoa e personag<strong>em</strong>, que<br />

configura a mesma relação entre realida<strong>de</strong> e ficção, encontra-se uma dualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> posições:<br />

Aguiar e Silva (1973) dispõe a personag<strong>em</strong> re<strong>do</strong>nda como capaz <strong>de</strong> evolucionar <strong>de</strong>ntro da<br />

narrativa e que esta capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>nota uma clara i<strong>de</strong>ntificação com o ser humano; são<br />

121


atribuições a protagonistas, <strong>em</strong> sua maioria. Logo, se Urganda for consi<strong>de</strong>rada como<br />

personag<strong>em</strong> plana, estaria longe <strong>de</strong> qualquer aproximação com o el<strong>em</strong>ento humano. No<br />

entanto, ao cotejar a personag<strong>em</strong> com a figura histórica da bruxa ou feiticeira medieval, uma<br />

i<strong>de</strong>ntificação suficient<strong>em</strong>ente explícita apresenta-se.<br />

Para os propósitos <strong>de</strong>ste trabalho, não é <strong>de</strong> suma importância que esta classificação tipológica<br />

<strong>de</strong> Forster esteja <strong>em</strong> plena concordância com a construção <strong>do</strong>s personagens <strong>de</strong> Amadis.<br />

Mesmo porque é sabi<strong>do</strong> que exist<strong>em</strong> outras possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> classificação; assim sen<strong>do</strong>, o<br />

que interessa é que há uma relação íntima entre a ficção e a realida<strong>de</strong>, que se representa<br />

através das personagens, s<strong>em</strong>elhante a um reflexo da humanida<strong>de</strong>. As personagens <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> o<br />

ser humano <strong>em</strong> épocas, locais e culturas diferentes, ao passo que este parece ser <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> por<br />

personagens que o representam.<br />

Consi<strong>de</strong>rada, porém, personag<strong>em</strong> plana <strong>em</strong> alguns aspectos, Urganda se mostra re<strong>do</strong>nda<br />

quanto ao seu comportamento <strong>em</strong> analogia com a História, que comprova a existência mental<br />

da bruxa ou da feiticeira. Esta dualida<strong>de</strong> concorre para a complexida<strong>de</strong> que cinge a<br />

personag<strong>em</strong>, atentamente observada. A História se entrelaça com a Literatura, crian<strong>do</strong><br />

difíceis nós a ser<strong>em</strong> <strong>de</strong>sata<strong>do</strong>s, configuran<strong>do</strong>-se, uma riqueza <strong>de</strong> informações sobre o ser<br />

humano. A personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> ficção exerce uma fascinação sobre o leitor (ou ouvinte), que<br />

<strong>do</strong>mina o imaginário <strong>do</strong> ser humano. O universo literário po<strong>de</strong> estabelecer a aceitação ou<br />

negação <strong>de</strong> comportamentos ou atitu<strong>de</strong>s surgidas das aventuras vividas pelas personagens.<br />

Esta i<strong>de</strong>ntificação, que imprime atos <strong>de</strong> julgamento entre a pessoa-leitor e personag<strong>em</strong>, é<br />

<strong>de</strong>corrente <strong>do</strong> fato <strong>de</strong> existir<strong>em</strong> s<strong>em</strong>elhanças entre a ficção e a vida real, b<strong>em</strong> como entre<br />

personagens ficcionais e pessoas verda<strong>de</strong>iras.<br />

A Literatura convencionou chamar esta maior ou menor s<strong>em</strong>elhança entre estes <strong>do</strong>is universos<br />

<strong>de</strong> “verossimilhança”, que <strong>de</strong>fine a i<strong>de</strong>ntificação <strong>do</strong> leitor com a personag<strong>em</strong> através da<br />

<strong>de</strong>pendência da concretização que o leitor sente <strong>em</strong> relação ao que é retrata<strong>do</strong> na narrativa.<br />

Assim, quanto mais próximo <strong>do</strong> real, maior a verossimilhança e, portanto, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntificação. Para a fundamentação <strong>de</strong>ssa abordag<strong>em</strong> que enfoca o diálogo entre estas duas<br />

esferas, Antônio Candi<strong>do</strong> e Anatol Rosenfeld passam a ser as principais referências teóricas.<br />

Candi<strong>do</strong> (1985) <strong>de</strong>fine as personagens romanescas como entida<strong>de</strong>s sobrecarregadas <strong>de</strong> senti<strong>do</strong><br />

e extr<strong>em</strong>amente capazes <strong>de</strong> provocar efeitos sobre as pessoas. Dada esta habilida<strong>de</strong>, seja <strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>corrência <strong>do</strong> talento <strong>do</strong> escritor, seja provinda da engenhosida<strong>de</strong> <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, a personag<strong>em</strong><br />

122


se configura no que existe <strong>de</strong> mais vivo numa narrativa. Em Amadis, Urganda se ass<strong>em</strong>elha à<br />

bruxa ou feiticeira medieval, tal como é <strong>de</strong>scrita por historia<strong>do</strong>res. Portanto, apesar <strong>de</strong> ser<br />

apresentada e muitas vezes envolta <strong>em</strong> mistério, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> produzir nos leitores a sensação<br />

verda<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> uma existência. O fato histórico relaciona<strong>do</strong> a <strong>feiticeiras</strong> e <strong>bruxas</strong>, herança<br />

indiscutível <strong>do</strong> medievo, torna-se fator <strong>de</strong>terminante <strong>de</strong> verossimilhança, trazen<strong>do</strong> à tona, para<br />

o leitor, a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong> um ser exposto historicamente, revelan<strong>do</strong> uma referência direta à<br />

realida<strong>de</strong>.<br />

Ainda com relação à i<strong>de</strong>ntificação entre pessoa e personag<strong>em</strong>, Candi<strong>do</strong> (1985) aponta para<br />

um para<strong>do</strong>xo aparente nesta questão: se a personag<strong>em</strong> é um ser fictício, como po<strong>de</strong> ser um<br />

“ser” se, realmente, não existe? Afirma o estudioso que este suposto para<strong>do</strong>xo constitui-se na<br />

base fundamental da verossimilhança, ou seja, esta i<strong>de</strong>ntificação, maior ou menor, que se<br />

instala no momento da leitura, entre leitor e diegese, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um ser<br />

fictício produzir a sensação da mais genuína realida<strong>de</strong>. Compl<strong>em</strong>entan<strong>do</strong>, assim, o parágrafo<br />

anterior, quan<strong>do</strong> se encontra <strong>em</strong> obras fictícias, referências a pessoas ou coisas que,<br />

notadamente, são conhecidas no ambiente real humano, a instituição da verossimilhança flui<br />

naturalmente e concorre, portanto, para a extr<strong>em</strong>a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> ficção e vida real, b<strong>em</strong><br />

como <strong>de</strong> personag<strong>em</strong> e pessoa. A História corrobora a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> Urganda com a<br />

verda<strong>de</strong>ira bruxa ou feiticeira que existiu no medievo. Compará-la às verda<strong>de</strong>iras concepções<br />

f<strong>em</strong>ininas <strong>de</strong> mulher e <strong>de</strong> bruxa não se configura, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> algum, <strong>em</strong> i<strong>de</strong>ais infunda<strong>do</strong>s,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se consi<strong>de</strong>re a relação entre realida<strong>de</strong> e ficção.<br />

Outro fator muito importante que Candi<strong>do</strong> (1985) <strong>de</strong>staca é a questão da continuida<strong>de</strong> da<br />

percepção física e a <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> da percepção espiritual. A continuida<strong>de</strong> da percepção<br />

física fornece os fundamentos <strong>de</strong> nosso conhecimento, uma vez que, para que este ocorra, é<br />

necessário um contato físico, <strong>em</strong> primeiro lugar. Já a <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> da percepção espiritual<br />

revela os diferentes mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> ser ou <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s humanas, comumente confusas,<br />

contraditórias e inexpectáveis. À vista disso, se <strong>de</strong>duz que o ser humano não é capaz <strong>de</strong><br />

abranger completamente a personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outro com a mesma uniformida<strong>de</strong> com que po<strong>de</strong><br />

divisar o feitio exterior. Naturalmente, pessoas são imprevisíveis; a noção máxima que um ser<br />

po<strong>de</strong> ter <strong>de</strong> outro provém <strong>de</strong> fragmentos <strong>de</strong> diálogos, <strong>de</strong> convivência ou <strong>de</strong> observação direta<br />

e indireta. Eclarece que essa noção é o bastante para que se estabeleçam relações, condutas e<br />

atitu<strong>de</strong>s diante <strong>do</strong>s fatos da vida; entretanto, por ser esta noção incompleta, oscilante e<br />

<strong>de</strong>scontínua, <strong>de</strong>termina a fragmentação <strong>do</strong> conhecimento <strong>de</strong> uma pessoa <strong>em</strong> relação à outra.<br />

123


Aplican<strong>do</strong> essas afirmações à personag<strong>em</strong>, Candi<strong>do</strong> a distingue como, também, fragmentária,<br />

pois o conhecimento que um autor possui sobre uma personag<strong>em</strong> que está crian<strong>do</strong> é,<br />

igualmente, limita<strong>do</strong>; o autor utiliza os mesmos padrões <strong>de</strong> observação com que elabora a<br />

apreciação <strong>de</strong> outro ser humano. O crítico brasileiro ainda acrescenta que, na vida real, esta<br />

<strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> percepção é inerente ao hom<strong>em</strong>; já na criação literária, esta característica<br />

é assumida racionalmente pelo escritor. Ao ser humano não é dada a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecer<br />

a trilha <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> outra pessoa; na produção <strong>de</strong> uma personag<strong>em</strong>, cabe ao escritor <strong>de</strong>cidir o<br />

seu <strong>de</strong>stino, suas estruturas <strong>em</strong>ocionais e sua trajetória <strong>de</strong> “vida”.<br />

Esta característica fragmentária <strong>do</strong> ser humano que Candi<strong>do</strong> aplica, da mesma forma, à<br />

criação <strong>de</strong> uma personag<strong>em</strong> é um fator bastante explícito nas personagens consi<strong>de</strong>radas<br />

<strong>bruxas</strong> ou <strong>feiticeiras</strong> das <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>. Estan<strong>do</strong> estas d<strong>em</strong>onstradas pelo que a história<br />

<strong>de</strong>ixou como herança <strong>do</strong> medievo, a figura <strong>de</strong> Urganda <strong>em</strong> Amadis <strong>de</strong> Gaula, enquadra-se<br />

perfeitamente na fraccionalida<strong>de</strong> acima exposta, no que se refere à <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> da<br />

percepção espiritual <strong>do</strong> ser humano. Tal ocorrência é explicada pelo fato <strong>de</strong> que todas as<br />

referências ou registros <strong>do</strong>cumentais <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong>s acerca <strong>de</strong> <strong>bruxas</strong> ou <strong>feiticeiras</strong> da Ida<strong>de</strong> Média<br />

foram produzi<strong>do</strong>s por terceiros. Isto equivale a dizer que nenhum <strong>do</strong>cumento ou registro<br />

histórico apresenta traços <strong>do</strong> que as próprias pessoas consi<strong>de</strong>radas <strong>bruxas</strong> ou <strong>feiticeiras</strong><br />

pensavam a respeito <strong>de</strong> si mesmas ou das comunida<strong>de</strong>s <strong>em</strong> que viviam. To<strong>do</strong> relato existente<br />

provém <strong>de</strong> pessoas que as julgavam por seu exterior.<br />

Por conseguinte, o caráter fragmentário da personag<strong>em</strong> é, <strong>em</strong> Amadis, duplamente aplicável:<br />

Urganda é <strong>de</strong>scrita pelo narra<strong>do</strong>r por meio da sua concepção que, por sua vez, reproduz a<br />

imag<strong>em</strong> da bruxa ou feiticeira difundida <strong>em</strong> seu t<strong>em</strong>po e <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com as tradições locais.<br />

Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-se a época <strong>em</strong> que a obra foi editada, século XVI, Urganda pô<strong>de</strong> ser vista como<br />

um ser disposto entre o B<strong>em</strong> e o Mal. Sabe-se que o final da Ida<strong>de</strong> Média esteve às voltas com<br />

idéias contraditórias acerca da bruxaria e feitiçaria e duas correntes <strong>de</strong> pensamento<br />

evi<strong>de</strong>nciaram-se antes que se instalass<strong>em</strong> as perseguições da Inquisição que levaram muitos à<br />

fogueira. Uma <strong>de</strong>las aceitava a existência da feiticeira boa (aquela que conhecia ervas<br />

medicinais e que realizava curas) e da má (aquela que impingia encantamentos maléficos). A<br />

segunda corrente apontava apenas para a existência d<strong>em</strong>oníaca da bruxa ou feiticeira,<br />

consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-as como parceiras <strong>do</strong> d<strong>em</strong>ônio, logo, eram, s<strong>em</strong> distinção, as executoras<br />

concretas <strong>do</strong> Mal e <strong>de</strong>veriam ser castigadas.<br />

124


Desta forma, com o <strong>de</strong>correr <strong>do</strong> t<strong>em</strong>po, apenas a segunda corrente manteve-se no <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong><br />

pensamento geral das comunida<strong>de</strong>s européias, dan<strong>do</strong> oportunida<strong>de</strong> para que verda<strong>de</strong>ira<br />

mortanda<strong>de</strong>, ocasionada tanto pela Igreja como pelo tribunal secular, marcasse to<strong>do</strong> um<br />

perío<strong>do</strong>. E, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>, agora, a época retratada na obra Amadis <strong>de</strong> Gaula, anterior ao seu<br />

t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> editoração, encontra-se a personag<strong>em</strong> Urganda <strong>em</strong> total conformida<strong>de</strong> com os<br />

preceitos da socieda<strong>de</strong> daqueles t<strong>em</strong>pos im<strong>em</strong>oriais: forças sobrenaturais eram encaradas<br />

como uma extensão das forças naturais, logo, a forma espontânea com que a personag<strong>em</strong> é<br />

apresentada na novela <strong>de</strong>nota essa naturalida<strong>de</strong> sentida pelo ser humano <strong>em</strong> relação com as<br />

forças agentes <strong>em</strong> seu <strong>de</strong>rre<strong>do</strong>r. Entr<strong>em</strong>entes, mesmo a convivência pacífica entre as forças<br />

materiais e as espirituais não foge à caracterização fragmentária <strong>de</strong>fendida por Candi<strong>do</strong>,<br />

quanto à criação da personag<strong>em</strong>. O narra<strong>do</strong>r <strong>em</strong> Amadis não tece juízos acerca da figura <strong>de</strong><br />

Urganda, entretanto, é através <strong>de</strong>le que se trava conhecimento da personag<strong>em</strong> <strong>em</strong> ação com os<br />

protagonistas. Assim, a noção <strong>de</strong> que o olhar sobre ela v<strong>em</strong> <strong>de</strong> uma posição não pertencente<br />

ao universo fantástico fica clara para o leitor, mesmo que a personag<strong>em</strong> não reflita seus<br />

pensamentos e aflições, apenas dialogue e <strong>de</strong>senvolva movimentação <strong>do</strong>s fatos presentes na<br />

narrativa.<br />

Po<strong>de</strong>-se perceber esta característica, <strong>em</strong> relação à construção da personag<strong>em</strong>, nas passagens<br />

selecionadas abaixo, on<strong>de</strong> é possível vislumbrar a inserção da personag<strong>em</strong> apenas por suas<br />

ações, não transparecen<strong>do</strong> qualquer juízo ou esforço <strong>em</strong> caracterizar o íntimo da personag<strong>em</strong>:<br />

125<br />

Mas um dia, andan<strong>do</strong> Gandales à caça, encontrou uma <strong>do</strong>nzela, que lhe<br />

disse:<br />

- Ai, Gandales, se muitos altos senhores soubess<strong>em</strong> o que eu agora sei,<br />

cortar-te-iam a cabeça! (AG, p. 25)<br />

Arma<strong>do</strong> cavaleiro, o Donzel <strong>do</strong> Mar, com o seu escu<strong>de</strong>iro Gandalim, parte<br />

<strong>em</strong> busca <strong>de</strong> aventuras. Um dia Urganda, a Desconhecida, traz-lhe uma lança<br />

e anuncia-lhe que <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> pouco t<strong>em</strong>po com ela dará golpes que salvará a<br />

casa <strong>de</strong> seus pais (AG, p. 41).<br />

Candi<strong>do</strong> assevera que uma personag<strong>em</strong> po<strong>de</strong> ser produto <strong>de</strong> várias fontes <strong>de</strong> inspiração, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

a observação direta ou indireta <strong>de</strong> uma pessoa conhecida à pura invenção provinda da<br />

imaginação da mente <strong>de</strong> um escritor. Tal processo pertence ao escritor, pois mesmo que este<br />

aproveite idéias, imagens, pessoas, coisas, acontecimentos, lugares, m<strong>em</strong>órias e sentimentos<br />

para compor uma personag<strong>em</strong>, ele ainda estará agin<strong>do</strong> <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com suas próprias<br />

convicções. O que distingue a criação <strong>de</strong> uma personag<strong>em</strong> para Candi<strong>do</strong> é o fato da não


imitação da realida<strong>de</strong>, uma modificação a partir <strong>do</strong> aproveitamento <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos reais,<br />

inserin<strong>do</strong>-a num universo fictício, além da ilusão <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> para com o real.<br />

Estas concepções <strong>de</strong> Candi<strong>do</strong> tornam-se complexas ao analisar a personag<strong>em</strong> Urganda, <strong>de</strong><br />

Amadis. A falta <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s referentes a um escritor e a provável múltipla autoria, prática<br />

comum da literatura cavaleiresca medieval, dificultam os meios <strong>de</strong> aprofundamento da<br />

questão. Entretanto, as informações da história medieval e, particularmente, da história da<br />

bruxaria e feitiçaria, configuradas na personag<strong>em</strong> <strong>em</strong> questão, levam a compreen<strong>de</strong>r o papel<br />

<strong>do</strong> contexto histórico e cultural <strong>do</strong>s possíveis autores <strong>de</strong> Amadis como el<strong>em</strong>entos importantes<br />

na sua construção (ou na <strong>de</strong>senvolução). Fato é que muitos creditam à prosa medieval uma<br />

verda<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>scrição da vida comum <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> daquela época. Não se po<strong>de</strong> ignorar que tal<br />

tarefa, <strong>em</strong>bora importante para a história, não faz da literatura um registro <strong>do</strong>cumental.<br />

Cândi<strong>do</strong> argumenta ainda que a personag<strong>em</strong>, sen<strong>do</strong> uma cópia <strong>do</strong> real, traz como el<strong>em</strong>ento<br />

básico para a sua construção, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ser fiel à realida<strong>de</strong>.<br />

Duas possibilida<strong>de</strong>s, assim, oscilam na criação <strong>de</strong> uma personag<strong>em</strong>: transposição fiel <strong>de</strong><br />

mo<strong>de</strong>los ou invenção totalmente imaginária. Cada escritor imprime a suas personagens<br />

combinações <strong>de</strong>sejadas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>stes <strong>do</strong>is limites. Para o crítico brasileiro, os limites da<br />

criação literária novelística, no tocante à personag<strong>em</strong>, repousam nestas duas possibilida<strong>de</strong>s.<br />

Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> tais <strong>de</strong>finições, a personag<strong>em</strong> Urganda, produto <strong>de</strong> vários autores, revela o<br />

esforço que tiveram na reescrita da obra e na manutenção <strong>de</strong> suas características, haven<strong>do</strong>,<br />

assim, uma coerência interna na combinação <strong>do</strong>s varia<strong>do</strong>s el<strong>em</strong>entos <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s limites da<br />

criação literária. Se, por outro la<strong>do</strong>, o Amadis teve apenas um único autor, da mesma maneira,<br />

as fontes inspira<strong>do</strong>ras mais aparentes se configuram nas tradições orais e nos costumes pagãos<br />

que Urganda traz impressos <strong>em</strong> suas atitu<strong>de</strong>s.<br />

O sentimento <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> que ocasiona a verossimilhança não <strong>de</strong>ve, no entanto, ser avalia<strong>do</strong><br />

apenas através da comparação da narrativa com a vida real; muito mais importante, segun<strong>do</strong><br />

Candi<strong>do</strong> (1985), é a análise da composição narrativa. Isto equivale dizer que somente uma<br />

organização estrutural coerente da narração é capaz <strong>de</strong> produzir a verossimilhança. Mesmo<br />

que uma história narrada seja a cópia fiel <strong>de</strong> um acontecimento verda<strong>de</strong>iro, só surtirá o efeito<br />

da verda<strong>de</strong> se estiver organizada <strong>de</strong> forma coerente. A personag<strong>em</strong>, por sua vez, só alcança a<br />

qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> verossímil quan<strong>do</strong> estabelecer relações com os outros el<strong>em</strong>entos da narrativa.<br />

Verda<strong>de</strong>, verossimilhança e coerência interna são fatores intimamente vincula<strong>do</strong>s à<br />

126


distribuição conveniente das características expressivas das personagens, que se entrelaçam<br />

com outros el<strong>em</strong>entos na composição geral <strong>de</strong> um romance.<br />

Urganda apresenta uma coerência concernente à imag<strong>em</strong> difundida da bruxa ou feiticeira<br />

medieval por aqueles que não viam <strong>em</strong> sua figura uma ameaça à ord<strong>em</strong> espiritual. Segue um<br />

padrão relativo às ações esperadas <strong>de</strong> seres provi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res sobrenaturais e a sua relação<br />

com os outros el<strong>em</strong>entos da narrativa também se enquadra <strong>de</strong> forma apropriada à figura<br />

fantástica das <strong>bruxas</strong>. Em contato com outras personagens, mostra-se amiga ou astuta; faz<br />

predições, dá conselhos e realiza profecias. Em relação ao espaço, parece pertencer ao<br />

universo maravilhoso, mas coloca-se paralelamente ao universo material e sua transição <strong>de</strong><br />

um a outro espaço ocorre <strong>de</strong> maneira natural, s<strong>em</strong> necessitar <strong>de</strong> referências explícitas: “Um<br />

dia Urganda, a Desconhecida, traz-lhe uma lança e anuncia-lhe que <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> pouco t<strong>em</strong>po<br />

com ela dará tais golpes que salvará a casa <strong>de</strong> seus pais. Seguiu o <strong>do</strong>nzel o seu caminho (...)”<br />

(AG, p. 41). Esta passag<strong>em</strong> <strong>de</strong>nota a forma com que a personag<strong>em</strong> aparece e <strong>de</strong>saparece s<strong>em</strong><br />

causar espanto ou maravilhar alguém. O t<strong>em</strong>po para ela também é posto <strong>de</strong> forma a concordar<br />

com suas características vagas e incertas: “Um dia, estan<strong>do</strong> reuni<strong>do</strong>s os reis e cavaleiros na<br />

Ilha Firme, Urganda, a Desconhecida, r<strong>em</strong><strong>em</strong>ora os factos passa<strong>do</strong>s e anuncia os futuros<br />

feitos <strong>de</strong> Esplandião, filho <strong>de</strong> Amadis e <strong>de</strong> Oriana” (AG, p. 93).<br />

São estes apenas alguns ex<strong>em</strong>plos <strong>do</strong> que Candi<strong>do</strong> expõe como essência da coerência interna<br />

<strong>de</strong> um romance. Os el<strong>em</strong>entos se entrelaçam como a uma coreografia, sen<strong>do</strong> or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>s<br />

convenient<strong>em</strong>ente ao longo da ação vivida pelas personagens. Esta coerência, segun<strong>do</strong> o<br />

estudioso, é a responsável pela produção <strong>do</strong> sentimento verda<strong>de</strong>iro que permite a fruição <strong>do</strong><br />

leitor. A verossimilhança só é possível se to<strong>do</strong>s os el<strong>em</strong>entos da narrativa estiver<strong>em</strong> <strong>em</strong> plena<br />

concordância, <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s limites da narrativa ficcional.<br />

As consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> Rosenfeld (1985) sobre a personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> ficção part<strong>em</strong> <strong>do</strong> mesmo foco<br />

aborda<strong>do</strong> por Candi<strong>do</strong>, ou seja, estão pautadas na relação entre realida<strong>de</strong> e ficção. Várias<br />

idéias <strong>do</strong> crítico são partilhadas por Rosenfeld, especialmente aquelas que se refer<strong>em</strong> ao papel<br />

imprescindível da personag<strong>em</strong> na estrutura narrativa. No entanto, as diferenças <strong>de</strong> abordag<strong>em</strong><br />

da personag<strong>em</strong> fictícia não apresentam discordâncias entre os <strong>do</strong>is estudiosos. Refere-se mais<br />

ao estabelecimento <strong>do</strong> caráter fictício da literatura <strong>em</strong> geral e, conseqüent<strong>em</strong>ente, da narrativa<br />

romanesca, <strong>do</strong> que aos aspectos da relação intrínseca entre personag<strong>em</strong> e pessoa ou ficção e<br />

vida real, tal como Candi<strong>do</strong> expõe. Posicionan<strong>do</strong>-se a favor <strong>de</strong> aspectos já discuti<strong>do</strong>s, chega a<br />

127


conclusões s<strong>em</strong>elhantes, porém trilhan<strong>do</strong> caminhos diferentes. Analisa mais profundamente a<br />

questão estritamente ficcional da literatura e, por conseguinte, a personag<strong>em</strong>, que, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que se relaciona intimamente com o leitor, mantém com este uma distância<br />

marcante que os separa <strong>em</strong> <strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>s distintos.<br />

O primeiro crítico comprova uma aproximação das personagens fictícias com o ser humano e<br />

dispõe os fatores que concorr<strong>em</strong> para fortalecer estes laços. Rosenfeld, por outro la<strong>do</strong>, aceita a<br />

existência <strong>de</strong>sta relação, mas aponta outros fatores que, na verda<strong>de</strong>, mais afastam <strong>do</strong> que<br />

un<strong>em</strong> as duas esferas, abordan<strong>do</strong> a fantasia e a realida<strong>de</strong> como espaços completamente<br />

separa<strong>do</strong>s, mesmo que inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. Para ele, o mun<strong>do</strong> retrata<strong>do</strong> num romance é um<br />

universo <strong>de</strong> objectualida<strong>de</strong>s imaginárias e intencionais, construí<strong>do</strong> <strong>de</strong> palavras e orações.<br />

Seria simples a <strong>de</strong>dução <strong>de</strong> que a realida<strong>de</strong> pouco influencia como fonte inspira<strong>do</strong>ra <strong>de</strong><br />

criação literária. Entretanto, não é isso que o pesquisa<strong>do</strong>r propõe. O que ele distingue como<br />

objectualida<strong>de</strong>s são invenções da mente humana, representativas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> real, porém<br />

existentes num mun<strong>do</strong> irreal, fictício. É neste ponto que suas idéias <strong>de</strong>notam a linha divisória<br />

entre a realida<strong>de</strong> e a ficção literária. A realida<strong>de</strong>, sim, se constitui gran<strong>de</strong> fonte <strong>de</strong> inspiração,<br />

relaciona-se simbionticamente com a ficção, mas mantém-se à parte <strong>de</strong>sta.<br />

Rosenfeld argumenta que a representação <strong>do</strong> real através <strong>do</strong> imaginário é imanente à obra<br />

literária. Deste mo<strong>do</strong>, a “verda<strong>de</strong>” literária é questionável; o sentimento <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> refere-se a<br />

acontecimentos reais e a seres humanos. Sen<strong>do</strong> apenas uma representação <strong>do</strong> real, a ficção<br />

acaba por se preocupar com a autenticida<strong>de</strong> ou a sincerida<strong>de</strong> <strong>do</strong> autor e não, necessariamente,<br />

com o que realmente aconteceu; a ficção busca a<strong>de</strong>quar a subjetivida<strong>de</strong> <strong>do</strong> autor ao que<br />

po<strong>de</strong>ria ter aconteci<strong>do</strong>. Sintetizan<strong>do</strong> esses pressupostos <strong>de</strong> Rosenfeld, po<strong>de</strong>r-se-ia dizer que o<br />

crítico afirma não ser correto a aplicação <strong>de</strong> critérios <strong>de</strong> veracida<strong>de</strong> cognoscitiva a enuncia<strong>do</strong>s<br />

fictícios, pois pareceriam falsos. A literatura não se ocupa <strong>de</strong> falsida<strong>de</strong>s. Mesmo tratan<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

mun<strong>do</strong>s objectuais, se configuram mun<strong>do</strong>s irreais, mas não falsos.<br />

Procuran<strong>do</strong> a<strong>de</strong>quar estas consi<strong>de</strong>rações com a personag<strong>em</strong> Urganda, <strong>de</strong> Amadis, como ser<br />

fictício representante <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo real, a bruxa ou feiticeira medieval, po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>duzir que<br />

a história, como fundamento <strong>de</strong> análise contextual para a análise literária, se constitui <strong>em</strong><br />

referência a algo que, por si, já era consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> “irreal”. Desta forma, a dúvida com relação à<br />

existência verda<strong>de</strong>ira da bruxa ou feiticeira ocasiona que esta personag<strong>em</strong>, isto é, uma<br />

objectualida<strong>de</strong>, jamais po<strong>de</strong>ria representar uma figura humana, pois que esta, apesar <strong>de</strong> existir<br />

128


no imaginário medieval, s<strong>em</strong>pre carregou o estigma da irrealizabilida<strong>de</strong>. Forman<strong>do</strong>, então, um<br />

para<strong>do</strong>xo, pois muitas pessoas reais foram assassinadas por ser<strong>em</strong> julgadas <strong>bruxas</strong> ou<br />

<strong>feiticeiras</strong>, tornam-se difíceis as idéias <strong>de</strong> Rosenfeld à personag<strong>em</strong> Urganda, porém é possível<br />

enten<strong>de</strong>r a essência <strong>de</strong> seus argumentos. A dificulda<strong>de</strong> se instala <strong>em</strong> <strong>de</strong>corrência da<br />

complexida<strong>de</strong> que existiu, na Ida<strong>de</strong> Média, <strong>de</strong> aceitação e <strong>de</strong> negação <strong>do</strong> sobrenatural, dada a<br />

forte religiosida<strong>de</strong> cristã, também posta como forma <strong>de</strong> <strong>do</strong>mínio social e político. Em síntese,<br />

sen<strong>do</strong> Urganda uma representação objectual da realida<strong>de</strong>, ou seja, uma invenção da mente <strong>de</strong><br />

um autor (ou <strong>de</strong> autores), a personag<strong>em</strong> não t<strong>em</strong> obrigação <strong>de</strong> se “parecer” real ou <strong>de</strong> causar<br />

uma impressão <strong>de</strong> ter si<strong>do</strong> retirada da realida<strong>de</strong> concreta. Basta figurar <strong>em</strong> seu mun<strong>do</strong><br />

fantástico, ainda que este mun<strong>do</strong> possua bifurcações: a fantasia inerente à personag<strong>em</strong> fictícia,<br />

segun<strong>do</strong> Rosenfeld, e a fantasia inerente às mentes medievais que conceberam a imag<strong>em</strong> da<br />

bruxa ou feiticeira, como expõe a história, servin<strong>do</strong> <strong>de</strong> inspiração para a construção da<br />

personag<strong>em</strong>, segun<strong>do</strong> Candi<strong>do</strong>.<br />

Igualmente po<strong>de</strong>-se inferir que as consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> Rosenfeld acerca da personag<strong>em</strong> fictícia,<br />

<strong>em</strong> comparação com as <strong>de</strong> Candi<strong>do</strong>, ass<strong>em</strong>elham-se mais a uma análise filosófica <strong>do</strong> que<br />

literária. Partin<strong>do</strong> <strong>de</strong>ste pressuposto, configura-se complexa a relação entre a personag<strong>em</strong><br />

literária Urganda e a bruxa ou feiticeira da vida real. Conceitos existenciais que sobreviveram<br />

a um perío<strong>do</strong> histórico, alcançan<strong>do</strong> a imortalida<strong>de</strong> através <strong>de</strong> histórias, lendas e mitos<br />

<strong>de</strong>screv<strong>em</strong> toda uma cultura. Desta forma, a figura da bruxa ou feiticeira <strong>de</strong>ve ser estudada<br />

num contexto real histórico, reportan<strong>do</strong> os t<strong>em</strong>pos im<strong>em</strong>oriais à atualida<strong>de</strong>, povoan<strong>do</strong> o<br />

imaginário <strong>do</strong> leitor. Obe<strong>de</strong>cen<strong>do</strong>, pois, a tais critérios, um obstáculo se coloca à frente: <strong>de</strong><br />

que forma situar a personag<strong>em</strong> Urganda <strong>em</strong> cotejamento com a figura medieval da bruxa ou<br />

feiticeira, uma vez que os <strong>do</strong>is universos (real e fictício) apenas se entrecruzam, mas não se<br />

amalgamam? A invenção da mente <strong>de</strong> um escritor, apesar <strong>de</strong> receber influências <strong>do</strong> seu meio,<br />

cria um mun<strong>do</strong> objectual on<strong>de</strong> a realida<strong>de</strong> não figura. Esta a proposição <strong>de</strong> Rosenfeld que<br />

aparta as inserções <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> no outro.<br />

Um outro olhar para a verossimilhança também é pratica<strong>do</strong> por Rosenfeld. O grau <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntificação com a realida<strong>de</strong> é estuda<strong>do</strong> como el<strong>em</strong>ento fundamental para o objetivo da<br />

fruição na leitura e, conseqüent<strong>em</strong>ente, há uma espécie <strong>de</strong> invasão ao universo fictício. O<br />

leitor entrevê essa i<strong>de</strong>ntificação, maior ou menor, como caracteriza<strong>do</strong>ra e <strong>de</strong>terminante da<br />

intencionalida<strong>de</strong> ficcional. Numa visão “por trás” da narrativa, numa obra literária, encontrase<br />

vivo o conjunto <strong>de</strong> intenções <strong>de</strong> um autor ao criar as objectualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>stinadas a viver<strong>em</strong> a<br />

129


ficção criada. Portanto, se a verossimilhança é a aparência <strong>de</strong> vida real, Rosenfeld apregoa<br />

que não passa <strong>de</strong> aparência.<br />

Ao estudar Urganda sob este prisma e cotejá-la à mulher medieval, fica evi<strong>de</strong>nte que esta<br />

carregava um estigma <strong>de</strong> mistério que a ligava a seres imaginários ou fantásticos, mesmo que<br />

a realida<strong>de</strong> fosse concreta. Assim, mais fácil se torna estabelecer um paralelo da personag<strong>em</strong><br />

literária com a personag<strong>em</strong> fantástica da bruxa ou feiticeira, inspirada na vida real. Se o<br />

imaginário para Rosenfeld é tão distinto da realida<strong>de</strong> palpável (<strong>em</strong>bora inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes),<br />

para Candi<strong>do</strong> não se misturam ao explicar a sua existência no ambiente irreal:<br />

130<br />

Assim, pois, um traço irreal po<strong>de</strong> tornar-se verossímil, conforme a<br />

or<strong>de</strong>nação da matéria e os valores que a norteiam, sobretu<strong>do</strong> o sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong><br />

convenções a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pelo escritor; inversamente, os da<strong>do</strong>s mais autênticos<br />

pod<strong>em</strong> parecer irreais e mesmo impossíveis, se a organização não os<br />

justificar (CÂNDIDO, 1985, p. 77).<br />

Urganda configura-se como um mo<strong>de</strong>lo representativo da imag<strong>em</strong> que os medievos criavam<br />

da bruxa ou da feiticeira. O autor (ou supostos autores) <strong>de</strong> Amadis <strong>de</strong> Gaula foi capaz <strong>de</strong><br />

dispor essa figura fantástica, real na Ida<strong>de</strong> Média test<strong>em</strong>unhada pela história, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> coeso e<br />

verossímil, representan<strong>do</strong> el<strong>em</strong>entos tanto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> real quanto <strong>do</strong> imaginário: a mulher, a<br />

bruxa e a personag<strong>em</strong>. Finalizan<strong>do</strong> as relevantes reflexões <strong>de</strong> Rosenfeld quanto à personag<strong>em</strong><br />

Urganda, há que se reiterar a diferença crucial entre a realida<strong>de</strong> e as objectualida<strong>de</strong>s<br />

intencionais: estas não têm a competência para atingir a <strong>de</strong>terminação completa da realida<strong>de</strong>,<br />

convergin<strong>do</strong> para o caráter fragmentário da personag<strong>em</strong>, exposta por Candi<strong>do</strong>. A ficção e,<br />

conseqüent<strong>em</strong>ente, suas personagens não possu<strong>em</strong> a habilida<strong>de</strong> “humana” para assumir a<br />

completu<strong>de</strong> das relações e atitu<strong>de</strong>s reais <strong>de</strong> pessoas, <strong>em</strong> circunstâncias verda<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> vida.<br />

Assim, Urganda assume um mo<strong>de</strong>lo <strong>do</strong> imaginário medieval, parecen<strong>do</strong> tão próxima da<br />

realida<strong>de</strong> da história, da bruxa ou feiticeira, como mimese da imag<strong>em</strong> criada da mulher<br />

medieval. Entretanto, o reverso <strong>do</strong> f<strong>em</strong>inino po<strong>de</strong> transfigurar-se como o Mal difundi<strong>do</strong> pela<br />

Igreja, alimentan<strong>do</strong> o imaginário <strong>do</strong> povo sobre os seres fantásticos, com uma<br />

intencionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>finida e pr<strong>em</strong>editada.


4.3.2 Influências pagãs e cristãs presentes na construção da personag<strong>em</strong><br />

A Ida<strong>de</strong> Média foi um perío<strong>do</strong> profícuo <strong>de</strong> in<strong>de</strong>terminações, dúvidas e in<strong>de</strong>finições quanto à<br />

relação entre o natural e o sobrenatural. Refletin<strong>do</strong> sobre o contexto, longamente conturba<strong>do</strong>,<br />

<strong>do</strong> nascimento <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte, é necessário focalizar alguns fatores essenciais que sobrevieram<br />

ao espírito <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> medieval: Deus e o hom<strong>em</strong>; religiosida<strong>de</strong> e tradição; cultura laica e<br />

clerical. To<strong>do</strong>s são aspectos que incidiram diretamente na conduta das pessoas <strong>de</strong> todas as<br />

classes sociais. E, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> que a conduta provém <strong>do</strong> arranjo mental que governa as<br />

ações, as influências recebidas das esferas <strong>do</strong>minantes foram as que mais persuadiram o<br />

comportamento humano, no medievo, quanto ao direcionamento da<strong>do</strong> às <strong>em</strong>oções e ao<br />

controle das forças inerentes à natureza.<br />

A noção <strong>de</strong> que a figura (ou imag<strong>em</strong>) criada da bruxa ou feiticeira medieval seja uma herança<br />

apenas da medievalida<strong>de</strong> é <strong>de</strong>veras simplista. Seria, <strong>de</strong>sta forma, muito menos complexa a<br />

análise comparativa das personagens literárias construídas na Ida<strong>de</strong> Média, pois não<br />

envolveriam os aspectos históricos r<strong>em</strong>anescentes <strong>de</strong> culturas antigas que transparec<strong>em</strong> nas<br />

narrativas cavaleirescas. Entretanto, é sabi<strong>do</strong> que, por toda contextualização cultural <strong>do</strong><br />

medievo, entrechocan<strong>do</strong>-se culturas, crenças e hábitos, b<strong>em</strong> como o estabelecimento da<br />

Cristanda<strong>de</strong>, a imag<strong>em</strong> da bruxa ou feiticeira sofreu inspirações diversas, acréscimos culturais<br />

varia<strong>do</strong>s e foi inserida <strong>em</strong> ambientes sagra<strong>do</strong>s e profanos ao mesmo t<strong>em</strong>po.<br />

Estas condições proporcionaram à personag<strong>em</strong> real da bruxa um po<strong>de</strong>r extraordinário sobre a<br />

mulher na Ida<strong>de</strong> Média. Estan<strong>do</strong> esta mais afeita a mistérios e, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> aos pensamentos<br />

luxuriosos masculinos, <strong>de</strong>ten<strong>do</strong> fascínio sobre os homens, as ações bruxescas se apropriaram<br />

da imag<strong>em</strong> f<strong>em</strong>inina, mesmo haven<strong>do</strong> histórico antigo da existência <strong>de</strong> magos e bruxos <strong>em</strong><br />

t<strong>em</strong>pos pagãos. No entanto, nos primeiros séculos medievais, ainda <strong>em</strong> nítida confusão<br />

cultural, o el<strong>em</strong>ento masculino da magia pareceu ficar isola<strong>do</strong> às religiões pagãs, <strong>de</strong> forma<br />

que, ao passo <strong>em</strong> que estas <strong>de</strong>sapareceram, os magos também se evadiram. A imag<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />

magos liga<strong>do</strong>s a sacer<strong>do</strong>tes <strong>de</strong> religiões profanas, notadamente a religião Celta, foi muito<br />

comum e recorrente, todavia, permaneceu nestas esferas. Já a feiticeira ou bruxa espalhou-se<br />

pela Europa <strong>de</strong> formas variadas, confusas, difusas e não <strong>de</strong>sapareceu com a aniquilação das<br />

religiões pagãs. O medievo, ao contrário, conheceu o seu po<strong>de</strong>r da maneira mais contun<strong>de</strong>nte.<br />

131


Barros (2004) explica que, <strong>em</strong> se tratan<strong>do</strong> da imag<strong>em</strong> criada ao re<strong>do</strong>r das <strong>bruxas</strong> ou <strong>feiticeiras</strong><br />

medievais, é interessante ressaltar a leitura <strong>do</strong> sobrenatural que perdurou, principalmente, no<br />

século XII. A autora comenta que o sobrenatural divino e o diabólico paralelizavam-se,<br />

entrecortavam-se e, <strong>de</strong> certa forma, conviviam povoan<strong>do</strong> o imaginário <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> comum. O<br />

divino ligava-se ao B<strong>em</strong>, sen<strong>do</strong> representa<strong>do</strong> pelo Maravilhoso cristão e apoiava-se nos<br />

milagres; <strong>de</strong>nominava-se, então, miraculosus. O diabólico ligava-se ao Mal e apoiava-se <strong>em</strong><br />

seres fantásticos e maléficos; <strong>de</strong>nominava-se magicus. As duas faces <strong>do</strong> sobrenatural,<br />

portanto, dialetizavam, marcan<strong>do</strong>, sobr<strong>em</strong>aneira, o caminho dicotômico percorri<strong>do</strong> pela<br />

religiosida<strong>de</strong> cristã. Entretanto, o século XII foi palco <strong>de</strong> um acontecimento que proporcionou<br />

um equilíbrio entre as duas forças, colocan<strong>do</strong>-se como um intermediário, passível <strong>de</strong> reatar as<br />

partes <strong>de</strong>sm<strong>em</strong>bradas da essência humana:<br />

132<br />

(...) o século XII foi o momento <strong>em</strong> que as lendas <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> celta, oriundas<br />

das ilhas da Bretanha e da Irlanda, invadiram o continente e com elas<br />

infiltrou-se um Maravilhoso <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> pagã, um sobrenatural neutro –<br />

mirabilis – que transitava entre os <strong>do</strong>is níveis: o b<strong>em</strong> e o mal, o sagra<strong>do</strong> e o<br />

profano, apagan<strong>do</strong>, <strong>de</strong>sta forma, as distâncias entre os opostos <strong>de</strong>limita<strong>do</strong>s<br />

pelos religiosos (p. 166).<br />

Marca<strong>do</strong>s por movimentos religiosos e literários, os séculos XII e XIII ofereceram<br />

oportunida<strong>de</strong> para que o espírito medieval se expandisse, colocan<strong>do</strong>-se <strong>em</strong> meio a um fogo<br />

cruza<strong>do</strong> constituí<strong>do</strong> pela guerra interna criada pela Igreja, numa tentativa ferrenha <strong>em</strong> manter<br />

o po<strong>de</strong>rio masculino e a estrutura organizacional que privilegiava a religião <strong>do</strong> Pai e <strong>do</strong> Filho.<br />

À proporção que a literatura apresentava a mulher nos mol<strong>de</strong>s celta-pagãos, como seres<br />

superiores e responsáveis pelo amor, a Igreja intensificava a luta pelo estabelecimento padrão<br />

<strong>do</strong> comportamento humano <strong>em</strong> que o <strong>do</strong>mínio social repousava, unicamente, sobre mãos<br />

masculinas. No entanto, a própria consciência humana, meio que involuntariamente, trouxe à<br />

tona o culto a Maria e a Maria Madalena, colocan<strong>do</strong>-se esta última como força intermédia<br />

entre o B<strong>em</strong> e o Mal, característica herdada das culturas pagãs que dispunham,<br />

harmonicamente, a dualida<strong>de</strong> essencial <strong>do</strong>s <strong>de</strong>uses.<br />

Barros (2004) registra que os <strong>de</strong>uses antigos eram ambivalentes ou se apresentavam <strong>em</strong><br />

duplas que se opunham e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, se completavam. Assim, afirma que a questão da<br />

dualida<strong>de</strong> humana era entrevista com naturalida<strong>de</strong> pelos povos pagãos. Somente as religiões<br />

monoteístas tiveram dificulda<strong>de</strong>s para explicar a existência <strong>do</strong> Mal, pois que ao exigir<strong>em</strong> um<br />

Deus único e essencialmente bom, <strong>de</strong>tiveram-se no obstáculo complexo <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r e


fazer enten<strong>de</strong>r o Mal. O i<strong>de</strong>al perfeito compreendi<strong>do</strong> pelos povos anteriores a Cristo era que<br />

mesmo um único Deus <strong>de</strong>veria concentrar toda a bonda<strong>de</strong> e a malda<strong>de</strong>, promoven<strong>do</strong> assim o<br />

equilíbrio das forças; entretanto, ao afirmar que um Deus seria apenas bonda<strong>de</strong>, o Mal ficou,<br />

s<strong>em</strong> dúvida, relega<strong>do</strong> ao mistério e ao pavor <strong>do</strong> <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>.<br />

Viu-se a Igreja impelida a agir <strong>de</strong> forma que convencesse a população <strong>de</strong> que o B<strong>em</strong> era<br />

representa<strong>do</strong> pelo Deus Onipotente e o Mal vinha a ser o seu oposto: o Altíssimo, no Céu, <strong>em</strong><br />

contraposição com o Renega<strong>do</strong>, nas profun<strong>de</strong>zas da Terra. Esta dualida<strong>de</strong> não foi encarada<br />

como essência <strong>do</strong> ser humano e, <strong>de</strong>sta forma, seus aspectos foram separatistas e não<br />

compl<strong>em</strong>entares como nas religiões politeístas antigas. O universo <strong>do</strong> B<strong>em</strong> não <strong>de</strong>veria entrar<br />

<strong>em</strong> contato com o <strong>do</strong> Mal; se tal ocorresse, haveria disputa e a infinita força <strong>de</strong> Deus, por ter<br />

si<strong>do</strong> Ele mesmo a expulsar Satanás <strong>do</strong> ambiente celestial, seria s<strong>em</strong>pre vitoriosa sobre aqueles<br />

que merecess<strong>em</strong> o Paraíso. Desta forma, a religião cristã se impôs como julga<strong>do</strong>ra,<br />

con<strong>de</strong>nan<strong>do</strong> o comportamento moral <strong>do</strong>s homens. Quanto mais sacrifícios, mais próximos da<br />

santida<strong>de</strong>; quanto mais luxúria, mais próximos e, conseqüent<strong>em</strong>ente, con<strong>de</strong>na<strong>do</strong>s às esferas<br />

inferiores <strong>do</strong>minadas por Satã, s<strong>em</strong> oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> re<strong>de</strong>nção.<br />

Esta condição unilateral exigida pela Igreja Católica negou o dualismo humano, que tanto já<br />

havia promovi<strong>do</strong> o equilíbrio das forças naturais entre os povos pagãos e fez surgir, <strong>de</strong>sta<br />

maneira, a intolerância e a hipocrisia entre as pessoas. O hom<strong>em</strong>, por natureza, não é perfeito<br />

<strong>em</strong> seus sentimentos n<strong>em</strong> atitu<strong>de</strong>s; a Igreja quis que assim o fosse e a obrigação relacionada à<br />

virginda<strong>de</strong> e à castida<strong>de</strong> levou ao cúmulo da criação <strong>de</strong> uma imag<strong>em</strong> que <strong>de</strong>veria assumir<br />

todas as culpas e reveses da humanida<strong>de</strong>, a mulher. Representada, inicialmente, por Eva, a<br />

peca<strong>do</strong>ra, a mulher preencheu to<strong>do</strong>s os requisitos necessários para ser inscrita à marg<strong>em</strong> <strong>do</strong><br />

que Deus legou ao hom<strong>em</strong>. Assimilan<strong>do</strong>, na confusão das culturas que se chocaram, as<br />

características cristãs frente às pagãs, a figura f<strong>em</strong>inina perpassou momentos <strong>de</strong> angústia,<br />

incompreensão, mistério, intolerância e luta.<br />

A misoginia surgiu num misto <strong>de</strong> repúdio e <strong>de</strong>sentendimento quanto ao papel da mulher na<br />

socieda<strong>de</strong>. Igualmente, Barros (2004) comenta que as heresias conservavam a mulher como<br />

sábia caída ou como “prostituta sagrada”, <strong>de</strong>sta forma configuran<strong>do</strong>-se num resgate à Gran<strong>de</strong><br />

Deusa, que encerrava as funções sacras da reprodução humana, s<strong>em</strong>, no entanto, ligar-se à<br />

<strong>do</strong>gmas morais <strong>de</strong> comportamento. Tais atitu<strong>de</strong>s foram, sumariamente, combatidas pelo Clero<br />

e à existência irr<strong>em</strong>ediável da herança grega quanto à dicotomia <strong>do</strong> corpo e da alma, a Igreja<br />

133


assimilou a imag<strong>em</strong> <strong>do</strong> corpo da mulher como espelho da sedução: a mulher, <strong>de</strong><br />

incompreendida, “passa a ser a sedutora, a fingi<strong>do</strong>ra, a tenta<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Luxúria é a<br />

imag<strong>em</strong> da mulher, a carne a serviço <strong>do</strong> Mal, a perdida que, como vingança, t<strong>em</strong> como único<br />

<strong>de</strong>sejo a perdição <strong>do</strong> hom<strong>em</strong>” (p. 333).<br />

Nesta ação inflexível <strong>em</strong>preendida pelos religiosos cristãos, figurou uma megalomania<br />

explícita <strong>em</strong> relação à constituição universal <strong>do</strong> Catolicismo, <strong>de</strong>notan<strong>do</strong> gran<strong>de</strong> soberba <strong>em</strong><br />

instituir uma religião <strong>de</strong>sprovida da imag<strong>em</strong> da Mãe. A Igreja erigiu seu t<strong>em</strong>plo masculino e<br />

promoveu uma orto<strong>do</strong>xia <strong>em</strong> que apenas os homens po<strong>de</strong>riam exercer as funções diretivas da<br />

religião, como padres e bispos. Teriam estes si<strong>do</strong> investi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r t<strong>em</strong>poral pelos<br />

Apóstolos que receberam <strong>de</strong> Cristo o direito <strong>de</strong> divulgar a Boa Nova. Expulsa <strong>do</strong> quadro<br />

executivo da religião, a mulher foi relegada à marg<strong>em</strong> da moralida<strong>de</strong>, vin<strong>do</strong> somente a<br />

recuperar um pouco <strong>de</strong> seu prestígio através <strong>de</strong> movimentos que surgiram <strong>em</strong> <strong>de</strong>corrência da<br />

própria intolerância causada pela Igreja: o culto mariano, a literatura que promoveu o amor<br />

cortês, o culto a Maria Madalena, a lírica provençal e a retomada das lendas celta-pagãs pelas<br />

<strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>, como ex<strong>em</strong>plos marcantes <strong>de</strong> certa resistência e resgate <strong>do</strong> papel<br />

f<strong>em</strong>inino sufoca<strong>do</strong> pelo Clero.<br />

Os pequenos focos <strong>de</strong> oposição à supr<strong>em</strong>acia católica e masculina, diretamente relaciona<strong>do</strong>s<br />

às heresias e aos resquícios <strong>de</strong> tradições pagãs, foram suficientes para preocupar os alicerces<br />

da Igreja. Esta se viu compelida a agir <strong>de</strong> forma inteligente e politizada e, para tal, procurou<br />

nos próprios <strong>do</strong>gmas cristãos meios <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r noções pagãs que po<strong>de</strong>riam a<strong>de</strong>quar-se aos<br />

caminhos escritos por Cristo. Em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong>sta atitu<strong>de</strong> política <strong>do</strong> Clero é que enxerga-se<br />

a tolerância ao paganismo, ao se ler as obras escolhidas para esta pesquisa. Entretanto, <strong>de</strong>vese<br />

ressaltar que os el<strong>em</strong>entos pagãos incorpora<strong>do</strong>s à estrutura católica foram, cautelosamente,<br />

seleciona<strong>do</strong>s. A tolerância <strong>do</strong> Clero com relação a estes el<strong>em</strong>entos pagãos <strong>de</strong>u-se ao nível <strong>em</strong><br />

que estes não ameaçavam o po<strong>de</strong>r clerical, <strong>de</strong> forma que se aceitou o que não se pô<strong>de</strong><br />

aniquilar e mesmo os aspectos apropria<strong>do</strong>s pela Igreja, das tradições folclórico-pagãs, foram<br />

<strong>de</strong>svirtua<strong>do</strong>s antes <strong>de</strong> sua cristianização.<br />

Com vistas a estas especulações, é chega<strong>do</strong> ao ponto <strong>em</strong> que se configuram distintas as<br />

influências pagãs e cristãs na construção (ou, pelo menos, na apresentação) das personagens<br />

consi<strong>de</strong>radas <strong>bruxas</strong> ou <strong>feiticeiras</strong> nas <strong>novelas</strong> cavaleirescas. O Amadis <strong>de</strong> Gaula, que<br />

apresenta a personag<strong>em</strong> Urganda, a Desconhecida, reafirma vários pontos <strong>do</strong>s quais<br />

134


comenta<strong>do</strong>s neste tópico. Primeiramente, já percebida como um ser fantástico, Urganda traz<br />

consigo o pólo positivo <strong>de</strong> forças mágicas e sobrenaturais. Atua s<strong>em</strong>pre ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> herói e <strong>do</strong>s<br />

b<strong>em</strong> quistos na novela, como mostra este diálogo entre Gandales e Urganda:<br />

135<br />

- Assim Deus me salve, senhora, como eu assim creio! Mas rogo-vos por<br />

Deus que vos l<strong>em</strong>breis daquele <strong>do</strong>nzel, que <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s é <strong>de</strong>sampara<strong>do</strong>, e só o<br />

não é <strong>de</strong> mim.<br />

- Não te dê isso cuida<strong>do</strong> – replicou Urganda – que esse <strong>de</strong>sampara<strong>do</strong> será<br />

amparo e reparo <strong>de</strong> muitos. Eu o amo mais <strong>do</strong> que pensas, pois <strong>de</strong>le espero<br />

<strong>em</strong> breve duas ajudas, <strong>em</strong> que ninguém mais po<strong>de</strong>ria pôr r<strong>em</strong>édio; e ele<br />

receberá <strong>do</strong>is galardões, com que muito alegre há-<strong>de</strong> ficar. Agora<br />

encomen<strong>do</strong>-te a Deus, que me quero ir; mas mais <strong>de</strong>pressa me verás <strong>do</strong> que<br />

tu pensas... (AG, p. 29)<br />

Apesar <strong>de</strong> mostrar-se com características diferentes das <strong>do</strong>nzelas comuns da novela, Urganda<br />

recorre ao nome <strong>de</strong> “Deus”, fala <strong>de</strong> amor sincero que sente pelo herói Amadis e <strong>de</strong>seja o b<strong>em</strong><br />

a Gandales. São representações a um tipo <strong>de</strong> personag<strong>em</strong> que, na vida real, no t<strong>em</strong>po das<br />

perseguições às <strong>bruxas</strong>, seriam incoerentes, pois o ser diabólico entrevisto na bruxa ou<br />

feiticeira jamais apareceria proferin<strong>do</strong> a palavra “Deus” como sinônimo <strong>de</strong> crença e po<strong>de</strong>r<br />

benéfico. Se, por um la<strong>do</strong>, Urganda se mostra “cristianizada” ao falar <strong>em</strong> Deus <strong>de</strong>sta maneira,<br />

por outro la<strong>do</strong>, Gandales se apresenta recorren<strong>do</strong> à ajuda sobrenatural, representada pelos<br />

po<strong>de</strong>res <strong>de</strong> Urganda, pois roga a ela que proteja seu filho.<br />

O Mal não é representa<strong>do</strong> por Urganda; este, por oposição, é atribuí<strong>do</strong> a um el<strong>em</strong>ento<br />

masculino da Magia, Arcalaus. Este personag<strong>em</strong> encerra as características malévolas e a<br />

maldição que os inquisi<strong>do</strong>res impuseram sobre as mulheres. Não há como ignorar este aspecto<br />

inova<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Amadis: a obra não se enquadra nos i<strong>de</strong>ais católicos <strong>de</strong> combate às bases pagãs,<br />

como A D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal. O Mal é inclina<strong>do</strong> ao masculino e o B<strong>em</strong> é atribuí<strong>do</strong> a<br />

uma figura f<strong>em</strong>inina. Percebe-se, nitidamente, a inserção da novela numa camada t<strong>em</strong>ática<br />

contrária à D<strong>em</strong>anda e receptiva <strong>de</strong> inspirações e influências variadas da cultura ibéricopeninsular,<br />

da lírica provençal, <strong>do</strong> Trova<strong>do</strong>rismo e das tendências inova<strong>do</strong>ras que ainda<br />

estavam por vir com o advento da Renascença.<br />

Urganda, ex<strong>em</strong>plifican<strong>do</strong> as atribuições divulgadas por suas atitu<strong>de</strong>s na história <strong>do</strong> Amadis,<br />

r<strong>em</strong>onta a muitos el<strong>em</strong>entos provin<strong>do</strong>s <strong>de</strong> culturas pagãs longínquas. Embora não chamada <strong>de</strong><br />

“fada”, a personag<strong>em</strong> t<strong>em</strong> o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> fadar, <strong>de</strong> prenunciar o <strong>de</strong>stino das pessoas. Segun<strong>do</strong><br />

Maleval (2004), na mitologia grega, encontram-se as Parcas como <strong>de</strong>usas que <strong>de</strong>terminavam


o curso da vida humana, portanto elas, Cloto, Láquesis e Átropos, possuíam po<strong>de</strong>res <strong>de</strong><br />

anunciar os fatos futuros, b<strong>em</strong> como <strong>de</strong> transformá-los, se necessário. Esta transformação<br />

representa, muitas vezes, as intervenções divinas na vida <strong>do</strong>s heróis, <strong>em</strong> momentos <strong>de</strong><br />

extr<strong>em</strong>o perigo ou extr<strong>em</strong>a aflição, como que a lhes socorrer, com o objetivo <strong>de</strong> mantê-los na<br />

posição heróica das ações.<br />

Urganda socorre Amadis num momento <strong>em</strong> que este se encontra à mercê <strong>de</strong> Arcalaus,<br />

impingin<strong>do</strong> um encantamento que lhe traz a morte. Corre pela região a notícia <strong>de</strong> que Amadis<br />

estava morto. Em meio à confusão <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s, Urganda aparece ao herói e o arrebata <strong>do</strong><br />

encantamento, trazen<strong>do</strong>-o <strong>de</strong> volta à vida. Interfere, portanto, no curso traça<strong>do</strong> pelo Mal e faz<br />

com que a personag<strong>em</strong> retome o fio <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>stino:<br />

136<br />

O anão quere vingar a morte que o feiticeiro <strong>de</strong>ra ao seu amo, mas o bruxo<br />

encanta Amadis e fá-lo cair <strong>em</strong> terra, como morto. Em seguida toma-lhe as<br />

armas e dirige-se à côrte <strong>do</strong> rei Lisuarte, a dizer-lhe que matara Amadis <strong>em</strong><br />

combate leal. Entretanto, Urganda, a Desconhecida, <strong>de</strong>sencanta o herói, que<br />

põe <strong>em</strong> liberda<strong>de</strong> aqueles que Arcalaus havia encarcera<strong>do</strong> (AG, p. 58).<br />

Não somente como um reflexo das Parcas, Urganda também se mostra curan<strong>de</strong>ira, protetora,<br />

aquela que oferece objetos mágicos ao herói e a amigos. Contu<strong>do</strong>, a face benéfica que a<br />

personag<strong>em</strong> encarna correspon<strong>de</strong> à meta<strong>de</strong> referente ao B<strong>em</strong> <strong>de</strong>sm<strong>em</strong>bra<strong>do</strong> pela Igreja, mas<br />

nota-se, claramente, que o Amadis não reflete os i<strong>de</strong>ais católicos tal qual A D<strong>em</strong>anda. Então, é<br />

cabível conceber Urganda mais como uma personag<strong>em</strong> inscrita na tradição pagã <strong>do</strong> que na<br />

tradição cristã, pois i<strong>de</strong>ntifica-se como benévola e malévola ao mesmo t<strong>em</strong>po: o mal, aqui,<br />

não refere-se à outra meta<strong>de</strong> da essência humana <strong>de</strong>sm<strong>em</strong>brada pelo Cristianismo católico, e<br />

sim à face <strong>de</strong>svirtuada própria <strong>de</strong> to<strong>do</strong> hom<strong>em</strong>. Desta forma, Urganda não é exclusivamente<br />

boa n<strong>em</strong> irr<strong>em</strong>ediavelmente má: age honestamente para com seus amigos, mas prejudica, s<strong>em</strong><br />

pesar, os inimigos e também utiliza seus po<strong>de</strong>res para manter o hom<strong>em</strong> ama<strong>do</strong> sob seu<br />

<strong>do</strong>mínio, por não lhe correspon<strong>de</strong>r ao amor: “__ Dir-to-ei, já que tanto me conjuras; mas a<br />

cousa <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que mais amo, sei eu que mais me <strong>de</strong>sama; é aquele mui formoso cavaleiro,<br />

com qu<strong>em</strong> te bateste; mas n<strong>em</strong> por isso <strong>de</strong>ixo <strong>de</strong> o trazer sujeito à minha vonta<strong>de</strong>, s<strong>em</strong> que ele<br />

algo mais possa fazer” (AG, p. 28).<br />

Compreen<strong>de</strong>-se que Urganda foi investida <strong>de</strong> características pagãs mais fort<strong>em</strong>ente imbuídas<br />

<strong>do</strong> que qualquer referência aos aspectos cristão-católicos da Ida<strong>de</strong> Média. Esta novida<strong>de</strong><br />

trazida pelo Amadis, subverten<strong>do</strong> o po<strong>de</strong>r f<strong>em</strong>inino, trata<strong>do</strong> maleficamente pela tradição


cristianizada das lendas bretãs, facilita a visão benévola <strong>de</strong> Urganda, aproximan<strong>do</strong> a<br />

personag<strong>em</strong> da essência humana. Através <strong>de</strong>sse olhar pela personag<strong>em</strong>, a obra Amadis <strong>de</strong><br />

Gaula estabelece-se como uma polifonia radical <strong>em</strong> relação aos padrões comportamentais<br />

recomenda<strong>do</strong>s pela Igreja Católica. Igualmente, assimilan<strong>do</strong> a notorieda<strong>de</strong> que as <strong>novelas</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>cavalaria</strong> assumiram, o imaginário <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> comum medieval manteve vivos, apesar das<br />

injunções clericais, vestígios da mentalida<strong>de</strong> matricêntrica, oriunda das civilizações que<br />

cultuavam a Gran<strong>de</strong> Deusa, <strong>de</strong>fensora <strong>de</strong> preceitos pauta<strong>do</strong>s na razão libertária e não<br />

coercitiva.<br />

4.4 A DEMANDA DO SANTO GRAAL: UMA LUZ NA OPACIDADE<br />

A D<strong>em</strong>anda talvez seja a mais famosa obra arturiana. Aparent<strong>em</strong>ente, as histórias que se<br />

refer<strong>em</strong> ao Rei Artur e seus cavaleiros da Távola Re<strong>do</strong>nda receberam uma gran<strong>de</strong> atenção da<br />

atualida<strong>de</strong> no que respeita aos vários meios <strong>de</strong> divulgação. São histórias muito contadas <strong>em</strong><br />

to<strong>do</strong> o Oci<strong>de</strong>nte através <strong>de</strong> livros infanto-juvenis, livros reescritos, reedições da própria<br />

D<strong>em</strong>anda com tradutores diversos, adaptações para o cin<strong>em</strong>a, adaptações para <strong>de</strong>senhos<br />

anima<strong>do</strong>s, entre outras formas <strong>de</strong> propagação. Além <strong>de</strong> toda a inserção da obra na mídia atual,<br />

vê-se a difusão das figuras lendárias que seus personagens representam: na perfeição <strong>em</strong><br />

forma <strong>de</strong> rei está Artur; na misteriosa imag<strong>em</strong> <strong>do</strong> sábio druida está Merlin; na perfeição <strong>em</strong><br />

forma <strong>de</strong> cavaleiro andante, tanto pela habilida<strong>de</strong> como pela beleza física, está Lancelote; na<br />

fragilida<strong>de</strong> e beleza <strong>de</strong> rainha está Guinevere; na verda<strong>de</strong>ira maga, mistura <strong>de</strong> sacer<strong>do</strong>tisa<br />

druida e bruxa medieval, está Morgana; são apenas alguns ex<strong>em</strong>plos entre os outros<br />

personagens que também se revelam extr<strong>em</strong>amente representativos na atualida<strong>de</strong>, como<br />

Persival, Galaaz, Boorz e Mordred.<br />

É nítida a influência cristã na D<strong>em</strong>anda. Os personagens aparec<strong>em</strong> revesti<strong>do</strong>s <strong>de</strong> uma<br />

religiosida<strong>de</strong> bastante comum ao hom<strong>em</strong> <strong>do</strong> medievo-central. A dissonância que se observa<br />

<strong>em</strong> relação às histórias anteriores à formação da Távola é que as personagens, b<strong>em</strong> como<br />

to<strong>do</strong>s os el<strong>em</strong>entos envolvi<strong>do</strong>s na trama, r<strong>em</strong>ontam às tradições célticas, portanto, pagãs e não<br />

apresentam associação íntima com a cultura católico-cristã. As mulheres cultuavam a uma<br />

<strong>de</strong>usa; Viviane, a Senhora <strong>do</strong> Lago, é uma figura diáfana e ass<strong>em</strong>elha-se a uma fada; é ela<br />

qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>tém a autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conce<strong>de</strong>r a espada extraordinária e <strong>de</strong> recebê-la <strong>de</strong> volta, quan<strong>do</strong><br />

137


da morte <strong>de</strong> Artur. Morgana é segui<strong>do</strong>ra e também sacer<strong>do</strong>tisa <strong>do</strong> culto <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>usa; sua mãe,<br />

Igraine, a rainha Guinevere, assim como todas as damas <strong>de</strong> Camelot professam a religião<br />

<strong>de</strong>sta <strong>de</strong>usa. A imag<strong>em</strong> f<strong>em</strong>inina <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r está claramente exposta e, saben<strong>do</strong>-se da orig<strong>em</strong><br />

celta atribuída a estas histórias, não há como ignorar a ascendência da religião pagã apregoada<br />

pelos Celtas, <strong>em</strong> cuja cultura <strong>de</strong>stinava-se um papel prepon<strong>de</strong>rante à mulher, tanto com<br />

relação à religião popular como à religião fechada, o Druidismo.<br />

Não é, portanto, <strong>de</strong> se admirar que a presença <strong>de</strong> Morgana, por ex<strong>em</strong>plo, nesta edição, seja tão<br />

diminuta. A figura da “fada Morgana”, assim <strong>de</strong>nominada nas outras histórias, é quase<br />

suprimida na D<strong>em</strong>anda. As <strong>novelas</strong> narradas não inclu<strong>em</strong> fatos ocorri<strong>do</strong>s com a aparição <strong>de</strong><br />

Morgana. Parece que sua presença restringiu-se aos contos anteriores à formação da Távola.<br />

Mesmo assim, ela está presente na figura <strong>do</strong> filho Mordred e também <strong>de</strong> seus netos. De certa<br />

forma, a religiosida<strong>de</strong> medieval que reveste a obra parece anular os resquícios da tradição<br />

pagã, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> apenas um espaço maior a alguns seres fantásticos que povoam as <strong>novelas</strong>,<br />

como a Besta Ladra<strong>do</strong>ra. Entretanto, não é possível ignorar a importância dada à orig<strong>em</strong> <strong>de</strong>ste<br />

ser diabólico: a Besta Ladra<strong>do</strong>ra nada mais é <strong>do</strong> que uma mulher que pecou. Esta é uma clara<br />

referência à rejeição <strong>do</strong> sexo f<strong>em</strong>inino como <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>s.<br />

Ao procurar realizar uma comparação entre a ficção e a realida<strong>de</strong>, no que concerne aos<br />

aspectos históricos relativos ao po<strong>de</strong>r da Igreja Católica, esta obra v<strong>em</strong> ser a mais rica<br />

referência a estes fatos. Mesmo estan<strong>do</strong> no universo fictício, ela se ass<strong>em</strong>elha a uma tentativa<br />

panfletária <strong>de</strong> estabelecer (ou reafirmar) o <strong>do</strong>mínio clerical sobre a população laica. Nestes<br />

termos, encontram-se as personagens inteiramente <strong>de</strong>dicadas ao serviço <strong>do</strong> Senhor,<br />

d<strong>em</strong>onstran<strong>do</strong> fé inabalável nos momentos <strong>de</strong> perigo e divulgan<strong>do</strong> os ex<strong>em</strong>plos <strong>de</strong> conduta<br />

virtuosa que <strong>de</strong>veria moldar o hom<strong>em</strong> medieval. Afastam-se, portanto, estas personagens, <strong>do</strong><br />

ambiente folclórico-cultural que <strong>de</strong>u orig<strong>em</strong> às <strong>novelas</strong> antece<strong>de</strong>ntes.<br />

Destaca-se o episódio “Morte <strong>de</strong> Rei Artur”, o único <strong>em</strong> que a personag<strong>em</strong> Morgana é citada.<br />

Sua aparição é bastante reduzida, porém relaciona-se a um momento importante na trama: a<br />

passag<strong>em</strong> <strong>do</strong> Rei. Surg<strong>em</strong> outras personagens f<strong>em</strong>ininas, que também possu<strong>em</strong> aparições<br />

limitadas, mas que representam a marca in<strong>de</strong>lével <strong>do</strong> paganismo na cultura cristã. Embora<br />

providas <strong>de</strong> uma religiosida<strong>de</strong> católica explícita, não ocultam certas características que as<br />

vinculam às impressões recebidas da cultura laica anterior ao Cristianismo. É o caso das<br />

personagens Aglinda, no episódio “A fonte da virg<strong>em</strong>”, a filha <strong>do</strong> Rei <strong>de</strong> Lomblanda, no<br />

138


episódio “O castelo felão” e a <strong>do</strong>nzela solitária, que se transfigura, <strong>de</strong>pois, no d<strong>em</strong>ônio, no<br />

episódio “Tentação <strong>de</strong> Persival”. Estas personagens traz<strong>em</strong> consigo uma dupla referência <strong>de</strong><br />

formação: apresentam traços pagãos <strong>em</strong> certas atitu<strong>de</strong>s e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, revest<strong>em</strong>-se <strong>de</strong><br />

cristanda<strong>de</strong>. Mostram, igualmente, o amálgama realiza<strong>do</strong> pela Igreja no tocante à absorção <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>terminadas tradições populares, com o intuito <strong>de</strong> aproximar-se mais da população e,<br />

conseqüent<strong>em</strong>ente, <strong>do</strong>minar-lhe a conduta moral.<br />

4.4.1 Personag<strong>em</strong> e História: aspectos narrativos, formativos e comportamentais<br />

Diferent<strong>em</strong>ente <strong>de</strong> Urganda, <strong>em</strong> Amadis <strong>de</strong> Gaula, a novela A D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal não<br />

oferece uma personag<strong>em</strong> apenas que contenha as características referentes à figura mística da<br />

bruxa ou feiticeira. Várias são as personagens com tais aspectos, porém as histórias estão<br />

agrupadas <strong>em</strong> <strong>ciclo</strong>s e livros diversos. A escolha das personagens representativas (as <strong>bruxas</strong><br />

ou <strong>feiticeiras</strong> medievais) não se resume à figura <strong>de</strong> Morgana. Serão analisadas as personagens<br />

Morgana, pertencente ao episódio “A morte <strong>de</strong> Rei Artur”; a filha <strong>do</strong> rei <strong>de</strong> Lomblanda, <strong>em</strong><br />

“O castelo felão”; Aglinda <strong>em</strong> “A fonte da virg<strong>em</strong>” e a <strong>do</strong>nzela solitária, no episódio<br />

“Tentação <strong>de</strong> Persival”. Estas personagens compõ<strong>em</strong> um conjunto <strong>de</strong> manifestações<br />

sobrenaturais expostas <strong>de</strong> maneira cristianizada, não <strong>de</strong>scartan<strong>do</strong>, entretanto, as referências<br />

pagãs.<br />

O mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> apresentação <strong>de</strong>sta novela é o que mais se ass<strong>em</strong>elha à tradição oral das lendas. A<br />

presença <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r se oculta por trás da “voz <strong>do</strong> conto”, que por sua vez, assume o papel da<br />

narração. Megale (2003) comenta que, na verda<strong>de</strong>, não há nenhum narra<strong>do</strong>r; o próprio conto<br />

se conta os fatos. Segun<strong>do</strong> o estudioso, a novela é composta por um processo narrativo<br />

organiza<strong>do</strong> <strong>em</strong> episódios entrança<strong>do</strong>s, <strong>em</strong> que as histórias são recontadas por uma “voz”<br />

textualizada, carregada <strong>de</strong> ambigüida<strong>de</strong>: “Ora <strong>de</strong>ixa o conto a falar <strong>de</strong> (...)” (p. 21). O<br />

narra<strong>do</strong>r, tal qual apresenta<strong>do</strong> na concepção literária <strong>de</strong> Genette (1972 apud AGUIAR E<br />

SILVA, 1973), t<strong>em</strong> seu papel monopoliza<strong>do</strong> pela voz fictícia que conta as aventuras. Assim, o<br />

texto aparenta ter vida própria, faz intercalações, interrupções, retomadas e conclusões.<br />

Para se enten<strong>de</strong>r a existência <strong>de</strong>ste fenômeno narrativo, é preciso consi<strong>de</strong>rar, acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, a<br />

época <strong>em</strong> que as <strong>novelas</strong> foram prosificadas e suas várias fontes:<br />

139


140<br />

Por válidas que sejam todas as especulações a respeito <strong>de</strong>ssas frases<br />

articula<strong>do</strong>ras da narrativa – e há opiniões <strong>de</strong> <strong>em</strong>inentes teóricos e críticos <strong>de</strong><br />

literatura -, parece-nos necessário partir da pura e simples observação <strong>do</strong> fato<br />

na época <strong>em</strong> que ocorreu, ou seja, no perío<strong>do</strong> da prosificação <strong>do</strong>s romances<br />

<strong>em</strong> verso, seus textos-fontes, não fontes únicas, b<strong>em</strong> entendi<strong>do</strong>. Esse recurso<br />

às frases articula<strong>do</strong>ras: “Ora diz o conto que...” (...), é o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> se<br />

organizar a narrativa, recurso natural diante <strong>do</strong> fato <strong>de</strong> não ser o texto<br />

criação <strong>de</strong> qu<strong>em</strong> o elabora, e sim uma organização a partir <strong>de</strong> textos<br />

anteriores (MEGALE, 2003, p. 21).<br />

Comparan<strong>do</strong>, então, a forma narrativa peculiar da D<strong>em</strong>anda, como a dispõe Megale na<br />

introdução da referida edição com a classificação <strong>de</strong> Genette, algumas proposições serão<br />

apresentadas. Toman<strong>do</strong> o narra<strong>do</strong>r como o próprio texto ou mesmo como uma voz<br />

textualizada, este se posiciona, da mesma maneira, na exteriorida<strong>de</strong> da narrativa e,<br />

conseqüent<strong>em</strong>ente, distante <strong>do</strong>s fatos diegéticos. Esta característica <strong>de</strong>nota a inserção<br />

heterodiégetica <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r que, contu<strong>do</strong>, não a afasta <strong>de</strong> interferências no <strong>de</strong>curso da<br />

narrativa. A voz textualizada é livre na narração e se coloca ora ausente <strong>do</strong>s fatos, ora<br />

presente, fazen<strong>do</strong> interrupções e comandan<strong>do</strong> a narrativa com toda a liberda<strong>de</strong>.<br />

Embora não se perceba a presença verbo-pessoal na narração, esta não <strong>de</strong>fine a inexistência<br />

da personag<strong>em</strong> “narra<strong>do</strong>r”. O fato <strong>de</strong> a novela mostrar um fenômeno narrativo diferente e<br />

proporcionar material para discussão <strong>de</strong>sta característica, não isenta a obra da narrativida<strong>de</strong><br />

romanesca e, portanto, da presença <strong>de</strong>sta personag<strong>em</strong> que é inerente à narrativa. As<br />

consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> Megale acerca <strong>de</strong>ste aspecto narrativo são válidas, pois <strong>de</strong>stacam as<br />

peculiarida<strong>de</strong>s da forma <strong>de</strong> narrar. Entretanto, compreen<strong>de</strong>-se que, mesmo obe<strong>de</strong>cen<strong>do</strong> a<br />

critérios tão diferentes <strong>em</strong> relação aos focos narrativos mais comuns na historiografia literária,<br />

são visíveis as marcas <strong>de</strong> um personag<strong>em</strong> que “conta a história”, mesmo que esteja inseri<strong>do</strong><br />

na tradição oral <strong>de</strong> “qu<strong>em</strong> conta um conto aumenta um ponto”.<br />

As personagens f<strong>em</strong>ininas caracterizadas como “seres especiais”, pois <strong>do</strong>tadas <strong>de</strong> alguns<br />

talentos <strong>de</strong> ord<strong>em</strong> divina, part<strong>em</strong> da realida<strong>de</strong> existente na obra <strong>de</strong> que não há referência a<br />

<strong>bruxas</strong> ou <strong>feiticeiras</strong>. Há para cada uma das personagens uma única passag<strong>em</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque,<br />

inician<strong>do</strong>-se pela ord<strong>em</strong> <strong>em</strong> que surg<strong>em</strong> na novela. A <strong>do</strong>nzela solitária, protagonista <strong>do</strong><br />

episódio “Tentação <strong>de</strong> Persival” é a primeira que se apresenta, seguin<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> Aglinda, a filha<br />

<strong>do</strong> Rei <strong>de</strong> Lomblanda e, por último, Morgana.


A narrativa menciona apenas a suposta orig<strong>em</strong> grega da <strong>do</strong>nzela, filha <strong>de</strong> um rei <strong>de</strong> Atenas e<br />

prometida a um impera<strong>do</strong>r <strong>de</strong> Roma. Sua alta linhag<strong>em</strong> aliada a um discurso melódico e<br />

pie<strong>do</strong>so faz com que o coração <strong>de</strong> Persival seja toma<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma paixão violenta. O cavaleiro<br />

sente seus hábitos mudar<strong>em</strong> e seus <strong>de</strong>sejos inclinar<strong>em</strong>-se à <strong>do</strong>nzela <strong>de</strong>samparada. Entretanto,<br />

este sentimento se lhe configura penoso e não eleva<strong>do</strong>; as ações provindas <strong>de</strong>ste súbito amor<br />

parec<strong>em</strong> movidas por mão maligna: “E ele respon<strong>de</strong>u assim como lhe o d<strong>em</strong>o ensinava a<br />

cumprir seu <strong>de</strong>sejo e prazer (...)” (ADSG, p. 85).<br />

É a mulher elogiada pela sua beleza física, comparada (e superior) à Rainha Guinevere e à<br />

Rainha Isolda. Persival, ao encontrá-la sozinha numa rica tenda próxima a uma praia,<br />

permanece sob o impacto <strong>do</strong> <strong>de</strong>slumbramento diante da sua beleza. A <strong>do</strong>nzela (s<strong>em</strong> nome) lhe<br />

narra como viera parar naquela praia e ele, por sua vez, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> tomá-la por esposa, sentin<strong>do</strong>-a<br />

<strong>de</strong>sprotegida, mas ela recusa. Persival procura to<strong>do</strong>s os meios para convencê-la a aceitar o seu<br />

amor, prometen<strong>do</strong> transformá-la numa rainha <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> reino. Ela se recusa a entregar-se,<br />

insistin<strong>do</strong> <strong>em</strong> manter sua honra, o que ainda mais instiga a paixão <strong>do</strong> cavaleiro. Neste instante<br />

da narrativa, ocorre uma intervenção sobrenatural que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia os fatos existentes por trás<br />

<strong>do</strong>s sentimentos que atormentavam Persival. Um gran<strong>de</strong> estron<strong>do</strong> ensur<strong>de</strong>ce<strong>do</strong>r e uma voz os<br />

assusta, fazen<strong>do</strong>-o perceber o engano <strong>de</strong> seus sentimentos, motiva<strong>do</strong>s apenas pela beleza da<br />

<strong>do</strong>nzela, que acaba se transfiguran<strong>do</strong> numa criatura horrenda e a i<strong>de</strong>ntificar-se como o próprio<br />

d<strong>em</strong>ônio.<br />

A situação conflitiva <strong>de</strong>ste episódio assim se apresenta. Des<strong>de</strong> o início, a beleza inigualável<br />

da <strong>do</strong>nzela só não supera a beleza divina <strong>de</strong> Maria, mas ela é in<strong>de</strong>fesa, rica, <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> real e,<br />

ao mesmo t<strong>em</strong>po, necessitada <strong>de</strong> ajuda. A <strong>de</strong>scrição física da <strong>do</strong>nzela exalta a mulher naquilo<br />

que corromperia o hom<strong>em</strong>, <strong>do</strong>minan<strong>do</strong>-o pelo apelo sexual. Persival torna-se cego <strong>de</strong> paixão e<br />

engana-se pela imag<strong>em</strong> divina que a beleza representa e dificulta sua reação. De que mo<strong>do</strong><br />

po<strong>de</strong>ria agir <strong>em</strong> situações assim inesperadas e nunca vivenciadas? O leitor também não<br />

<strong>de</strong>scobre imediatamente que se tratava <strong>de</strong> uma cilada <strong>do</strong> d<strong>em</strong>ônio. A narrativa lhe indica<br />

algumas pistas, por meio <strong>do</strong>s comentários <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r que, no início, parece enaltecer a figura<br />

da jov<strong>em</strong>. Com a paixão repentina <strong>de</strong> Persival, passa a <strong>de</strong>negrir a imag<strong>em</strong> da <strong>do</strong>nzela, na<br />

medida <strong>em</strong> que ele tenta realizar seus <strong>de</strong>sejos, notan<strong>do</strong> claramente a diferença <strong>de</strong> tom<br />

narrativo:<br />

141<br />

(...) e viu estar num leito, o mais formoso e mais rico que alguma vez viu,<br />

uma <strong>do</strong>nzela que <strong>do</strong>rmia; e era tão formosa, que lhe pareceu mais formosa


142<br />

que a rainha Genevra e que a rainha Isolda, e que a formosa filha <strong>do</strong> rei<br />

Peles; porque lhe pareceu que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o mun<strong>do</strong> foi feito, não houve<br />

mulher tão formosa, n<strong>em</strong> a vira, <strong>em</strong>bora nada fosse compara<strong>do</strong> com aquela<br />

Virg<strong>em</strong> que foi virg<strong>em</strong> e mãe e Rainha das rainhas (ADSG, p. 83).<br />

Este trecho mostra claramente a menção à beleza da <strong>do</strong>nzela, as comparações com outras<br />

damas da época e a comparação à divinda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Maria. Entretanto, no <strong>de</strong>correr da narrativa, as<br />

referências à beleza já se aproximam da materialida<strong>de</strong>: “E <strong>de</strong>pois que observou muito t<strong>em</strong>po<br />

pela admiração que teve <strong>de</strong> sua beleza, afastou-se um pouco, to<strong>do</strong> espanta<strong>do</strong>, porque b<strong>em</strong><br />

pareceu a ele que se todas as belezas que houve <strong>em</strong> mulheres peca<strong>do</strong>ras foss<strong>em</strong> reunidas<br />

numa só, não seria tão formosa como esta” (ADSG, p. 83). Enten<strong>de</strong>-se que as mulheres<br />

peca<strong>do</strong>ras eram belíssimas e representavam a fragilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s sentimentos humanos e,<br />

principalmente, <strong>do</strong>s mundanos.<br />

Ao comparar a beleza da <strong>do</strong>nzela a outras rainhas e até mesmo à Maria, o cavaleiro ainda agia<br />

por conta própria; ao compará-la a mulheres peca<strong>do</strong>ras, que tanto podiam ser prostitutas<br />

quanto <strong>feiticeiras</strong>, Persival já sente que o maligno estava agin<strong>do</strong> sobre suas sensações. E esta<br />

centelha, este pequeno indício é guia<strong>do</strong> pela mulher da tenda. A <strong>do</strong>nzela, mesmo ainda<br />

a<strong>do</strong>rmecida, era capaz <strong>de</strong> <strong>do</strong>minar o cavaleiro, simplesmente, através da força magnética <strong>de</strong><br />

sua constituição física. Somente após a intervenção divina, <strong>em</strong> prol da salvação <strong>de</strong> Persival, é<br />

que a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da <strong>do</strong>nzela se revela: “(...) viu que a <strong>do</strong>nzela se tornou <strong>em</strong> forma <strong>de</strong> d<strong>em</strong>o tão<br />

feio e tão espantoso que não há no mun<strong>do</strong> ninguém tão valente que o visse que não houvesse<br />

<strong>de</strong> ter gran<strong>de</strong> me<strong>do</strong>. Daí aconteceu a Persival que teve tão gran<strong>de</strong> me<strong>do</strong> que não soube o que<br />

fizesse (...)” (ADSG, p. 87). Sob estes parâmetros é que a personag<strong>em</strong> po<strong>de</strong> ser comparada à<br />

figura diabólica da bruxa medieval.<br />

Torna-se evi<strong>de</strong>nte também a inocência <strong>de</strong> Persival diante da beleza da <strong>do</strong>nzela, el<strong>em</strong>ento que<br />

confere ao personag<strong>em</strong> a concessão da intervenção divina e sobrenatural como medida <strong>de</strong><br />

salvação para um cavaleiro casto que se encontra <strong>em</strong> perigo e que não tinha culpa <strong>de</strong> sentir-se<br />

tenta<strong>do</strong>. Estava “enfeitiça<strong>do</strong>” pela beleza e os seus sentimentos originavam-se da sedução<br />

f<strong>em</strong>inina, instigan<strong>do</strong>-o a cometer o peca<strong>do</strong> da carne. Ven<strong>do</strong>-se <strong>em</strong> perdição e enreda<strong>do</strong> pelo<br />

d<strong>em</strong>ônio recorre ao Pai, <strong>em</strong> <strong>de</strong>sespero, e acaba sen<strong>do</strong> salvo pela “voz” divina.<br />

A aparição <strong>do</strong> d<strong>em</strong>ônio transfigura<strong>do</strong> <strong>em</strong> beleza f<strong>em</strong>inina não é a causa <strong>do</strong> t<strong>em</strong>or <strong>em</strong> Persival.<br />

Na verda<strong>de</strong>, ele t<strong>em</strong>e muito mais o próprio corpo, vulnerável à beleza f<strong>em</strong>inina. Na Ida<strong>de</strong>


Média, a beleza era <strong>de</strong>tentora <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res sobre-humanos nos homens, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> tanto ser<br />

atribuída ao divino (Maria como mo<strong>de</strong>lo), quanto ao diabólico, ten<strong>do</strong> Eva como ex<strong>em</strong>plo. As<br />

mulheres situavam-se nestes extr<strong>em</strong>os: virtuosas ou maléficas. Essa mentalida<strong>de</strong> masculina<br />

revela-se na D<strong>em</strong>anda, neste episódio, por meio da “voz” que alerta o cavaleiro e na figura <strong>de</strong><br />

Persival, vítima da beleza, portanto, <strong>do</strong> d<strong>em</strong>ônio. A escolha da beleza para tentar o cavaleiro,<br />

certamente não foi aleatória.<br />

Diferent<strong>em</strong>ente da personag<strong>em</strong> Urganda, esta <strong>do</strong>nzela se enquadra nos mol<strong>de</strong>s históricos da<br />

bruxa ou feiticeira medieval, apresenta<strong>do</strong>s por Nogueira (2004). A <strong>do</strong>nzela não é feiticeira,<br />

porque <strong>em</strong> nenhum aspecto as características específicas da feitiçaria se confirmam <strong>em</strong> seus<br />

atos e, tampouco, bruxa. Segun<strong>do</strong> o autor, a bruxa se torna concubina <strong>do</strong> diabo por uma<br />

conspiração, diferent<strong>em</strong>ente da feiticeira que não se liga a nenhum mestre. É possível,<br />

contu<strong>do</strong>, vislumbrar uma s<strong>em</strong>elhança, nos aspectos mágicos, com a figura mental da bruxa<br />

medieval. Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> que sua existência esteve vinculada à crença popular <strong>de</strong> um ser<br />

sobrenatural, constituí<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong> matrimônio com seres diabólicos, a mulherbruxa<br />

seria capaz <strong>de</strong> tornar-se bela e logo <strong>em</strong> seguida, transformar-se num ser maravilhoso e<br />

horren<strong>do</strong>.<br />

A transfiguração da <strong>do</strong>nzela <strong>em</strong> d<strong>em</strong>ônio inscreve a personag<strong>em</strong> no ambiente pagão atribuí<strong>do</strong><br />

às <strong>bruxas</strong>, mancomunadas com d<strong>em</strong>ônios varia<strong>do</strong>s, comanda<strong>do</strong>s por Lúcifer. O ato mágico<br />

ocorre na narrativa s<strong>em</strong> o auxílio <strong>de</strong> utensílios materiais, ela se transforma no momento <strong>em</strong><br />

que Persival é alerta<strong>do</strong> pela voz divina. Tanto a aparição d<strong>em</strong>oníaca da <strong>do</strong>nzela quanto a<br />

intervenção sobre-humana da “voz” que salva o cavaleiro são manifestações fantásticas. A<br />

primeira leva o estigma <strong>do</strong> paganismo e a segunda a roupag<strong>em</strong> <strong>do</strong> cristianismo. Importante é<br />

observar as influências pagãs que moldaram o espírito das <strong>bruxas</strong> na Ida<strong>de</strong> Média: o d<strong>em</strong>ônio<br />

transfigura-se <strong>em</strong> mulher bela e sedutora e tenta subverter um cavaleiro cristão ao peca<strong>do</strong>,<br />

simbolizan<strong>do</strong> a dualida<strong>de</strong> católica representada pelo Mal (a mulher, a bruxa, o d<strong>em</strong>ônio) e<br />

pelo B<strong>em</strong> (Persival, cavaleiro cristão, a “voz” divina). A luta <strong>de</strong>ssas forças antagônicas é<br />

legitimada pela vitória <strong>do</strong> cavaleiro que, avisa<strong>do</strong> pela entida<strong>de</strong> divina, pe<strong>de</strong> misericórdia a<br />

Deus por ter peca<strong>do</strong> <strong>em</strong> pensamento. Não vence o Mal e o diabo não pô<strong>de</strong> finalizar seu<br />

intento; como cristão e representante <strong>do</strong> B<strong>em</strong>, Persival recobra sua consciência <strong>de</strong> cavaleiro e<br />

recebe o perdão <strong>do</strong> Altíssimo:<br />

143<br />

E <strong>de</strong>pois acor<strong>do</strong>u e olhou ao re<strong>do</strong>r <strong>de</strong> si e viu a <strong>do</strong>nzela rir, porque vira que<br />

tivera me<strong>do</strong>. E quan<strong>do</strong> a viu rir, espantou-se e logo enten<strong>de</strong>u que era o d<strong>em</strong>o


144<br />

que lhe aparecera <strong>em</strong> s<strong>em</strong>elhança <strong>de</strong> <strong>do</strong>nzela para o enganar e o meter <strong>em</strong><br />

peca<strong>do</strong> mortal. Então ergueu a mão e persignou-se e disse:<br />

- Ai, Pai Jesus Cristo, Pai verda<strong>de</strong>iro!, não me <strong>de</strong>ixes enganar n<strong>em</strong> entrar na<br />

morte eterna; e se este é o d<strong>em</strong>o que me quer tirar <strong>de</strong> teu serviço e separar <strong>de</strong><br />

tua companhia, mostra-mo. (...) Então, viu a tenda e quanto nela havia voar<br />

pelo ar, e atrás <strong>de</strong>la uma escuridão, como se to<strong>do</strong>s os <strong>do</strong> inferno estivess<strong>em</strong><br />

nela; e ficou tão espanta<strong>do</strong> disto que viu que não soube que <strong>de</strong>cisão tomar. E<br />

olhou ao re<strong>do</strong>r <strong>de</strong> si e não viu outra coisa senão suas armas e seu cavalo,<br />

como se tu<strong>do</strong> <strong>de</strong> antes fosse um sonho (ADSG, p. 86-87).<br />

A s<strong>em</strong>elhança da <strong>do</strong>nzela com a figura da bruxa diabólica torna-se evi<strong>de</strong>nte. Num paralelo da<br />

ficção com a realida<strong>de</strong>, forçosa é a constatação <strong>de</strong> que a religiosida<strong>de</strong> imposta pela Igreja está<br />

impressa nas páginas <strong>de</strong> A D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal. Persival representa o hom<strong>em</strong> que <strong>de</strong>ve<br />

manter-se casto, a serviço <strong>de</strong> Deus e da Igreja e, acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ve estar vigilante sobre seu<br />

próprio corpo. A tentação vivida por ele d<strong>em</strong>onstra as preocupações <strong>de</strong> ord<strong>em</strong> moral,<br />

<strong>de</strong>terminadas e reguladas pela Igreja. A figura f<strong>em</strong>inina representada pela <strong>do</strong>nzela, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que se mostra uma personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> importância pela atuação sobre Persival, é<br />

relegada aos mun<strong>do</strong>s inferiores quan<strong>do</strong> comparada à realida<strong>de</strong> refletida na ficção <strong>do</strong>s<br />

episódios da D<strong>em</strong>anda: <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> beleza real passa a beleza funesta <strong>de</strong> mulher peca<strong>do</strong>ra para,<br />

<strong>de</strong>pois, se transformar <strong>em</strong> ser maligno, horren<strong>do</strong> e pertencente às entranhas infernais.<br />

Deste mo<strong>do</strong>, n<strong>em</strong> mulher n<strong>em</strong> bruxa, a <strong>do</strong>nzela representa o próprio Mal e sua aparência é<br />

mera convenção <strong>do</strong>s meios mais fáceis <strong>de</strong> influência. Apesar <strong>de</strong> toda a carga negativa, não se<br />

po<strong>de</strong> negar-lhe a inteligência <strong>de</strong> saber agir sobre os pontos vulneráveis <strong>do</strong>s homens<br />

comanda<strong>do</strong>s pela Igreja: para o me<strong>do</strong> <strong>do</strong> corpo, dá-se a mulher belíssima; para o me<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

espírito, dá-se o d<strong>em</strong>ônio mais horripilante. Sen<strong>do</strong> o próprio d<strong>em</strong>ônio encarna<strong>do</strong> <strong>em</strong> mulher,<br />

configura-se a ligação existente no imaginário <strong>do</strong>s povos <strong>do</strong> medievo-central, como<br />

construções paralelas e circundantes na mentalida<strong>de</strong> humana <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os t<strong>em</strong>pos.<br />

Em contraposição, há duas personagens que representam manifestações sobrenaturais s<strong>em</strong>, no<br />

entanto, ass<strong>em</strong>elhar<strong>em</strong>-se a <strong>bruxas</strong> ou <strong>feiticeiras</strong>. Trata-se <strong>de</strong> Aglinda, <strong>do</strong> episódio “A fonte<br />

da virg<strong>em</strong>” e da filha <strong>do</strong> Rei <strong>de</strong> Lomblanda, <strong>de</strong> “O Castelo felão”. Ambas possu<strong>em</strong> uma<br />

participação mais limitada na trama <strong>do</strong>s episódios. Quanto ao papel que <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penham,<br />

percebe-se certa redução das ações; entretanto, <strong>de</strong>ve-se admitir que <strong>em</strong> “A fonte da virg<strong>em</strong>” a<br />

participação f<strong>em</strong>inina é ampla, pois o episódio é repleto <strong>de</strong> mulheres e a trama gira <strong>em</strong> torno<br />

<strong>de</strong> suas ações. Aglinda encontra-se inserida numa narrativa enquadrada, pois sua história<br />

refere-se à orig<strong>em</strong> da fonte encantada. Erec, o cavaleiro que protagoniza este episódio,


encontra a fonte e cai paralisa<strong>do</strong> por seu encanto. A história da fonte r<strong>em</strong>onta a épocas<br />

anteriores à procura <strong>do</strong> Cálice Sagra<strong>do</strong>. A referência t<strong>em</strong>poral, neste caso, está explícita<br />

quan<strong>do</strong> o narra<strong>do</strong>r inicia a história da fonte, nesse episódio: “A verda<strong>de</strong>ira estória nos diz que<br />

esta fonte on<strong>de</strong> aconteceu assim a Erec era chamada fonte da virg<strong>em</strong>, e isto foi por uma<br />

formosa aventura <strong>de</strong> uma virg<strong>em</strong>, que houve no t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> rei Uter Pandragão” (ADSG, p. 92).<br />

O narra<strong>do</strong>r faz menção ao pai <strong>do</strong> Rei Artur, quan<strong>do</strong> reinava naquela região, reiteran<strong>do</strong> a idéia<br />

<strong>de</strong> que a fonte era <strong>do</strong>minada pelo encanto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há muito t<strong>em</strong>po.<br />

Aglinda era filha <strong>do</strong> rei Nascor (um bom rei) e tinha um irmão. To<strong>do</strong>s da família eram<br />

cristãos e t<strong>em</strong>entes a Deus. Descrita como criatura <strong>de</strong> extr<strong>em</strong>a beleza, a notícia <strong>de</strong> sua<br />

formosura chegava a lugares distantes, motivan<strong>do</strong> pessoas a viajar<strong>em</strong> léguas para admirar<br />

seus encantos juvenis. To<strong>do</strong>s os que podiam se vangloriar <strong>de</strong> ter vislumbra<strong>do</strong> a beleza da filha<br />

<strong>de</strong> Nascor, chamavam-na <strong>de</strong> “angélica”. Sua tez rel<strong>em</strong>brava a ternura <strong>do</strong>s céus e a brandura<br />

das faces <strong>do</strong>s anjos e sua personalida<strong>de</strong> era a personificação da bonda<strong>de</strong>. Aos olhos <strong>de</strong> Deus<br />

era ainda mais bela, pois praticava a carida<strong>de</strong> s<strong>em</strong> mostrar aos outros suas obras. Embora<br />

educada por mestres romanos, o texto indica seus conhecimentos provin<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Cristo Divino.<br />

Aglinda reunia, assim, um conjunto <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s da mulher virtuosa: sua beleza exterior era<br />

um reflexo das qualida<strong>de</strong>s morais e cristãs confirmadas <strong>em</strong> suas atitu<strong>de</strong>s e na pureza <strong>de</strong> sua<br />

alma e corpo:<br />

145<br />

A filha era a mais formosa criatura <strong>de</strong> toda a Grã-Bretanha, e tão gran<strong>de</strong> era<br />

a fama <strong>de</strong> sua beleza perto e longe que a vinham ver; como era formosa e<br />

pela gran<strong>de</strong> beleza que tinha a chamavam to<strong>do</strong>s angélica; (...) E verda<strong>de</strong> era<br />

que ela se entendia muito b<strong>em</strong> à maravilha <strong>de</strong> divinda<strong>de</strong>, mais por graça e<br />

por outorga <strong>de</strong> Nosso Senhor <strong>do</strong> que por ensinamento <strong>de</strong> seus mestres; (...)<br />

De tal mo<strong>do</strong> pôs Deus seu espírito na <strong>do</strong>nzela que os mestres, que lhe<br />

ensinavam, estavam espanta<strong>do</strong>s com a inteligência que achavam (ADSG, p.<br />

93).<br />

Compreen<strong>de</strong>-se que a personag<strong>em</strong>, sob a perspectiva narrativa, é qualificada por adjetivos<br />

reserva<strong>do</strong>s à virtuosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma santa. O fato <strong>de</strong> se i<strong>de</strong>ntificar à imag<strong>em</strong> da Virg<strong>em</strong> Maria<br />

justifica-se a atribuição <strong>de</strong> um nome próprio na trama; fato este que não ocorre com as<br />

personagens <strong>do</strong> conto <strong>de</strong> Persival e <strong>do</strong> Castelo Felão. Sua participação no episódio é <strong>de</strong> muita<br />

relevância, pois seus atos anteriores <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>iam os fatos vivencia<strong>do</strong>s pelo cavaleiro<br />

protagonista. Não é, portanto, surpreen<strong>de</strong>nte a referência nominal à personag<strong>em</strong> possui<strong>do</strong>ra <strong>de</strong><br />

qualida<strong>de</strong>s divinizadas: “Que vos direi? Aquela <strong>do</strong>nzela foi a segunda Catarina <strong>em</strong> ciência e<br />

<strong>em</strong> bonda<strong>de</strong>, aquela cuja vida <strong>de</strong>ve ser contada, pois po<strong>de</strong>ria ser ex<strong>em</strong>plo e espelho a todas as<br />

boas pessoas que <strong>de</strong>la ouviss<strong>em</strong> falar” (ADSG, p. 93). Reforçan<strong>do</strong> ainda mais esta


s<strong>em</strong>elhança, a personag<strong>em</strong> vive uma situação martirizante, porque sofre <strong>de</strong>sgraças <strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>corrência <strong>do</strong>s atos pratica<strong>do</strong>s pelo seu irmão Nabor, que por ela sentiu amor incestuoso. A<br />

cena que se segue justifica a afirmação.<br />

Estan<strong>do</strong> Nabor perdi<strong>do</strong> na floresta e encontran<strong>do</strong>-se próximo à fonte, apareceu-lhe o d<strong>em</strong>ônio,<br />

<strong>em</strong> forma <strong>de</strong> um senhor formoso e sisu<strong>do</strong>, aparentan<strong>do</strong> pesar e sofrimento. No diálogo, sente<br />

pieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> e <strong>de</strong>seja ajudá-lo <strong>de</strong> alguma maneira, ouvin<strong>do</strong>-lhe os amargores da vida. O<br />

d<strong>em</strong>ônio, perceben<strong>do</strong>-o praticamente preso <strong>em</strong> sua re<strong>de</strong>, começou a sua história dizen<strong>do</strong> que<br />

há muito tivera uma filha com uma dama que amava e que esta filha tinha si<strong>do</strong> tomada pela<br />

rainha. A rainha, mãe <strong>de</strong> Nabor, tinha também da<strong>do</strong> à luz uma filha, porém a tinha<br />

assassina<strong>do</strong> <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a um sonho horrível <strong>em</strong> que a própria filha lhe tirava a vida. Deste mo<strong>do</strong>,<br />

com pavor <strong>de</strong> ser punida pelo rei, a rainha toma-lhe a filha recém-nascida e apresenta-a ao rei<br />

como se fosse sua. Como recompensa aos pais verda<strong>de</strong>iros da criança, a rainha prometera que<br />

s<strong>em</strong>pre a teriam quan<strong>do</strong> a pediss<strong>em</strong>.<br />

Quan<strong>do</strong> o casal pediu à rainha que lhes <strong>de</strong>volvesse a filha, esta foi negada. A <strong>do</strong>nzela,<br />

conhece<strong>do</strong>ra da sua situação, negava o verda<strong>de</strong>iro pai e o <strong>de</strong>sprezava. Nabor, imediatamente,<br />

reconheceu os personagens envolvi<strong>do</strong>s na história como a sua própria família e <strong>de</strong>u-se conta<br />

da verda<strong>de</strong>ira i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Aglinda, consi<strong>de</strong>rada, até então, sua irmã. Entretanto, enreda<strong>do</strong><br />

pela narrativa <strong>do</strong> d<strong>em</strong>ônio, começava a mudar seus sentimentos <strong>em</strong> relação à mãe e à irmã. O<br />

d<strong>em</strong>ônio, astutamente, pe<strong>de</strong>-lhe um conselho e Nabor <strong>de</strong>clara que seria difícil provar as<br />

mentiras da rainha to<strong>do</strong> este t<strong>em</strong>po. O d<strong>em</strong>ônio oferece-lhe uma troca <strong>de</strong> favores. Po<strong>de</strong>n<strong>do</strong><br />

livrá-lo daquela floresta, que há dias estava perdi<strong>do</strong>, pe<strong>de</strong>, <strong>em</strong> recompensa, que leve a <strong>do</strong>nzela<br />

para um passeio ao luar, junto à fonte. Sente-se tenta<strong>do</strong> a aceitar, pois o d<strong>em</strong>o aponta a<br />

impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> encontrar a saída da <strong>de</strong>nsa floresta s<strong>em</strong> sua ajuda. Sozinho, com fome e<br />

frio, Nabor é novamente visita<strong>do</strong> pelo d<strong>em</strong>ônio. Desta vez, muito sofri<strong>do</strong>, aceita a proposta <strong>do</strong><br />

hom<strong>em</strong> que o salva da floresta e o leva ao castelo <strong>do</strong>s pais. Cumprin<strong>do</strong> o combina<strong>do</strong>, leva sua<br />

irmã (que agora julgava não mais lhe ter linhag<strong>em</strong> alguma) ao local da fonte, acompanha<strong>do</strong>s<br />

<strong>de</strong> um mestre cavalariço.<br />

Em local apropria<strong>do</strong>, Nabor mata o mestre cavalariço, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> Aglinda <strong>em</strong> extr<strong>em</strong>o<br />

<strong>de</strong>sespero. Reverten<strong>do</strong>-se seu caráter e leva<strong>do</strong> pela luxúria, diz a irmã que não há linhag<strong>em</strong><br />

nenhuma entre eles e que a <strong>de</strong>seja como mulher. Recusan<strong>do</strong>-se à tamanha injúria, Aglinda, <strong>em</strong><br />

vão pe<strong>de</strong> misericórdia ao irmão, por não enten<strong>de</strong>r absolutamente o que se passava com ele.<br />

146


Sentin<strong>do</strong> que per<strong>de</strong>ria sua pureza, faz uma oração extr<strong>em</strong>ada ao Senhor para que a livre<br />

daquela <strong>de</strong>sgraça. Neste momento, os Céus a socorr<strong>em</strong> e Nabor cai morto por terra. Ven<strong>do</strong> o<br />

irmão morto, sente gran<strong>de</strong> pesar e questiona a razão <strong>de</strong> tamanha <strong>de</strong>sventura. Uma voz divina<br />

revela a ação <strong>do</strong> d<strong>em</strong>ônio que intentava roubar-lhe a coroa das virgens.<br />

Sabe<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> quanto houvera com o irmão, aparece o pai e ela lhe narra os<br />

acontecimentos. Estan<strong>do</strong> aos pés da fonte, o rei constata que a fonte, morada <strong>do</strong> d<strong>em</strong>ônio, é<br />

amaldiçoada. Assumin<strong>do</strong> uma figura mística, Aglinda amaldiçoa o local, palco <strong>do</strong>s<br />

acontecimentos horríveis que culminaram com a morte <strong>do</strong> irmão, que havia si<strong>do</strong>,<br />

irr<strong>em</strong>ediavelmente, arrebata<strong>do</strong> pelo d<strong>em</strong>ônio. Suas palavras configuram a bonda<strong>de</strong> que traz<br />

consigo e caracterizam a cristianização <strong>de</strong> suas ações, d<strong>em</strong>onstran<strong>do</strong> o po<strong>de</strong>r sobrenatural que<br />

lhe advém <strong>do</strong> espírito:<br />

147<br />

- Ainda – disse a <strong>do</strong>nzela – será daqui para frente pior, porque jamais<br />

cavaleiro virá aqui, se não for virg<strong>em</strong>, que não perca o po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> corpo e <strong>de</strong><br />

to<strong>do</strong>s os m<strong>em</strong>bros, enquanto aqui estiver; n<strong>em</strong> daqui jamais se moverá, se<br />

por mulher daqui nunca sair. Isto será <strong>em</strong> l<strong>em</strong>brança <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> pelo qual<br />

meu irmão foi morto, e durará esta l<strong>em</strong>brança <strong>de</strong> mim e <strong>de</strong> meu irmão até<br />

que o bom cavaleiro venha, que dará cabo às aventuras <strong>do</strong> reino <strong>de</strong> Logres; e<br />

<strong>de</strong> mim, <strong>de</strong> hoje <strong>em</strong> diante, será esta fonte chamada, enquanto o mun<strong>do</strong><br />

durar, a fonte da virg<strong>em</strong>. (ADSG, p. 100)<br />

O encantamento feito por Aglinda não se enquadra nas características dantes apresentadas<br />

como próprias <strong>de</strong> uma santida<strong>de</strong>. Apesar <strong>de</strong> mostrar-se bon<strong>do</strong>sa e não sentir ódio pelo que o<br />

irmão fizera, preten<strong>de</strong> castigar to<strong>do</strong>s os cavaleiros que não se mantiver<strong>em</strong> puros. Agin<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta<br />

forma, transmite uma manifestação mágica. Somente seres pertencentes ao universo fantástico<br />

eram passíveis <strong>de</strong> lançar maldições ou encantamentos. Logo, Aglinda assume uma posição<br />

próxima às atitu<strong>de</strong>s pagãs das mulheres, usan<strong>do</strong> seu po<strong>de</strong>r para obter algo, seja provin<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

B<strong>em</strong> ou <strong>do</strong> Mal. Tal comportamento é análogo às <strong>feiticeiras</strong>. Embora a personag<strong>em</strong> não<br />

utilize meios materiais para realizar o encantamento, suas ações percorr<strong>em</strong> décadas e apenas<br />

serão anuladas quan<strong>do</strong> o “bom cavaleiro” vier. Assim, a s<strong>em</strong>elhança com as <strong>feiticeiras</strong> <strong>de</strong>vese<br />

à crença <strong>de</strong> que estas po<strong>de</strong>riam ser bon<strong>do</strong>sas ou maléficas; enquanto que as <strong>bruxas</strong> não<br />

gozaram <strong>de</strong>sta possibilida<strong>de</strong>, por representar<strong>em</strong> a personificação <strong>do</strong> Mal.<br />

Do mesmo mo<strong>do</strong>, o episódio “Castelo Felão” apresenta uma personag<strong>em</strong> porta<strong>do</strong>ra <strong>de</strong><br />

qualida<strong>de</strong>s sobre-humanas: a filha <strong>do</strong> Rei <strong>de</strong> Lomblanda. Este episódio narra a chegada <strong>de</strong><br />

Galaaz, Meraugis e Heitor ao castelo chama<strong>do</strong> Felão. Avisa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> que aquele lugar era<br />

amaldiçoa<strong>do</strong> e que qu<strong>em</strong> lá entrasse não cuidava sair vivo, os cavaleiros que buscavam


aventuras e maravilhas encontram no castelo a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver mais uma aventura: “-<br />

Donzela – disse Galaaz -, não há jeito <strong>de</strong> voltarmos até que saibamos o que é, porque por<br />

outra coisa não saímos <strong>de</strong> nossas terras, senão para vermos as maravilhas <strong>do</strong> reino <strong>de</strong> Logres”<br />

(ADSG, p. 106).<br />

O narra<strong>do</strong>r, então, suspen<strong>de</strong> a narrativa sobre os três cavaleiros e passa a contar a história <strong>do</strong><br />

castelo e a orig<strong>em</strong> <strong>de</strong> tão malgra<strong>do</strong> nome. Ao retomar a narrativa, revela-se o mo<strong>do</strong> como<br />

foram engana<strong>do</strong>s e trancafia<strong>do</strong>s na torre <strong>do</strong> castelo. A fé inabalável <strong>de</strong> Galaaz se mostra frente<br />

ao me<strong>do</strong> <strong>de</strong> seus companheiros, que t<strong>em</strong>iam nunca saír<strong>em</strong> daquele lugar; Galaaz, no entanto,<br />

afirma, s<strong>em</strong> <strong>de</strong>ixar-se abater, que Deus havia <strong>de</strong> tirá-los dali:<br />

148<br />

- Ai, Deus, como aqui há gran<strong>de</strong> traição. Nunca daqui sair<strong>em</strong>os, se não nos<br />

tira daqui qu<strong>em</strong> nos meteu.<br />

- Não vos espanteis, disse Galaaz, sabei que se t<strong>em</strong>os servi<strong>do</strong> nesta d<strong>em</strong>anda<br />

aquele por cujo amor nela entramos, não nos esquecerá, antes nos tirará<br />

daqui, malgra<strong>do</strong> <strong>de</strong> quantos neste castelo estão, porque é o direito pegureiro<br />

que to<strong>do</strong> perigo livrará suas ovelhas (ADSG, p. 110).<br />

Durante a noite, Galaaz permanece acorda<strong>do</strong> e recebe uma mensag<strong>em</strong> divina que o alerta<br />

sobre o que está para acontecer no castelo e das providências que <strong>de</strong>verá tomar. Deus, <strong>em</strong> sua<br />

misericórdia, os tiraria <strong>do</strong> castelo no dia seguinte, mas a sua incumbência era a <strong>de</strong> salvar as<br />

<strong>do</strong>nzelas escravizadas e matar to<strong>do</strong>s os pagãos resi<strong>de</strong>ntes no castelo:<br />

- Galaaz, não te espantes e fica seguro <strong>de</strong> que amanhã estarás livre, porque o<br />

Alto Mestre recebeu tua oração. Mas quan<strong>do</strong> estiveres livre, <strong>de</strong>strói este<br />

castelo e quantos nele estão, exceto as <strong>do</strong>nzelas presas, a estas livra, porque<br />

não quer Deus que sofram a <strong>de</strong>sventura que até aqui sofreram (ADSG, p.<br />

111).<br />

Nesta passag<strong>em</strong>, torna-se clara a menção ao aniquilamento <strong>do</strong> paganismo <strong>em</strong>penha<strong>do</strong> pela<br />

Igreja. O castelo era povoa<strong>do</strong> por pagãos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a época <strong>de</strong> Tróia e o B<strong>em</strong> <strong>de</strong>veria combater a<br />

vilania praticada naquele lugar contra os cristãos. Assim é que a chegada <strong>do</strong> cavaleiro recebe<br />

auxílio da mão divina para agir sobre os infiéis. Movi<strong>do</strong>s por acontecimentos extraordinários,<br />

os cavaleiros são liberta<strong>do</strong>s com a <strong>de</strong>rrubada da torre on<strong>de</strong> se encontravam e sa<strong>em</strong> ilesos e<br />

prontos a cumprir as or<strong>de</strong>ns recebidas <strong>do</strong> Altíssimo. Começa, então, uma carnificina <strong>em</strong> que<br />

os mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> castelo são, impie<strong>do</strong>samente, assassina<strong>do</strong>s. Apenas as <strong>do</strong>nzelas são<br />

poupadas.


Galaaz socorre as <strong>do</strong>nzelas que já o esperavam com a notícia <strong>de</strong> que a filha <strong>do</strong> rei <strong>de</strong><br />

Lomblanda a<strong>do</strong>ecera e, no momento <strong>de</strong> sua morte, profetizara a chegada <strong>do</strong> cavaleiro eleito:<br />

149<br />

Donzelas que estais aqui na prisão não vos <strong>de</strong>sconforteis, mas ficai alegres,<br />

porque vos trago boas novas: <strong>do</strong>m Galaaz, o muito bom cavaleiro, o que há<br />

<strong>de</strong> dar cabo às aventuras <strong>do</strong> Graal, v<strong>em</strong> aqui, e assim que ele vier, sereis<br />

livres <strong>de</strong>sta prisão <strong>em</strong> que estais, e este castelo ficará por isso <strong>de</strong>struí<strong>do</strong> e<br />

<strong>de</strong>spovoa<strong>do</strong> para s<strong>em</strong>pre (ADSG, p. 114-115).<br />

Neste trecho, revela-se a força extra-sensorial f<strong>em</strong>inina agin<strong>do</strong> <strong>em</strong> prol <strong>de</strong> suas s<strong>em</strong>elhantes.<br />

A personag<strong>em</strong> não se <strong>de</strong>staca no papel na trama principal <strong>do</strong> episódio; na verda<strong>de</strong>, ela v<strong>em</strong> a<br />

fazer parte <strong>de</strong> um momento <strong>de</strong> júbilo entre as <strong>do</strong>nzelas que são salvas por Galaaz. Contu<strong>do</strong>, o<br />

seu po<strong>de</strong>r sobrenatural é que realiza uma profecia. A terceira visão, <strong>de</strong>nominativa daqueles<br />

que são capazes <strong>de</strong> vislumbrar o futuro, esteve menos associada ao sexo masculino <strong>do</strong> que ao<br />

f<strong>em</strong>inino. É por isso que não é surpreen<strong>de</strong>nte que o divino acabe sen<strong>do</strong> manifesta<strong>do</strong> por mãos<br />

<strong>de</strong> mulheres.<br />

A personag<strong>em</strong> não recebe sequer um nome e sua aparição serve como espetáculo para o<br />

advento da chegada <strong>de</strong> Galaaz e da <strong>de</strong>struição <strong>do</strong> castelo maldito. É perceptível que sua figura<br />

existe apenas para exaltar os feitos <strong>do</strong> cavaleiro eleito. Ainda assim, não há como negar os<br />

vestígios <strong>do</strong>s atributos f<strong>em</strong>ininos liga<strong>do</strong>s ao controle das forças sobrenaturais, tradição<br />

herdada <strong>do</strong>s povos antigos e pagãos. Igualmente, as tentativas da Igreja <strong>em</strong> anular to<strong>do</strong> e<br />

qualquer rastro <strong>de</strong>ssas tradições pod<strong>em</strong> ser entrevistas neste episódio. Da mesma forma, o<br />

castelo se torna um meio utiliza<strong>do</strong> pelo Clero para mostrar que to<strong>do</strong>s <strong>de</strong>veriam se converter ao<br />

Cristianismo, se quisess<strong>em</strong> manter-se vivos e dignos da misericórdia divina:<br />

Pela manhã, partiram to<strong>do</strong>s os três e andaram muitas jornadas s<strong>em</strong> aventura<br />

achar que <strong>de</strong> contar seja e fizeram saber pela terra que os pagãos <strong>de</strong> castelo<br />

Felão estavam to<strong>do</strong>s mortos e o castelo <strong>de</strong>struí<strong>do</strong>. Estas novas foram logo<br />

sabidas por toda a terra e iam to<strong>do</strong>s lá para ver se era verda<strong>de</strong>. E quan<strong>do</strong><br />

viram a maravilha que acontecera com o castelo e a torre, os que não tinham<br />

fé passaram logo a ter e fizeram-se batizar e disseram que b<strong>em</strong> fizera Deus<br />

sua vingança (ADSG, p. 115-116).<br />

Retoman<strong>do</strong> a questão ligada à feitiçaria ou bruxaria, não se <strong>de</strong>ve afirmar que a filha <strong>do</strong> rei <strong>de</strong><br />

Lomblanda representa uma imag<strong>em</strong> associada a estes seres. No entanto, representa o<br />

sobrenatural manipula<strong>do</strong> por mãos f<strong>em</strong>ininas que n<strong>em</strong> mesmo os maiores esforços <strong>do</strong> Clero<br />

medieval conseguiria apagar. A personag<strong>em</strong> possui a s<strong>em</strong>ente imortal que <strong>de</strong>u vida às <strong>bruxas</strong><br />

e <strong>feiticeiras</strong> na medievalida<strong>de</strong> posterior aos contos da Távola Re<strong>do</strong>nda. Dá-se isto ao fato <strong>de</strong>


que, r<strong>em</strong>ontan<strong>do</strong> aos t<strong>em</strong>pos anteriores à prosificação da D<strong>em</strong>anda, os seres f<strong>em</strong>ininos<br />

capazes <strong>de</strong> realizar profecias não eram n<strong>em</strong> <strong>bruxas</strong> n<strong>em</strong> <strong>feiticeiras</strong>; eram apenas mulheres<br />

exercen<strong>do</strong> suas habilida<strong>de</strong>s naturais.<br />

A quarta personag<strong>em</strong> é Morgana, conhecida pelas cenas anteriores; a irmã <strong>de</strong> Artur é chamada<br />

<strong>de</strong> “Morgana, a Fada”. Aparece no episódio “Morte <strong>de</strong> rei Artur” <strong>em</strong> apenas um único<br />

momento, quan<strong>do</strong> próximo está o falecimento <strong>do</strong> rei. A situação na trama é a seguinte: Artur<br />

está junto <strong>do</strong> cavaleiro Gilfrete e <strong>de</strong>spe<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>le dizen<strong>do</strong> que nunca mais o verá. A narrativa<br />

<strong>de</strong>ixa a impressão <strong>de</strong> que Artur sabia que seu fim se aproximava, pois or<strong>de</strong>na a Gilfrete que<br />

<strong>de</strong>volva Excalibur ao lago.<br />

Quan<strong>do</strong> o cavaleiro, enfim, cumpre a ord<strong>em</strong> <strong>do</strong> rei, vê espanta<strong>do</strong> que uma mão surge <strong>do</strong> lago<br />

e agarra a espada, brandin<strong>do</strong>-a no ar e <strong>de</strong>pois afundan<strong>do</strong> com ela. A visão maravilhosa da mão<br />

que recebe Excalibur <strong>de</strong> volta é uma referência direta às lendas bretãs, <strong>de</strong> orig<strong>em</strong> celta. A mão<br />

vista por Gilfrete é <strong>de</strong> Viviane, a Senhora <strong>do</strong> Lago. Embora não haja menção a nomes ou à<br />

personag<strong>em</strong> <strong>em</strong> si, a história é bastante conhecida. Neste momento, Artur vê um <strong>ciclo</strong> ser<br />

cumpri<strong>do</strong> e pressente a própria morte. Ao se <strong>de</strong>spedir <strong>de</strong> Gilfrete, pouco t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>pois, o rei<br />

<strong>de</strong>ixa-o e vai à praia. Gilfrete fica a observá-lo <strong>de</strong> longe, ainda muito senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> ter que se<br />

separar <strong>de</strong> seu senhor.<br />

Como num prenúncio ao que vai acontecer, a natureza se manifesta: o t<strong>em</strong>po muda e uma<br />

chuva torrencial se inicia. Buscan<strong>do</strong> se abrigar da chuva, Gilfrete se protege sob uma árvore,<br />

porém numa colina por on<strong>de</strong> podia, ainda, vislumbrar Artur à beira da praia. De repente, uma<br />

barqueta se aproxima repleta <strong>de</strong> mulheres e, entre elas, encontrava-se Morgana, a fada, irmã<br />

<strong>de</strong> Artur. A narrativa não dispõe <strong>de</strong> nenhuma <strong>de</strong>scrição sobre a personag<strong>em</strong>. Morgana dirigese<br />

ao rei junto às outras damas e roga-lhe que Artur entre no barco com elas. Após muito<br />

pedir, o rei ace<strong>de</strong> e entra na <strong>em</strong>barcação. Em seguida, as mulheres faz<strong>em</strong> entrar o cavalo e<br />

todas as armas <strong>de</strong> Artur. Segun<strong>do</strong> o texto, é a última vez que alguém vê Artur com vida.<br />

Gilfrete correu para a praia, na intenção <strong>de</strong> acompanhar o rei, mas ao chegar ao local, a<br />

barqueta já havia se afasta<strong>do</strong> e pô<strong>de</strong>, ainda, ver Artur com as mulheres e distinguir a figura <strong>de</strong><br />

Morgana entre elas. São estas as únicas referências à Morgana. Compreen<strong>de</strong>-se que a morte<br />

<strong>do</strong> rei era um episódio <strong>de</strong> extr<strong>em</strong>a importância para a novela e que a completa anulação <strong>de</strong><br />

uma personag<strong>em</strong> tão afamada como Morgana não po<strong>de</strong>ria ocorrer s<strong>em</strong> conseqüências sérias<br />

150


para a tradição popular. É por isso que este momento mágico (pois a passag<strong>em</strong> <strong>de</strong> Artur fica<br />

suspensa <strong>em</strong> mistério, uma vez que seu corpo não é encontra<strong>do</strong>) talvez tenha exigi<strong>do</strong> a<br />

retomada <strong>de</strong> uma personag<strong>em</strong> que está intimamente ligada ao rei.<br />

A narrativa não mostra o que houve com Artur; como ele morreu ou quan<strong>do</strong> morreu. Gilfrete,<br />

ao encontrar, posteriormente, o túmulo <strong>do</strong> rei, faz o zela<strong>do</strong>r abrir-lhe a lápi<strong>de</strong> e nada encontra<br />

a não ser o elmo <strong>de</strong> Artur. Intriga<strong>do</strong> com a ausência <strong>do</strong> corpo, indaga ao hom<strong>em</strong> e este<br />

respon<strong>de</strong> que o rei fora encerra<strong>do</strong> ali, pois as mulheres o trouxeram. A menção às mulheres<br />

indica a presença <strong>de</strong> Morgana entre elas, porém seu nome não é cita<strong>do</strong>. É percebi<strong>do</strong>, pois, o<br />

mistério que envolve a morte <strong>do</strong> rei e a presença <strong>de</strong> Morgana neste mistério não surpreen<strong>de</strong>.<br />

Assim como a presença da dama <strong>do</strong> lago, para receber Excalibur <strong>de</strong> volta, Morgana também<br />

aparece como que a confirmar os rastros <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong>s pela tradição celta das lendas bretãs.<br />

A referência ao seu nome como a “fada” não significa que a personag<strong>em</strong> assuma a roupag<strong>em</strong><br />

das <strong>bruxas</strong> ou <strong>feiticeiras</strong> medievais. S<strong>em</strong>elhante à filha <strong>do</strong> rei <strong>de</strong> Lomblanda, Morgana é<br />

apenas uma mulher que exerce suas habilida<strong>de</strong>s naturais. Resgatan<strong>do</strong> um pouco <strong>do</strong>s costumes<br />

celtas, claramente enxerga<strong>do</strong>s nas <strong>novelas</strong> anteriores à formação da Távola Re<strong>do</strong>nda, as<br />

mulheres gozavam <strong>de</strong> certa autonomia e eram b<strong>em</strong> vistas pela comunida<strong>de</strong> que habitavam.<br />

Estavam, muitas vezes, à frente <strong>do</strong>s rituais religiosos e representavam a Deusa. Portanto, se a<br />

Igreja não pô<strong>de</strong> aniquilar por completo a existência <strong>de</strong>stes costumes, repassa<strong>do</strong>s através da<br />

tradição oral <strong>de</strong> suas lendas, teve por b<strong>em</strong> moldá-los aos <strong>do</strong>gmas cristãos <strong>de</strong> forma que não<br />

interferiss<strong>em</strong> na <strong>do</strong>minação da mentalida<strong>de</strong> medieval. Deste mo<strong>do</strong>, enten<strong>de</strong>-se a presença <strong>de</strong><br />

Morgana neste episódio, juntamente com a presença <strong>de</strong> Viviane (representada por uma parte<br />

<strong>de</strong> seu braço), apenas como uma referência às origens pagãs que, assim dispostas, não<br />

perturbam a mensag<strong>em</strong> cristã divulgada pela D<strong>em</strong>anda.<br />

Quanto à construção da personag<strong>em</strong>, resvala-se na questão da autoria que, da mesma forma<br />

como se operou com Amadis <strong>de</strong> Gaula, v<strong>em</strong> a ser questão insolúvel. S<strong>em</strong> um autor<br />

consagra<strong>do</strong>, a obra é uma compilação <strong>de</strong> lendas bretãs pagãs que recebeu a escrita <strong>de</strong> vários<br />

autores, <strong>em</strong> épocas diferentes. As <strong>novelas</strong> <strong>de</strong>sta edição foram selecionadas da segunda<br />

prosificação e foram revestidas <strong>de</strong> uma religiosida<strong>de</strong> cristã prepon<strong>de</strong>rante. O senti<strong>do</strong> busca<strong>do</strong><br />

para a <strong>cavalaria</strong> andante estava <strong>de</strong>sregra<strong>do</strong> e necessitava <strong>de</strong> um resgate. Somente uma<br />

autorida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria conce<strong>de</strong>r ao cavaleiro, novamente, a reputação ilibada que um dia lhe fora<br />

própria. Assim é que A D<strong>em</strong>anda resgata a imag<strong>em</strong> <strong>de</strong>ste cavaleiro andante, da côrte <strong>de</strong> Artur,<br />

151


que busca o senti<strong>do</strong> da vida através <strong>de</strong> aventuras e maravilhas que lhe nobilit<strong>em</strong> o caráter<br />

para, posteriormente, ser digno <strong>do</strong> Paraíso celestial. É para isso que abre mão <strong>do</strong>s <strong>de</strong>leites<br />

terrenos.<br />

Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a classificação proposta por Forster (1963 apud AGUIAR E SILVA, 1973),<br />

po<strong>de</strong>-se concluir que todas as personagens analisadas até então são planas. Suas<br />

personalida<strong>de</strong>s são presumíveis; não apresentam modificações íntimas no <strong>de</strong>correr da<br />

narração. Po<strong>de</strong>r-se-ia dizer que a personag<strong>em</strong> <strong>do</strong> conto <strong>de</strong> Persival é a única que traz alguma<br />

diferença. A <strong>do</strong>nzela apresenta-se como o verda<strong>de</strong>iro antagonista <strong>do</strong> cavaleiro, entretanto,<br />

suas ações acabam sen<strong>do</strong> <strong>de</strong>dutíveis quan<strong>do</strong> se percebe a verda<strong>de</strong>ira i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da<br />

personag<strong>em</strong>. As outras três também não passam <strong>de</strong> personagens secundárias, não evolutivas<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> texto. Suas aparições são mais importantes ao nível comparativo histórico-literário<br />

<strong>do</strong> que propriamente narrativo. Como toda personag<strong>em</strong>, as secundárias também revelam sua<br />

notorieda<strong>de</strong> através das ações <strong>de</strong> outras personagens. Assim é que Aglinda, a filha <strong>do</strong> rei <strong>de</strong><br />

Lomblanda e Morgana representam um ponto na gran<strong>de</strong> teia <strong>do</strong> teci<strong>do</strong> textual.<br />

Já a <strong>do</strong>nzela <strong>do</strong> conto <strong>de</strong> Persival, atentan<strong>do</strong> para estas características narrativas, po<strong>de</strong>ria ser<br />

situada como uma personag<strong>em</strong> central, uma vez que divi<strong>de</strong> a cena com o cavaleiro, quase que<br />

<strong>em</strong> igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> posições. O que a rebaixa, entretanto, é a presumibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas ações e<br />

reações. Fican<strong>do</strong>, talvez, num estágio entre o protagonista e o antagonista, ou ainda entre o<br />

b<strong>em</strong> e o mal, a personag<strong>em</strong> só vai mostrar sua real inclinação ao final da novela, quan<strong>do</strong> se<br />

revela o próprio d<strong>em</strong>ônio. De qualquer maneira, a personag<strong>em</strong> estabelece uma ligação entre o<br />

principal e o inferior.<br />

Observan<strong>do</strong> o universo que abarca a noção <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> e ficção, po<strong>de</strong>-se encontrar nas<br />

personagens <strong>de</strong> A D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> proposições. Des<strong>de</strong> o início<br />

<strong>de</strong>ste trabalho foi salientada a importância da História como referência da inspiração literária<br />

<strong>do</strong>s escritores medievais. Ora, este não é um mero fato a ser constata<strong>do</strong> e sim um aspecto que<br />

muito diz a respeito das personagens. Quan<strong>do</strong> Candi<strong>do</strong> (1985) consi<strong>de</strong>ra a verossimilhança<br />

como um resulta<strong>do</strong> da interação entre leitor e texto, não há como ignorar ou menosprezar o<br />

papel da História na literatura medieval.<br />

Deste mo<strong>do</strong>, o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> produzi<strong>do</strong> pelas <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> é bastante conheci<strong>do</strong>,<br />

levan<strong>do</strong> teóricos a apontar<strong>em</strong> essa literatura como indicativa e ex<strong>em</strong>plificativa <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s<br />

152


concernentes à vida diária e comum <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> <strong>do</strong> medievo. Esta i<strong>de</strong>ntificação, segun<strong>do</strong> o<br />

estudioso, v<strong>em</strong> da s<strong>em</strong>elhança que existe entre os fatos fictícios e a realida<strong>de</strong>. Assim, a obra<br />

agora <strong>em</strong> foco po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada uma representação <strong>do</strong>s conflitos interiores vivi<strong>do</strong>s pelo<br />

hom<strong>em</strong> medieval. Saben<strong>do</strong> ser uma obra <strong>de</strong> ficção, não há como apontá-la como uma<br />

<strong>de</strong>scrição da realida<strong>de</strong>, porém <strong>de</strong>staca-se a s<strong>em</strong>elhança retratável através da literatura, o que<br />

v<strong>em</strong> a reforçar a idéia sugerida por Candi<strong>do</strong> acerca da verossimilhança.<br />

Reconhecen<strong>do</strong>, pois, a relação intrínseca entre pessoa e personag<strong>em</strong>, assumin<strong>do</strong> a existência<br />

<strong>do</strong> para<strong>do</strong>xo na proposição <strong>de</strong> que a personag<strong>em</strong> é um “ser fictício” e, ao mesmo t<strong>em</strong>po,<br />

compreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> que estes <strong>do</strong>is fatores são os sustentáculos da verossimilhança, há uma<br />

i<strong>de</strong>ntificação com a história manipulada pelas mentes <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> Clero. Não <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

la<strong>do</strong> as implicações referentes à concepção <strong>de</strong> mulher na Ida<strong>de</strong> Média e seu papel social, b<strong>em</strong><br />

como a noção <strong>de</strong> existência (real ou mental) das <strong>bruxas</strong>, essas personagens são encontradas<br />

mergulhadas numa religiosida<strong>de</strong> moralizante que buscava, acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, o controle sobre os<br />

próprios senti<strong>do</strong>s.<br />

Ao vislumbrar a personag<strong>em</strong> <strong>do</strong> episódio “A tentação <strong>de</strong> Persival”, a <strong>do</strong>nzela belíssima que se<br />

transforma <strong>em</strong> d<strong>em</strong>ônio horren<strong>do</strong>, percebe-se a nítida mensag<strong>em</strong> aos homens <strong>de</strong> b<strong>em</strong>: a<br />

beleza f<strong>em</strong>inina é um engo<strong>do</strong>; é um caminho para a perdição. Esta referência torna-se<br />

extr<strong>em</strong>amente verossímil, pois a realida<strong>de</strong> histórica acerca da misoginia medieval é bastante<br />

conhecida. As mulheres foram, realmente, <strong>de</strong>scritas, vistas e tratadas como seres naturalmente<br />

inclina<strong>do</strong>s para o Mal. A literatura não ignora e n<strong>em</strong> oculta estes fatos na D<strong>em</strong>anda. A<br />

s<strong>em</strong>elhança com a vida real também está presente na figura <strong>de</strong> Aglinda: ela é a própria<br />

imag<strong>em</strong> da virg<strong>em</strong> santa ao ser <strong>de</strong>scrita como bela externa e internamente. Suas atitu<strong>de</strong>s<br />

pod<strong>em</strong> não encontrar um ex<strong>em</strong>plo idêntico na realida<strong>de</strong> histórica, mas certamente apontam<br />

para o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> mulher que a Igreja propagava como i<strong>de</strong>al. Ainda assim a personag<strong>em</strong><br />

reflete influências pagãs ao pespegar o encantamento à fonte; entretanto, po<strong>de</strong>-se vislumbrar o<br />

amálgama das crenças cristãs com as pagãs ao se notar a causa e a finalida<strong>de</strong> da maldição à<br />

fonte: Aglinda é pagã ao lançar o encantamento e é cristã ao fazê-lo como forma <strong>de</strong> combate<br />

ao d<strong>em</strong>ônio, suposto mora<strong>do</strong>r da fonte.<br />

A filha <strong>do</strong> rei <strong>de</strong> Lomblanda, que profetiza a vinda <strong>do</strong> cavaleiro Galaaz, como salva<strong>do</strong>r das<br />

virgens <strong>do</strong> castelo Felão, também se revela imagética na questão sobre a verossimilhança.<br />

Apesar <strong>de</strong> poucas referências no conto, ela é aprisionada, a<strong>do</strong>ece e, quan<strong>do</strong> sente a<br />

153


aproximação da morte (condição propícia para o contato com o sobrenatural), faz a profecia<br />

da libertação <strong>de</strong> suas colegas prisioneiras. A fragilida<strong>de</strong> diante da morte capacita à predição,<br />

imanente ao espírito da mulher, como herança da tradição pagã. A relevância atribuída a<br />

Galaaz, como o cavaleiro escolhi<strong>do</strong>, o único realmente puro <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s da Távola configura a<br />

similarida<strong>de</strong> bíblica. Na narrativa, Galaaz possui s<strong>em</strong>elhanças <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong> e missão com Cristo<br />

e a moça moribunda po<strong>de</strong> ser interpretada como um veículo <strong>de</strong> comunicação que anuncia a<br />

chegada <strong>do</strong> eleito. Contu<strong>do</strong>, não se <strong>de</strong>scarta a idéia implícita da mulher s<strong>em</strong>pre envolvida <strong>em</strong><br />

eventos extra-sensoriais.<br />

As s<strong>em</strong>elhanças com a realida<strong>de</strong> repousam sobre o fato <strong>de</strong> A D<strong>em</strong>anda enquadrar-se numa<br />

leitura popularesca, <strong>de</strong> amplo alcance, para diss<strong>em</strong>inar os <strong>do</strong>gmas cristãos. Apesar da<br />

diminuta aparição da princesa que profetiza a vinda <strong>de</strong> Galaaz ao castelo Felão, há que se<br />

admitir que mesmo se a Igreja pu<strong>de</strong>sse não se absteria das maravilhas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> extraterreno,<br />

noções cuja orig<strong>em</strong> r<strong>em</strong>ontavam aos t<strong>em</strong>pos <strong>do</strong>s <strong>de</strong>uses múltiplos. Deste mo<strong>do</strong>, a solução era<br />

cristianizar a forma como a esfera sobrenatural <strong>de</strong>veria agir sobre o povo; no entanto, há laços<br />

que n<strong>em</strong> mesmo a Igreja pô<strong>de</strong> <strong>de</strong>satar: a mulher, apesar <strong>de</strong> toda a aniquilação à sua<br />

importância continuou presente e atuante. Neste episódio, essa situação típica medieval<br />

transparece no fato <strong>de</strong> a princesa realizar uma predição verda<strong>de</strong>ira (pois Galaaz realmente<br />

chega ao castelo e liberta as <strong>do</strong>nzelas) e, igualmente, <strong>de</strong> não receber créditos por isso. Sua<br />

inserção na novela é mínima, o interesse por sua “pessoa” é minúsculo; ela não t<strong>em</strong> nome,<br />

não t<strong>em</strong> história, é referida sob um nome masculino (<strong>de</strong> seu pai) e viera para o castelo como<br />

todas as outras prisioneiras. Isto d<strong>em</strong>onstra, claramente, o interesse <strong>do</strong>s escritores <strong>de</strong>sta<br />

prosificação <strong>em</strong> não enaltecer a figura f<strong>em</strong>inina e sim exaltar os feitos <strong>de</strong> Galaaz, que apesar<br />

<strong>de</strong> sangrentos, foram dita<strong>do</strong>s pelo Divino.<br />

Na mesma linha <strong>de</strong> pensamento e observação está a personag<strong>em</strong> Morgana, <strong>do</strong> episódio<br />

“Morte <strong>de</strong> rei Artur”. Sua referência na novela é ainda mais indicativa da busca engajada da<br />

Igreja <strong>em</strong> anular os apelos folclórico-pagãos existentes nas lendas celtas, que originaram as<br />

<strong>novelas</strong> <strong>do</strong> <strong>ciclo</strong> <strong>arturiano</strong>. Queren<strong>do</strong> aproveitar-se da tamanha notorieda<strong>de</strong> que estas <strong>novelas</strong><br />

alcançaram, o Clero não po<strong>de</strong>ria per<strong>de</strong>r a chance <strong>de</strong> entrar no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> imaginário popular e<br />

inserir seus <strong>do</strong>gmas através da literatura. Era esta uma maneira simples e eficiente <strong>de</strong><br />

conquistar o povo e trazê-lo para o interior da Igreja. Por isso, a personag<strong>em</strong> Morgana é tão<br />

apagada nesta D<strong>em</strong>anda. A proximida<strong>de</strong> com a realida<strong>de</strong> v<strong>em</strong> a se instaurar na tentativa <strong>de</strong><br />

invalidar os po<strong>de</strong>res da personag<strong>em</strong>, simplesmente, não lhes dan<strong>do</strong> a <strong>de</strong>vida atenção. São<br />

154


aspectos aborda<strong>do</strong>s pelos episódios que encontram, facilmente, ecos na realida<strong>de</strong> histórica<br />

vivenciada pelo hom<strong>em</strong> comum <strong>do</strong> medievo-central, principalmente. As afirmações <strong>de</strong><br />

Cândi<strong>do</strong> sobre a verossimilhança como efeito da relação íntima entre personag<strong>em</strong> e pessoa<br />

são, perfeitamente, cabíveis na observação <strong>de</strong>stas personagens.<br />

Outro fator interessante levanta<strong>do</strong> por Candi<strong>do</strong> (1985) é a respeito da fragmentação <strong>do</strong><br />

conhecimento que uma pessoa t<strong>em</strong> <strong>de</strong> outra e isto se aplica aos escritores, quan<strong>do</strong> criam suas<br />

personagens. Ao hom<strong>em</strong>, é uma característica inerente ao ser; ao escritor, é uma atitu<strong>de</strong><br />

assumida racionalmente. Assim, o(s) autor(es) que reescreveu as personagens da D<strong>em</strong>anda<br />

esteve livre para criar sobre as ações <strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>las. Mesmo ten<strong>do</strong> o conhecimento<br />

fragmentário e, <strong>de</strong>sta forma, revelan<strong>do</strong> a <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> da percepção espiritual, o autor, por<br />

estar ciente <strong>de</strong> sua condição cria<strong>do</strong>ra, po<strong>de</strong> lançar sobre uma ou outra personag<strong>em</strong> a roupag<strong>em</strong><br />

que lhe parecer conveniente. Seu saber acerca da profundida<strong>de</strong> espiritual da personag<strong>em</strong> é<br />

controla<strong>do</strong> por ele mesmo.<br />

Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> que as quatro personagens selecionadas da D<strong>em</strong>anda conservam os aspectos<br />

das <strong>bruxas</strong> ou <strong>feiticeiras</strong> medievais, <strong>em</strong>bora não se encontran<strong>do</strong> no mesmo nível da história<br />

como herança da Ida<strong>de</strong> Média, enten<strong>de</strong>-se que se ajustam na fragmentalida<strong>de</strong> da percepção<br />

espiritual que Cândi<strong>do</strong> sugere. As menções às <strong>bruxas</strong>, na obra e nos registros históricos, são<br />

oriundas da visão <strong>de</strong> um terceiro, significan<strong>do</strong> que não exist<strong>em</strong> referências a estes seres tal<br />

como se concebiam. Naturalmente, os autores legavam às personagens impressões colhidas <strong>do</strong><br />

conhecimento assist<strong>em</strong>ático que <strong>de</strong>tinham <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> ao re<strong>do</strong>r. Destarte, todas as noções<br />

percebidas acerca <strong>de</strong>ssas personagens são provindas <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r. As personagens também não<br />

falam <strong>de</strong> si, não expon<strong>do</strong> seus pensamentos, logo, as marcas <strong>de</strong>ixadas não reflet<strong>em</strong> as noções<br />

<strong>do</strong> la<strong>do</strong> sobrenatural e sim <strong>do</strong> la<strong>do</strong> humano, masculino e católico-cristão.<br />

Observan<strong>do</strong>, neste momento, a construção da personag<strong>em</strong> e o seu processo <strong>de</strong> criação,<br />

Candi<strong>do</strong> (1985) dispõe a personag<strong>em</strong> como criada ou inventada, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

várias fontes inspirativas. O mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r da D<strong>em</strong>anda parece constituir fonte<br />

inesgotável <strong>de</strong> estímulo à criação literária, tamanha é a s<strong>em</strong>elhança com a realida<strong>de</strong> histórica.<br />

Entretanto, o estudioso apregoa que mesmo que um autor utilize imagens reais para construir<br />

suas personagens, ou ainda produzir alterações <strong>em</strong> personagens já existentes, estará agin<strong>do</strong><br />

por conta própria, ou seja, terá, afinal, opera<strong>do</strong> <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com suas convicções.<br />

155


Não há conhecimento acerca da autoria da obra. Sen<strong>do</strong> assim, não há como falar sobre as<br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> um autor, principalmente quan<strong>do</strong> há a probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> haver<br />

múltiplos autores. Portanto, analisan<strong>do</strong> as informações referentes à obra e à realida<strong>de</strong> histórica<br />

que a envolve e alian<strong>do</strong> estes aspectos como fatores da análise literária, conclui-se que o<br />

contexto histórico e cultural foi o gran<strong>de</strong> inspira<strong>do</strong>r na criação (ou recriação) das personagens<br />

da D<strong>em</strong>anda.<br />

No r<strong>em</strong>ate das asserções <strong>de</strong> Candi<strong>do</strong> (1985), a observação da verossimilhança está atrelada à<br />

coerência interna <strong>de</strong> um texto. Para que apresente as possibilida<strong>de</strong>s reais <strong>do</strong> sentimento <strong>de</strong><br />

verda<strong>de</strong>, o cria<strong>do</strong>r <strong>de</strong> um texto <strong>de</strong>ve ter a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dispor idéias, fatos, personagens e<br />

outros el<strong>em</strong>entos narrativos <strong>de</strong> forma coerente na construção textual. Isto significa que não<br />

basta analisar uma história escrita através <strong>de</strong> sua s<strong>em</strong>elhança com a realida<strong>de</strong>; é, também,<br />

preciso que seus el<strong>em</strong>entos estejam <strong>em</strong> consonância perfeita. Deste mo<strong>do</strong>, a personag<strong>em</strong><br />

como “ser” <strong>de</strong> extr<strong>em</strong>a importância no texto, só assume seu verda<strong>de</strong>iro papel verossímil se<br />

mantiver estreitas relações com os outros el<strong>em</strong>entos da narrativa. A verossimilhança <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>,<br />

assim, da organização coerente <strong>do</strong> texto.<br />

Examinan<strong>do</strong> as personagens escolhidas da D<strong>em</strong>anda, como um conjunto varia<strong>do</strong>, mas<br />

concordante <strong>em</strong> aspectos liga<strong>do</strong>s à bruxaria ou feitiçaria medieval, é passível <strong>de</strong> comparação a<br />

realida<strong>de</strong> histórica com a narrativa da novela. A história, servin<strong>do</strong> <strong>de</strong> base inspira<strong>do</strong>ra<br />

provinda <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> clerical <strong>do</strong> medievo, está fort<strong>em</strong>ente d<strong>em</strong>onstrada nestes textos; e a<br />

maneira como foram seleciona<strong>do</strong>s, prosifica<strong>do</strong>s e escritos está, igualmente, consoante aos<br />

costumes literários vigentes. Logo, a coerência interna <strong>do</strong>s textos é perceptível para o leitor.<br />

Justifica-se, assim, o papel das <strong>novelas</strong> cavaleirescas como fonte não <strong>de</strong> fatos, mas <strong>de</strong><br />

informações da vida cotidiana da Ida<strong>de</strong> Média.<br />

Rosenfeld (1985), por sua vez, <strong>de</strong>staca a distinção entre o mun<strong>do</strong> real e o fictício. A<br />

verossimilhança, tal qual apresentada por Candi<strong>do</strong>, é percebida por ele <strong>de</strong> maneira diversa. O<br />

senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> por ele apregoa<strong>do</strong> e veicula<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> alguns critérios <strong>de</strong> organização,<br />

pela obra literária ficcional é, para Rosenfeld aplicável a acontecimentos reais e não à ficção.<br />

Assim, o autor expressa que a ficção busca muito mais a autenticida<strong>de</strong> ou sincerida<strong>de</strong> <strong>do</strong> autor<br />

<strong>do</strong> que se preocupa com o que, <strong>de</strong> fato, aconteceu. Consi<strong>de</strong>rada um mo<strong>de</strong>lo para a criação<br />

literária, a vida real configura-se importante da<strong>do</strong> inspira<strong>do</strong>r para que um autor represente-a<br />

156


através da ficção. Assim sen<strong>do</strong>, a verossimilhança v<strong>em</strong> a ser apenas uma representação <strong>do</strong><br />

real e não uma s<strong>em</strong>elhança com este.<br />

Rosenfeld dispõe, então, uma distância consi<strong>de</strong>rável entre a esfera real e a fictícia. Assume a<br />

inter-relação existente entre ambas, porém as distingue por características próprias e, por<br />

vezes, dissonantes. Para o autor, critérios <strong>de</strong> veracida<strong>de</strong> cognoscitiva não <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser aplica<strong>do</strong>s<br />

a enuncia<strong>do</strong>s ficcionais, ass<strong>em</strong>elhar-se-iam à falsida<strong>de</strong>; e a ficção, apesar <strong>de</strong> irreal, não é<br />

falsa. Admitin<strong>do</strong>, portanto, a linha <strong>de</strong> pensamento sobre a personag<strong>em</strong> que Rosenfeld<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, outros caminhos pod<strong>em</strong> ser trilha<strong>do</strong>s pelas personagens da D<strong>em</strong>anda. Invenção da<br />

mente cria<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> um autor, ou mesmo <strong>de</strong> autores, elas faz<strong>em</strong> parte <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> objectual e<br />

constitu<strong>em</strong>-se <strong>em</strong> objectualida<strong>de</strong>s, cuja função maior repousa na representação fictícia <strong>do</strong> real.<br />

A partir <strong>de</strong>ssas consi<strong>de</strong>rações, é possível observar que a fonte inspira<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> meio histórico<br />

para a literatura medieval oferece os meios pelos quais os escritores se ocupam na tarefa <strong>de</strong><br />

representar uma situação <strong>de</strong> vida real, seja esta verídica ou inventada. De qualquer maneira,<br />

compreen<strong>de</strong>-se que existe uma s<strong>em</strong>elhança <strong>do</strong> fictício com o real; isto é fato. E assim torna-se<br />

difícil discernir metodicamente os liames que un<strong>em</strong> ou <strong>de</strong>sun<strong>em</strong> a verossimilhança da<br />

representação <strong>do</strong> real, imanência da literatura. Tanto é verda<strong>de</strong> que os próprios estudiosos<br />

brasileiros admit<strong>em</strong> que é tênue a linha separatista entre universo real e ficcional, e ainda<br />

assum<strong>em</strong> suas inter<strong>de</strong>pendências. As diferenças <strong>de</strong> pensamento resid<strong>em</strong> no foco <strong>de</strong> suas<br />

análises quanto a estes <strong>do</strong>is universos permea<strong>do</strong>s por pessoas e personagens: Cândi<strong>do</strong> <strong>de</strong>talha<br />

as relações intrínsecas entre pessoa/personag<strong>em</strong> e realida<strong>de</strong>/ficção e os “nós” que as prend<strong>em</strong>;<br />

Rosenfeld, por sua vez, ressalta os aspectos que as distingu<strong>em</strong>.<br />

Levan<strong>do</strong> <strong>em</strong> conta que as personagens escolhidas da D<strong>em</strong>anda, com exceção <strong>de</strong> Morgana, não<br />

são, propriamente, <strong>bruxas</strong> ou <strong>feiticeiras</strong>, as relações pessoa/personag<strong>em</strong> aproximam-se mais<br />

da distinção <strong>do</strong> que da s<strong>em</strong>elhança. Foram <strong>de</strong>staca<strong>do</strong>s, nestas personagens aspectos<br />

relaciona<strong>do</strong>s ao mun<strong>do</strong> espiritual-sobrenatural que suscitam s<strong>em</strong>elhanças com as figuras<br />

medievais retratadas como mulheres <strong>bruxas</strong> ou <strong>feiticeiras</strong>. Assim, essas personagens pod<strong>em</strong><br />

ser vistas como uma representação, razoavelmente coerente, <strong>do</strong> que os homens reais <strong>do</strong><br />

medievo concebiam acerca das mulheres <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>po: ligadas ao Mal; propensas à<br />

fragilida<strong>de</strong> e, conseqüent<strong>em</strong>ente, ao engo<strong>do</strong>; <strong>de</strong>tentoras <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res estranhos ao mun<strong>do</strong><br />

masculino; vetores da sensualida<strong>de</strong>, logo, executoras da luxúria; <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da mão<br />

masculina para salvá-las.<br />

157


Essas afirmações acima resum<strong>em</strong> as atuações <strong>de</strong>ssas três personagens. Já Morgana carrega o<br />

estigma da “fada”, não se referin<strong>do</strong> o termo à suavida<strong>de</strong> da madrinha conhecida nos contos <strong>de</strong><br />

fada, substituta das mães. Embora <strong>em</strong> <strong>de</strong>suso atualmente, o termo era aplica<strong>do</strong> à capacida<strong>de</strong><br />

que certas mulheres tinham <strong>de</strong> agourar, <strong>de</strong> prognosticar sobre o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> outr<strong>em</strong>. A palavra<br />

sofreu diversas modificações até assumir a acepção relativa a um ser fantástico. Mesmo<br />

assim, advin<strong>do</strong> <strong>de</strong> lendas bretãs e pagãs, a figura <strong>de</strong> Morgana aparece apenas <strong>de</strong> relance, num<br />

momento <strong>de</strong>lica<strong>do</strong> da trama, anulan<strong>do</strong> seus po<strong>de</strong>res antes divulga<strong>do</strong>s. A personag<strong>em</strong> passa<br />

por um processo <strong>de</strong> refolhamento entre a “fada”, das <strong>novelas</strong> tradicionais e a mulher, irmã <strong>de</strong><br />

Artur. A mensag<strong>em</strong> cristã <strong>de</strong> aniquilamento <strong>do</strong> pagão é clara: para aqueles povos que tiveram<br />

pouco contato com as tradições celtas, a menção <strong>do</strong> nome Morgana não provocaria gran<strong>de</strong><br />

impacto e o seu la<strong>do</strong> “fada” estaria oculto pela roupag<strong>em</strong> cristã da irmã <strong>de</strong> sangue <strong>do</strong> rei<br />

Artur, apenas citada no episódio <strong>de</strong> sua morte. Com certeza esta peculiarida<strong>de</strong> foi <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />

ajuda para os propósitos católicos.<br />

Pon<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> estas assertivas e colocan<strong>do</strong>-as sob o olhar da distinção entre o real e o fictício,<br />

Morgana representa a realida<strong>de</strong> encoberta por trás das verda<strong>de</strong>iras intenções da Igreja: a<br />

instituição <strong>do</strong>minante <strong>de</strong> seus <strong>do</strong>gmas. Enquanto as outras três personagens pod<strong>em</strong><br />

representar a figura f<strong>em</strong>inina medieval, <strong>de</strong>ntro das limitações sofridas por elas, como a<br />

história permite conhecer, Morgana representa a intencionalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s autores que<br />

reescreveram as lendas celtas ou, pelo menos, da religiosida<strong>de</strong> que reinava sobre eles:<br />

religiosida<strong>de</strong> teocêntrica, impie<strong>do</strong>sa e <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>ra que cultuava um Deus punitivo às<br />

imoralida<strong>de</strong>s e fraquezas humanas.<br />

Analisada sob este foco, Morgana se constitui no resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> conjunto <strong>de</strong> intenções <strong>de</strong> um<br />

autor (ou autores) que a reescreveu e a recriou como uma objectualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>signada a viver<br />

aquele episódio da forma como ele <strong>de</strong>sejava: dissimulan<strong>do</strong> a personag<strong>em</strong> primeira, oriunda <strong>do</strong><br />

paganismo. Representan<strong>do</strong>, então, o real medieval, além <strong>de</strong>, igualmente, mostrar a nulida<strong>de</strong><br />

da mulher, Morgana representa a realida<strong>de</strong> intencional da Igreja, encoberta pelas ações<br />

nobilitantes <strong>de</strong> seus protagonistas. Asseveran<strong>do</strong>, por fim, que as objectualida<strong>de</strong>s intencionais<br />

não possu<strong>em</strong> a competência para alcançar a <strong>de</strong>terminação completa da realida<strong>de</strong>, Rosenfeld<br />

reafirma o carácter fragmentário da personag<strong>em</strong> e, portanto, as personagens da D<strong>em</strong>anda<br />

assum<strong>em</strong> um mo<strong>de</strong>lo (ou representação) da mulher medieval, <strong>em</strong> toda a sua insignificância.<br />

158


4.4.2 Influências pagãs e cristãs presentes na construção das personagens<br />

Inicialmente, a obra se configura um <strong>do</strong>s mais marcantes retratos da herança medieval <strong>do</strong><br />

gênero narrativo. Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> o ambiente cultural conturba<strong>do</strong> <strong>do</strong> medievo-central, aliadas<br />

suas características às in<strong>de</strong>finições <strong>do</strong> natural e <strong>do</strong> sobrenatural, A D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal<br />

revela-se um verda<strong>de</strong>iro código <strong>de</strong> conduta moral <strong>do</strong> saber <strong>do</strong>minante. Entrechoques <strong>de</strong><br />

costumes, línguas e hábitos possibilitaram imagens variadas <strong>de</strong> <strong>bruxas</strong> ou <strong>feiticeiras</strong>, ten<strong>do</strong><br />

povoa<strong>do</strong> o imaginário cristão e o profano. Buscan<strong>do</strong> transmitir a dicotomia B<strong>em</strong>/Mal<br />

existente neste perío<strong>do</strong>, <strong>em</strong> que os <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s da humanida<strong>de</strong> conviviam <strong>em</strong> constante conflito<br />

na mentalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> medieval, esta obra parece transferir para a ficção literária o<br />

alcance <strong>do</strong> universo benéfico e o <strong>do</strong> universo maléfico.<br />

Nas personagens analisadas foram levanta<strong>do</strong>s aspectos e características que as moldam como<br />

o verda<strong>de</strong>iro mistério <strong>em</strong> que a mulher medieval esteve envolvida. A efusão das lendas<br />

célticas pela Europa e os esforços da Igreja <strong>em</strong> estabelecer sua heg<strong>em</strong>onia permitiram que<br />

estas personagens refletiss<strong>em</strong> os i<strong>de</strong>ais cristãos, catolicamente <strong>em</strong>oldura<strong>do</strong>s. As influências <strong>de</strong><br />

ord<strong>em</strong> pagã e cristã estão claramente expostas por toda a obra. As personagens f<strong>em</strong>ininas<br />

escolhidas, reunin<strong>do</strong> características que as aproximam da figura da bruxa ou feiticeira,<br />

<strong>de</strong>ten<strong>do</strong>-se nos aspectos diabólicos, reafirmam a separação <strong>do</strong> dualismo humano, lega<strong>do</strong> da<br />

Antigüida<strong>de</strong> pagã. O <strong>de</strong>sequilíbrio entre as forças surge como marca in<strong>de</strong>lével da luta cristã.<br />

Relegada à insignificância, a mulher medieval, representada pelas personagens selecionadas<br />

da D<strong>em</strong>anda, posicionou-se à esquerda <strong>do</strong> Cria<strong>do</strong>r, ou abaixo na balança das forças<br />

<strong>do</strong>minantes. Igualmente, esta mulher representa apenas uma das extr<strong>em</strong>ida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> dualismo<br />

humano: o Mal. Mesmo ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong>, por vezes, exaltada na obra, tais passagens limitam-se à<br />

<strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> beleza, mais física <strong>do</strong> que moral. Desta forma, as quatro personagens inscrev<strong>em</strong>se,<br />

sobr<strong>em</strong>aneira, na tradição católico-cristã, <strong>em</strong>bora seja possível vislumbrar os vestígios da<br />

composição antiga e pagã da figura f<strong>em</strong>inina <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> subjetivo. Embora se utilize o termo<br />

“influências” pagãs ou cristãs na criação ou <strong>de</strong>scrição das personagens, <strong>de</strong>ve-se atentar aos<br />

limites da própria palavra. Influência n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre r<strong>em</strong>ete a motivação e, no caso da D<strong>em</strong>anda,<br />

esta limitação <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s está clara: é necessário, como alerta Mace<strong>do</strong> (apud LANGER,<br />

2006), não confundir referência cultural ao paganismo com subsistência <strong>do</strong> paganismo. A<br />

obra parece apresentar mais referências ao paganismo bretão <strong>do</strong> que ser influenciada por ele.<br />

159


Apesar da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se entrever os substratos pagãos estampa<strong>do</strong>s nas personagens<br />

analisadas, <strong>de</strong>ve-se cuidar para não confundi-los com indícios <strong>de</strong> existência <strong>do</strong> paganismo.<br />

Nesta análise, a D<strong>em</strong>anda é constituinte <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> esforços <strong>em</strong>penha<strong>do</strong>s pelo Clero<br />

<strong>em</strong> diss<strong>em</strong>inar <strong>do</strong>gmas, ex<strong>em</strong>plos <strong>de</strong> conduta, assim como <strong>de</strong> controlar o comportamento<br />

humano, no intuito <strong>de</strong> regular a moralida<strong>de</strong> <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> comum. Tais eventos ocorreram por<br />

meios varia<strong>do</strong>s e <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos diversifica<strong>do</strong>s. Mais próximas das mulheres <strong>do</strong> que das <strong>bruxas</strong>,<br />

porém d<strong>em</strong>onstran<strong>do</strong> características físicas e espirituais inerentes ao f<strong>em</strong>inino atribuí<strong>do</strong> tanto<br />

à mulher quanto à bruxa ou feiticeira, estas personagens receberam o conceito níti<strong>do</strong><br />

proveniente <strong>de</strong> mentes, no mínimo, influenciadas pela misoginia medieval. Desejan<strong>do</strong><br />

disfarçar a negativida<strong>de</strong> e o pessimismo revela<strong>do</strong> por esta atitu<strong>de</strong> extr<strong>em</strong>a <strong>do</strong> masculino, o<br />

Clero buscou amenizar a intolerância aos supostos “po<strong>de</strong>res” das mulheres: introduziu a<br />

imag<strong>em</strong> positiva e pura da Virg<strong>em</strong> e, posteriormente, foi impeli<strong>do</strong> a aceitar o culto a Maria<br />

Madalena, símbolo da re<strong>de</strong>nção f<strong>em</strong>inina. A santida<strong>de</strong> atribuída à personag<strong>em</strong> Aglinda, no<br />

episódio “A fonte da virg<strong>em</strong>”, é um ex<strong>em</strong>plo circunstancial da mulher aceita socialmente por<br />

suas qualida<strong>de</strong>s similares à Virg<strong>em</strong> Maria. Contu<strong>do</strong>, mesmo <strong>de</strong>tentora <strong>de</strong> suposta b<strong>em</strong>aventurança,<br />

a mulher medieval não esteve livre <strong>do</strong> servilismo imposto pelos homens.<br />

A própria intransigência <strong>do</strong> Clero e também da <strong>do</strong>minação patriarcalista acabaram por<br />

<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar uma intolerância ao <strong>de</strong>sequilíbrio das forças sobrenaturais. Por isto é que,<br />

proce<strong>de</strong>nte da população, o culto a Maria Madalena veio suprir o vazio <strong>do</strong> <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong> e<br />

provocar, novamente, o equilíbrio <strong>do</strong> dualismo humano, tão combati<strong>do</strong> pela Igreja.<br />

Colocan<strong>do</strong>-se entre Eva e Maria, cujas representações estão marcadas na D<strong>em</strong>anda<br />

(respectivamente, a <strong>do</strong>nzela <strong>do</strong> conto <strong>de</strong> Persival e Aglinda), Madalena é o el<strong>em</strong>ento da<br />

distinção e da compl<strong>em</strong>entação das forças, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser entrevista pela imag<strong>em</strong> da mulher<br />

comum, por meio <strong>de</strong> Morgana e da filha <strong>do</strong> rei <strong>de</strong> Lomblanda.<br />

A D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal mostra um cenário medieval repleto <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos dissonantes<br />

relativos às próprias influências recebidas <strong>do</strong> meio. O paganismo amalgama<strong>do</strong> pelo<br />

cristianismo medieval manifesta-se através das referências a seres fantásticos, como a besta<br />

ladra<strong>do</strong>ra; através da menção a po<strong>de</strong>res divinos, como os concedi<strong>do</strong>s a Excalibur, espada<br />

mágica; através da s<strong>em</strong>elhança <strong>de</strong>ífica conferida ao cavaleiro Galaaz. A junção <strong>do</strong><br />

sobrenatural pagão ao divino cristão transparece com naturalida<strong>de</strong> na obra e as personagens<br />

f<strong>em</strong>ininas indicam a fortaleza <strong>de</strong>ssa união. Segun<strong>do</strong> Mace<strong>do</strong> (apud LANGER, 2006),<br />

160


convencionou-se chamar <strong>de</strong> el<strong>em</strong>entos culturais híbri<strong>do</strong>s, provin<strong>do</strong>s <strong>de</strong> “zonas <strong>de</strong> confluência<br />

nas quais ressaltam costumes e crenças originais” (p. 07). Como a Igreja coman<strong>do</strong>u,<br />

conscient<strong>em</strong>ente, o <strong>em</strong>preendimento <strong>em</strong> favor da diss<strong>em</strong>inação cristã, não é surpreen<strong>de</strong>nte<br />

que as personagens aqui discutidas tenham si<strong>do</strong> construídas sob a mensag<strong>em</strong> católica,<br />

evi<strong>de</strong>ncian<strong>do</strong> que as influências e representações cristãs <strong>de</strong>veriam sobrepujar as pagãs.<br />

4.5 CONFRONTANDO AS OBRAS: CONFIGURAÇÃO DAS CONVERGÊNCIAS E<br />

DIVERGÊNCIAS<br />

A análise das personagens, primeiramente apontadas como <strong>bruxas</strong> ou <strong>feiticeiras</strong> no corpus<br />

<strong>de</strong>ste trabalho, levanta questões relacionadas à vida real e à ficção. Para se compreen<strong>de</strong>r as<br />

ligações entre pessoa e personag<strong>em</strong>, foi necessária uma trajetória que abarcasse conceitos<br />

literários e informações históricas. A literatura, através da narrativa romanesca, especificada<br />

pelas <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>, provê material suficiente para o esclarecimento das questões <strong>de</strong><br />

pesquisa. O suposto reverso da figura f<strong>em</strong>inina revelou-se plurissignificativo. Embora não<br />

haja nas obras analisadas qualquer referência direta a <strong>bruxas</strong> ou <strong>feiticeiras</strong>, as personagens<br />

investigadas se mostraram s<strong>em</strong>elhantes ou não a elas. Os indícios aparec<strong>em</strong> através da<br />

atuação das personagens f<strong>em</strong>ininas, pois, <strong>de</strong> alguma forma, todas <strong>de</strong>têm qualida<strong>de</strong>s que foram<br />

atribuídas a estes seres.<br />

O primeiro aspecto a se <strong>de</strong>stacar é o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> apresentação das personagens. As duas obras<br />

d<strong>em</strong>onstram a herança recebida da oralida<strong>de</strong>, pois a presença <strong>de</strong> um narra<strong>do</strong>r r<strong>em</strong>ete aos<br />

conta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> histórias e lendas. A força narrativa <strong>de</strong>ixa transparecer as s<strong>em</strong>elhanças com a<br />

tradição oral, contu<strong>do</strong> a narrativa escrita acresce particularida<strong>de</strong>s à diegese. Embora ambas as<br />

obras apresent<strong>em</strong> um narra<strong>do</strong>r heterodiégetico, estes foram construí<strong>do</strong>s <strong>de</strong> maneira<br />

diversificada. Em A D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal, o narra<strong>do</strong>r posiciona-se por trás da “voz <strong>do</strong><br />

conto”, dan<strong>do</strong> a impressão <strong>de</strong> que o próprio conto é o narra<strong>do</strong>r. Em Amadis <strong>de</strong> Gaula, a<br />

presença verbo-pessoal, por vezes, torna o narra<strong>do</strong>r homodiegético: dirige-se ao leitor,<br />

comunican<strong>do</strong> <strong>de</strong>cisões acerca <strong>do</strong> <strong>de</strong>senrolar da história, tal qual na oralida<strong>de</strong>. As <strong>novelas</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>cavalaria</strong> encontraram ambiente farto para a narração heterodiegética, <strong>em</strong> que o narra<strong>do</strong>r<br />

conhece os fatos e os narra <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com as suas concepções. Freqüent<strong>em</strong>ente, e isto ocorre<br />

161


nas duas obras, o narra<strong>do</strong>r faz sobressair as aventuras e os feitos heróicos das personagens, o<br />

que lhes confere relevância atrelada às circunstâncias <strong>em</strong> que se envolv<strong>em</strong>.<br />

As personagens f<strong>em</strong>ininas foram analisadas, inicialmente, pelos traços individuais que<br />

apresentam. Em Amadis <strong>de</strong> Gaula, Urganda, a Desconhecida, se manifesta conhece<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s<br />

eventos da vida futura <strong>do</strong> herói Amadis, <strong>de</strong>notan<strong>do</strong> sabe<strong>do</strong>ria, astúcia e bonda<strong>de</strong>. A leitura da<br />

novela provê ao leitor a sensação <strong>de</strong> uma personag<strong>em</strong> in<strong>de</strong>finida, ou ainda <strong>de</strong> que aparece na<br />

história somente quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>la precisam. Estas características aproximam a personag<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />

uma figura meio humana, meio sobrenatural, muito similar à bruxa ou à feiticeira. Em A<br />

D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal, entre as personagens selecionadas, não há nenhuma que se<br />

ass<strong>em</strong>elhe a Urganda; são mulheres comuns. A <strong>do</strong>nzela <strong>do</strong> episódio “A tentação <strong>de</strong> Persival”<br />

é a única que se transfigura <strong>em</strong> ser d<strong>em</strong>oníaco. Porém, até a sua transformação, age como<br />

mulher simples. Os indícios <strong>de</strong> que sua personalida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria estar relacionada ao Mal<br />

provêm, na verda<strong>de</strong>, <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo senti<strong>do</strong> pelo herói. Outra personag<strong>em</strong>, conhecidamente maga,<br />

mas que não se apresenta como tal, é Morgana. A irmã <strong>de</strong> Artur t<strong>em</strong> sua imag<strong>em</strong> fantástica<br />

reduzida a uma aparição, quase s<strong>em</strong> referências, no episódio “A morte <strong>de</strong> Rei Artur”. Por<br />

mais que se saiba <strong>de</strong> suas ligações com Merlin, por ex<strong>em</strong>plo, e toda a história prece<strong>de</strong>nte à<br />

d<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Cálice, a personag<strong>em</strong> é <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> suas qualida<strong>de</strong>s pagãs. As outras<br />

duas personagens, a saber, Aglinda e a filha <strong>do</strong> Rei <strong>de</strong> Lomblanda, também representam a<br />

mulher comum medieval. Como particularida<strong>de</strong>s f<strong>em</strong>ininas que as <strong>de</strong>stacam estão a<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prever o futuro, na filha <strong>do</strong> rei e o encantamento da fonte, <strong>em</strong> Aglinda.<br />

Tanto Aglinda como a filha <strong>do</strong> Rei <strong>de</strong> Lomblanda estão presentes na porção benéfica das<br />

forças sobrenaturais, pois atuam <strong>em</strong> prol <strong>do</strong>s heróis. Suas habilida<strong>de</strong>s surg<strong>em</strong> <strong>em</strong> função das<br />

atitu<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s cavaleiros, como ocorre com a filha <strong>do</strong> rei, que prevê a chegada <strong>do</strong> cavaleiro<br />

eleito, Galaaz; e <strong>em</strong> função da mensag<strong>em</strong> católico-cristã dirigida à imag<strong>em</strong> i<strong>de</strong>al <strong>do</strong> cavaleiro<br />

medieval, como no episódio “A fonte da virg<strong>em</strong>”, <strong>em</strong> que Aglinda lança o encantamento (ou<br />

maldição) à fonte, fazen<strong>do</strong> cair paralisa<strong>do</strong> to<strong>do</strong> cavaleiro que <strong>de</strong>la se aproximasse e não fosse<br />

puro. A <strong>do</strong>nzela <strong>do</strong> episódio <strong>de</strong> Persival, ao contrário, se enquadra na porção maléfica, pois é<br />

o próprio d<strong>em</strong>ônio disfarça<strong>do</strong> <strong>em</strong> beleza f<strong>em</strong>inina. É forte a sua aproximação com a figura da<br />

bruxa medieval. As mulheres consi<strong>de</strong>radas <strong>bruxas</strong> eram concebidas como seres fantásticos<br />

através <strong>de</strong> um concubinato com Satanás. Daí a facilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Mal <strong>em</strong> se transfigurar <strong>em</strong><br />

mulher. Urganda, <strong>de</strong> Amadis, não po<strong>de</strong> ser inscrita <strong>em</strong> nenhuma porção da dualida<strong>de</strong> humana:<br />

ela representa o equilíbrio das forças. A personag<strong>em</strong> não é boa n<strong>em</strong> má; mostra atitu<strong>de</strong>s<br />

162


enevolentes para com o herói e outras personagens, mas também prejudica outros conforme<br />

seus <strong>de</strong>sejos. Morgana, da D<strong>em</strong>anda, igualmente não <strong>de</strong>ve ser enquadrada entre o B<strong>em</strong> ou o<br />

Mal. A atuação da personag<strong>em</strong> no episódio “A morte <strong>de</strong> Rei Artur” é apenas uma referência<br />

às tradições bretãs que originaram as lendas arturianas.<br />

O que liga as personagens da D<strong>em</strong>anda à figura das <strong>bruxas</strong> ou <strong>feiticeiras</strong> são as características<br />

intangíveis das mulheres retratadas nestes episódios. Essa relação po<strong>de</strong> ser feita <strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>corrência <strong>de</strong>stas qualida<strong>de</strong>s ter<strong>em</strong> si<strong>do</strong> <strong>de</strong>sviadas da mulher comum para mulheres<br />

especiais, seja através da feitiçaria ou da bruxaria. Não há meio <strong>de</strong> rotulá-las como seres<br />

sobrenaturais, n<strong>em</strong> mesmo Urganda, cujas qualida<strong>de</strong>s são ainda mais similares. No entanto, a<br />

gênese <strong>do</strong>s po<strong>de</strong>res atribuí<strong>do</strong>s a <strong>feiticeiras</strong> e <strong>bruxas</strong>, b<strong>em</strong> como a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se<br />

inscrever<strong>em</strong> no B<strong>em</strong> ou no Mal, resi<strong>de</strong> no el<strong>em</strong>ento f<strong>em</strong>inino humano: a mulher.<br />

Outra caracterização notável nas personagens são as referências nominais. Em Amadis,<br />

Urganda t<strong>em</strong> seu nome acompanha<strong>do</strong> da alcunha i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>ra “a Desconhecida”. Além <strong>de</strong><br />

ser um indício <strong>do</strong> mistério que a cerca, revela a importância dada à personag<strong>em</strong>. Urganda é<br />

b<strong>em</strong> vista pelos protagonistas da história, t<strong>em</strong> o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> salvar o herói, combaten<strong>do</strong> os<br />

feitiços <strong>do</strong> mago Arcalaus. Igualmente, é livre e faz o que lhe convém com seus<br />

conhecimentos; distingue o b<strong>em</strong> <strong>do</strong> mal e usa-os conforme suas convicções. A figura<br />

f<strong>em</strong>inina <strong>de</strong> Urganda é um suporte às aventuras <strong>de</strong> Amadis. Está presente <strong>em</strong> todas elas,<br />

mesmo que não apareça; entretanto, basta uma situação mais complexa para que Urganda se<br />

mostre. A livre atuação da personag<strong>em</strong> f<strong>em</strong>inina é sinal distintivo entre as obras analisadas.<br />

Aproximan<strong>do</strong>-se mais da bruxa ou feiticeira e menos da mulher medieval, Urganda não<br />

correspon<strong>de</strong> ao mo<strong>de</strong>lo f<strong>em</strong>inino mostra<strong>do</strong> na D<strong>em</strong>anda.<br />

Já as quatro personagens arturianas receb<strong>em</strong> um tratamento b<strong>em</strong> diferencia<strong>do</strong>. A questão <strong>do</strong><br />

nome das personagens é um indicativo da relevância <strong>de</strong>sses seres. Morgana, apesar <strong>de</strong> receber<br />

um nome, oriun<strong>do</strong> das aventuras preexistentes, este não revela o papel da personag<strong>em</strong> no<br />

episódio. Sen<strong>do</strong> apenas uma referência às lendas bretãs, a personag<strong>em</strong> passa a representar o<br />

esforço <strong>em</strong>preendi<strong>do</strong> pela Igreja <strong>em</strong> anular as influências pagãs. Entre as outras três<br />

personagens, apenas Aglinda recebe um nome. Deve-se isto a sua s<strong>em</strong>elhança com a Virg<strong>em</strong><br />

Maria, por suas virtu<strong>de</strong>s e pelo martírio vivi<strong>do</strong>. A filha <strong>do</strong> Rei <strong>de</strong> Lomblanda não recebe<br />

nome; sua única referência é o pai, el<strong>em</strong>ento masculino. Sua importância é ínfima, pois sequer<br />

necessita <strong>de</strong> um nome. Sua aparição é <strong>em</strong> função da liberda<strong>de</strong> das virgens <strong>do</strong> Castelo Felão e<br />

163


da vinda <strong>de</strong> Galaaz. A <strong>do</strong>nzela <strong>do</strong> episódio <strong>de</strong> Persival é ainda mais nula: não recebe nenhuma<br />

referência nominal. Enquanto mulher, apenas sua beleza física se <strong>de</strong>staca. Somente recebe<br />

algum valor ao se transformar <strong>em</strong> d<strong>em</strong>ônio, revelan<strong>do</strong> sua verda<strong>de</strong>ira i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. Ainda<br />

assim, representa a porção maléfica e é combatida pelas forças divinas.<br />

Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> o aspecto realida<strong>de</strong> e ficção, pauta<strong>do</strong> nas discussões sobre a verossimilhança, as<br />

duas obras proporcionam um reflexo da vida cotidiana <strong>do</strong> medievo. Po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> se enten<strong>de</strong>r o<br />

fenômeno da verossimilhança como a capacida<strong>de</strong> que a ficção possui <strong>de</strong> se ass<strong>em</strong>elhar à vida<br />

real (CANDIDO, 1985) ou como a representativida<strong>de</strong> da realida<strong>de</strong> por objectualida<strong>de</strong>s<br />

intencionais, proposta <strong>de</strong> Rosenfeld (1985), as informações históricas, colhidas como meio <strong>de</strong><br />

contextualizar as <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> serviram <strong>de</strong> apoio aos conceitos literários sobre a<br />

personag<strong>em</strong> ficcional. Partin<strong>do</strong>, então, <strong>do</strong> pressuposto <strong>de</strong> que um autor se vale da realida<strong>de</strong> ao<br />

seu re<strong>do</strong>r como fonte <strong>de</strong> inspiração para compor uma personag<strong>em</strong>; acrescentan<strong>do</strong> a<br />

popularida<strong>de</strong> atingida pelas <strong>novelas</strong> cavaleirescas na Ida<strong>de</strong> Média e consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> os muitos<br />

autores, compila<strong>do</strong>res e copistas que legaram estes textos aos séculos seguintes, compreen<strong>de</strong>se<br />

a forma como o contexto social contribuiu para o conjunto <strong>de</strong> fatores que <strong>de</strong>terminam o<br />

teor <strong>de</strong> uma obra.<br />

A partir <strong>de</strong>stes da<strong>do</strong>s foi possível analisar a construção das personagens, focalizan<strong>do</strong> as<br />

influências pagãs e cristãs. Entre as informações históricas mais relevantes para este aspecto<br />

estão alguns el<strong>em</strong>entos antitéticos que ajudaram a moldar o espírito <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> medieval:<br />

hom<strong>em</strong> versus Deus e tradição cristã versus tradição pagã. Por ser<strong>em</strong> el<strong>em</strong>entos liga<strong>do</strong>s à<br />

conduta moral, é compreensível que seus vestígios estejam aparentes nas personagens<br />

observadas. Na D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal a mensag<strong>em</strong> cristã supera qualquer referência ao<br />

paganismo bretão. As personagens f<strong>em</strong>ininas correspond<strong>em</strong> aos mo<strong>de</strong>los situa<strong>do</strong>s no B<strong>em</strong> ou<br />

Mal, tal como a Igreja medieval propagava seus padrões <strong>de</strong> comportamento. Em Amadis <strong>de</strong><br />

Gaula ocorre o oposto: há pouca referência à religiosida<strong>de</strong> cristã <strong>em</strong> toda a obra; logo, a<br />

personag<strong>em</strong> Urganda se inscreve muito mais na tradição folclórico-pagã. Suas características<br />

correspond<strong>em</strong> às qualida<strong>de</strong>s intáteis da mulher, herança das crenças pré-cristãs.<br />

164


CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Literatura e história: <strong>do</strong>is universos uni<strong>do</strong>s pela vonta<strong>de</strong> humana. A história, num senti<strong>do</strong><br />

mais amplo, povoa a imaginação <strong>de</strong> um autor ao conceber uma obra; <strong>em</strong> senti<strong>do</strong> mais estrito,<br />

provê material inspirativo para a composição das personagens. A narrativa escrita colheu da<br />

tradição oral histórias e lendas contadas e recontadas, séculos após séculos. Imprimiu à<br />

diegese valores, características e julgamentos conforme a época e os autores que compilaram<br />

essas histórias. As <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> são, portanto, um retrato <strong>de</strong>ste fenômeno literário. As<br />

aventuras <strong>do</strong> Rei Artur e seus cavaleiros, b<strong>em</strong> como outras <strong>novelas</strong> respon<strong>de</strong>ram aos anseios<br />

<strong>do</strong> hom<strong>em</strong> medieval. Sen<strong>do</strong> histórias guerreiras, heróis cavaleiros foram apresenta<strong>do</strong>s s<strong>em</strong>pre<br />

<strong>em</strong> busca <strong>de</strong> aventuras, na intenção <strong>de</strong> galgar respeito, elevação <strong>em</strong>ocional e espiritual. A<br />

D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal e Amadis <strong>de</strong> Gaula são ex<strong>em</strong>plos marcantes <strong>de</strong>ssa literatura.<br />

Mostram o senti<strong>do</strong> da <strong>cavalaria</strong> medieval apontan<strong>do</strong> para a ascese e para o amor cortês.<br />

Concepções diversas que <strong>de</strong>notam as mudanças sócio-mentais vividas pelo hom<strong>em</strong> no<br />

<strong>de</strong>correr <strong>do</strong>s séculos que abarcaram a Ida<strong>de</strong> Média.<br />

O perío<strong>do</strong> medieval nasceu da confluência <strong>de</strong> vários fatores. Entre aqueles mais contun<strong>de</strong>ntes<br />

estão a <strong>de</strong>cadência <strong>do</strong> Império Romano e as invasões <strong>do</strong>s bárbaros germanos. Época marcada<br />

por lutas, solda<strong>do</strong>s e guerreiros, o medievo imprime na História características únicas. T<strong>em</strong>po<br />

<strong>de</strong> mudanças, repleto <strong>de</strong> fome, <strong>de</strong> batalhas, <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças e cerca<strong>do</strong> por mistérios que persist<strong>em</strong><br />

até a atualida<strong>de</strong>. Os primeiros séculos da Ida<strong>de</strong> Média <strong>de</strong>ixaram pouco material histórico; seus<br />

personagens envolveram-se <strong>em</strong> lendas ou mitos; a vida real <strong>de</strong> outrora se confun<strong>de</strong> com o<br />

imaginário <strong>de</strong> agora. Por tantas razões, o hom<strong>em</strong> medieval esteve imerso <strong>em</strong> incertezas e<br />

dúvidas quanto ao seu papel sobre a Terra.<br />

O nascimento <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte Medieval apresenta uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> culturas. A herança précristã,<br />

trazida pelos povos bárbaros, chocou-se com o sist<strong>em</strong>a romaniza<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida e com a<br />

nascente cultura cristã. A in<strong>de</strong>finição <strong>do</strong> hom<strong>em</strong> medieval esteve à mercê <strong>do</strong>s fenômenos<br />

sociais ocorri<strong>do</strong>s <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas confrontações <strong>de</strong> povos tão diversos. A própria t<strong>em</strong>ática<br />

<strong>do</strong>s romances cavaleirescos <strong>de</strong>nota tais sentimentos <strong>de</strong> incerteza e <strong>de</strong> imaterialida<strong>de</strong>, b<strong>em</strong><br />

como da exacerbada religiosida<strong>de</strong> cristã. São, pois, comuns nas <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>, as<br />

165


eferências ao paganismo, através <strong>de</strong> personagens fantásticas e <strong>do</strong> amor cortês; igualmente<br />

comuns são as referências aos <strong>em</strong>bates católicos, na busca <strong>de</strong> sua pre<strong>do</strong>minância popular.<br />

Este foi, sinteticamente, o panorama histórico que inspirou as lendas orais da tradição<br />

arturiana. Posteriormente, compiladas e organizadas, essas lendas formaram <strong>ciclo</strong>s <strong>de</strong> contos<br />

que circularam por toda Europa e marcaram uma época. As personagens que povoam estas<br />

histórias são carregadas <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>s. Traz<strong>em</strong> impressas <strong>em</strong> suas características os traços<br />

marcantes da medievalida<strong>de</strong>, <strong>em</strong> que o fantasioso aponta para a tradição pagã e o religioso<br />

para a tradição cristã. A carga <strong>de</strong> efeitos das personagens sobre os leitores ou ouvintes se<br />

constitui material para a análise da relação entre personag<strong>em</strong> e pessoa ou ficção e realida<strong>de</strong>.<br />

Essa relação, <strong>de</strong>terminada pela menor ou maior i<strong>de</strong>ntificação entre esses seres, é chamada <strong>de</strong><br />

verossimilhança, termo literário usa<strong>do</strong> para <strong>de</strong>screver as impressões reais que os entes<br />

ficcionais provocam nos leitores ou ouvintes.<br />

Sob o foco das teorias <strong>de</strong> Antônio Cândi<strong>do</strong> e Anatol Rosenfeld acerca da personag<strong>em</strong> fictícia,<br />

este trabalho se propôs a analisar algumas personagens das obras Amadis <strong>de</strong> Gaula e A<br />

D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal. As mulheres envolvidas com algum tipo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r sobrenatural,<br />

tidas como personagens secundárias, aparec<strong>em</strong> nessas <strong>novelas</strong> <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penhan<strong>do</strong> papéis<br />

diferencia<strong>do</strong>s, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o teor <strong>de</strong> cada obra. Partin<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta realida<strong>de</strong>, a proposta <strong>de</strong><br />

pesquisa repousou sobre a figura f<strong>em</strong>inina da bruxa ou feiticeira, situada no universo místico<br />

que permeia os romances <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>. Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> as abordagens apresentadas por cada<br />

obra, b<strong>em</strong> como as características próprias <strong>de</strong> cada personag<strong>em</strong> escolhida, buscou-se revelar<br />

s<strong>em</strong>elhanças e <strong>de</strong>ss<strong>em</strong>elhanças entre as personagens tidas como <strong>feiticeiras</strong> ou <strong>bruxas</strong> e a<br />

mulher medieval comum.<br />

Unin<strong>do</strong> o contexto sócio-histórico <strong>em</strong> que as obras foram escritas, o ambiente místico que<br />

envolve as narrativas arturianas e a teoria da personag<strong>em</strong> <strong>de</strong> ficção, procurou-se verificar a<br />

construção <strong>de</strong>ssas personagens f<strong>em</strong>ininas a partir da ótica apontada por Cândi<strong>do</strong> e Rosenfeld<br />

(1985) que analisa a verossimilhança como principal fator <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação entre vida real e<br />

ficcionalida<strong>de</strong>. Da<strong>do</strong> o fato <strong>de</strong> que os contextos <strong>de</strong> época parec<strong>em</strong> estar diretamente<br />

associa<strong>do</strong>s aos gêneros literários, po<strong>de</strong>r-se-ia dizer que as <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong> produz<strong>em</strong> a<br />

sensação <strong>de</strong> autêntica i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> com a realida<strong>de</strong> outrora vivida pelo hom<strong>em</strong> medieval. A<br />

narrativa, dispon<strong>do</strong> os fatos diegéticos cronologicamente, constitui uma importante forma <strong>de</strong><br />

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expressão literária que proporciona ao leitor possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> avaliação e julgamento humano<br />

através da representação <strong>de</strong> personagens.<br />

Três pontos teórico-literários foram essenciais para a análise das personagens: o caráter<br />

fragmentário da personag<strong>em</strong> e o probl<strong>em</strong>a <strong>de</strong> coerência interna, levanta<strong>do</strong>s por Antônio<br />

Cândi<strong>do</strong> e o universo ficcional constituí<strong>do</strong> por objectualida<strong>de</strong>s intencionais <strong>do</strong> autor,<br />

aborda<strong>do</strong> por Anatol Rosenfeld. Estas pr<strong>em</strong>issas converg<strong>em</strong> para a questão principal da<br />

relação entre pessoa e personag<strong>em</strong>: a verossimilhança. Estan<strong>do</strong>, para Cândi<strong>do</strong>, este fator<br />

liga<strong>do</strong> à possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação entre a realida<strong>de</strong> e a ficção, através da coerência e<br />

a<strong>de</strong>quação alcançada por to<strong>do</strong>s os el<strong>em</strong>entos da narrativa; e, para Rosenfeld, liga<strong>do</strong> à<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> representação da realida<strong>de</strong> humana pela realida<strong>de</strong> ficcional, a análise das<br />

personagens selecionadas buscou constatar a existência (ou não) <strong>de</strong> similitu<strong>de</strong>s, na figura<br />

f<strong>em</strong>inina medieval das <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>, com a mulher medieval, ressaltan<strong>do</strong> suas<br />

qualida<strong>de</strong>s naturais <strong>em</strong> contraste com os padrões <strong>de</strong> comportamento exigi<strong>do</strong>s pelo Clero.<br />

O reverso da figura f<strong>em</strong>inina pô<strong>de</strong> ser vislumbra<strong>do</strong> <strong>em</strong> <strong>do</strong>is ângulos significativos <strong>em</strong> A<br />

D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal. Entreven<strong>do</strong> o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> “contrário” para o termo “reverso”, <strong>em</strong><br />

um <strong>do</strong>s significa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> dicionário, percebe-se a dicotomia <strong>de</strong>fendida pela Igreja Católica<br />

medieval, cujos <strong>do</strong>gmas eram pauta<strong>do</strong>s na aceitação <strong>do</strong> B<strong>em</strong>, representa<strong>do</strong> por Deus, e <strong>do</strong><br />

Mal, representa<strong>do</strong> por Lúcifer. Desta forma, a imag<strong>em</strong> f<strong>em</strong>inina das personagens analisadas<br />

esteve <strong>em</strong> consonância com o pensamento misógino que se <strong>de</strong>senvolveu naqueles séculos. O<br />

mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> mulher era a Virg<strong>em</strong>, o reflexo mais próximo <strong>de</strong> Deus. Àquelas que não viss<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />

sua figura o iliba<strong>do</strong> padrão a ser segui<strong>do</strong>, era <strong>de</strong>stina<strong>do</strong> o rótulo <strong>do</strong> mal, da marginalização: a<br />

prostituta, a leprosa, a bruxa ou feiticeira. Em outro ângulo, toman<strong>do</strong> o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> “revés”,<br />

isto é, algo que era bom e se tornou mal, para o t<strong>em</strong>o “reverso”, entr<strong>em</strong>ostra-se a<br />

manifestação da mulher <strong>de</strong>svirtuada, cujo ex<strong>em</strong>plo cristão é Eva. A figura f<strong>em</strong>inina é exposta<br />

como um el<strong>em</strong>ento capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>sencaminhar o cristão <strong>do</strong> <strong>de</strong>stino consagra<strong>do</strong>. Ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong>ste<br />

reverso <strong>de</strong>staca-se o cavaleiro Persival, no conto “Tentação <strong>de</strong> Persival”, <strong>em</strong> que o herói é<br />

tenta<strong>do</strong> pelo d<strong>em</strong>ônio, que lhe aparece na forma <strong>de</strong> belíssima <strong>do</strong>nzela.<br />

O reverso da figura f<strong>em</strong>inina, analisa<strong>do</strong> nas personagens consi<strong>de</strong>radas <strong>bruxas</strong> ou <strong>feiticeiras</strong>,<br />

apresenta qualida<strong>de</strong>s atribuídas a estes seres, tornan<strong>do</strong>-se duplamente presente na novela<br />

cavaleiresca <strong>de</strong> maior importância <strong>do</strong> Ciclo Arturiano. Em Amadis <strong>de</strong> Gaula, este reverso não<br />

se manifesta. A figura f<strong>em</strong>inina <strong>de</strong> Urganda se estabelece no equilíbrio das forças que reg<strong>em</strong><br />

167


o universo. Disposta entre o B<strong>em</strong> e o Mal, representa a aceitação da dualida<strong>de</strong> humana como<br />

forma <strong>de</strong> equalização <strong>do</strong>s po<strong>de</strong>res divinais. A feiticeira ou bruxa, ou apenas um ser <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

certas faculda<strong>de</strong>s extra-sensoriais configura-se <strong>em</strong> Urganda, revelan<strong>do</strong> uma face valorizada<br />

pelas suas habilida<strong>de</strong>s. Os vestígios da herança pagã evi<strong>de</strong>nciam-se na maneira como a<br />

personag<strong>em</strong> é apresentada pelo narra<strong>do</strong>r medieval.<br />

Igualmente notória é a referência ao Mal através <strong>de</strong> um el<strong>em</strong>ento masculino, o bruxo<br />

Arcalaus. Se na D<strong>em</strong>anda a figura f<strong>em</strong>inina aparece como <strong>de</strong>tentora <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s maléficas,<br />

<strong>em</strong> Amadis é a figura masculina que se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra <strong>em</strong> malda<strong>de</strong>s contra o herói cavaleiro. Outra<br />

característica que se soma a essa valorização <strong>do</strong> f<strong>em</strong>inino é a alusão à <strong>cavalaria</strong> movida pelo<br />

amor cortês. Amadis, diferent<strong>em</strong>ente <strong>de</strong> Galaaz ou Persival, realiza todas as peripécias e<br />

participa das batalhas aventurosas apenas para ganhar o amor <strong>de</strong> Oriana. O herói não busca a<br />

ascese; não há referência à religiosida<strong>de</strong> cristã como regula<strong>do</strong>ra das <strong>em</strong>oções humanas.<br />

Na constante investigação das personagens consi<strong>de</strong>radas <strong>bruxas</strong> ou <strong>feiticeiras</strong>, a<br />

contextualização histórica serviu como base fundamenta<strong>do</strong>ra para a análise da<br />

verossimilhança, tanto como a maior ou menor s<strong>em</strong>elhança com a realida<strong>de</strong>, quanto como<br />

uma representação <strong>do</strong> real pelo fictício. As informações fornecidas pela História foram <strong>de</strong><br />

extr<strong>em</strong>a importância para o estabelecimento da teoria literária acerca da personag<strong>em</strong><br />

romanesca. A análise literária <strong>de</strong>ssas personagens focalizou, portanto, a construção das<br />

mesmas, <strong>em</strong> contraste com o ambiente real que originou as <strong>novelas</strong> <strong>de</strong> <strong>cavalaria</strong>.<br />

A evidência <strong>do</strong> caráter fantástico e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, cristianiza<strong>do</strong>, da figura da bruxa ou<br />

feiticeira conce<strong>de</strong>u às personagens analisadas atributos que permit<strong>em</strong> cotejá-las com a bruxa,<br />

representantes da socieda<strong>de</strong> medieval <strong>do</strong>minada pela cultura eclesiástica. Observan<strong>do</strong> este<br />

aspecto, foi possível analisar as influências ou referências pagãs e cristãs na criação <strong>de</strong>ssas<br />

personagens. Cada uma das obras d<strong>em</strong>onstra estar <strong>em</strong> conformida<strong>de</strong> com seu t<strong>em</strong>po: A<br />

D<strong>em</strong>anda <strong>do</strong> Santo Graal <strong>de</strong>nuncia a luta da Igreja <strong>em</strong> retomar a imag<strong>em</strong> <strong>do</strong> cavaleiro cristão,<br />

através <strong>de</strong> feitos que nobilit<strong>em</strong> seu caráter e reafirm<strong>em</strong>, assim, os <strong>do</strong>gmas católicos. Logo, as<br />

influências cristãs estão mais presentes. Amadis <strong>de</strong> Gaula, por sua vez, se mostra livre das<br />

amarras <strong>do</strong> Clero e anuncia um novo cavaleiro, que utiliza os mesmos meios que os da<br />

D<strong>em</strong>anda, porém com objetivos diferentes. Igualmente apresenta certa valorização das<br />

personagens f<strong>em</strong>ininas, através <strong>do</strong> amor cortês. Conseqüent<strong>em</strong>ente, Amadis <strong>de</strong> Gaula recebeu<br />

168


mais influências pagãs <strong>do</strong> que cristãs, haja vista o maior número <strong>de</strong> referências às tradições<br />

populares e também a ausência <strong>do</strong> sentimento <strong>de</strong> religiosida<strong>de</strong> cristã por toda a obra.<br />

A trajetória da mulher pelos séculos medievais é repleta <strong>de</strong> transformações. A abordag<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>sta pesquisa procurou, apenas, compreen<strong>de</strong>r as personagens f<strong>em</strong>ininas das <strong>novelas</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>cavalaria</strong>, paralelizan<strong>do</strong>-as com a mulher medieval, <strong>em</strong> uma <strong>de</strong> suas faces marginalizadas: a<br />

bruxa ou feiticeira. Enten<strong>de</strong>r a literatura como um retrato fiel da realida<strong>de</strong> histórica seria<br />

atribuir genuinida<strong>de</strong> <strong>em</strong> excesso a um escritor, que “inventa” sua história. É preciso<br />

consi<strong>de</strong>rar a obra <strong>de</strong> ficção como uma representação da realida<strong>de</strong> ou como um conjunto<br />

diegético narra<strong>do</strong> s<strong>em</strong>elhante à vida real. Se a personag<strong>em</strong> romanesca aparenta o que há <strong>de</strong><br />

mais vivo <strong>em</strong> um romance; e admiti<strong>do</strong>s ambos os conceitos <strong>de</strong> verossimilhança, Urganda e as<br />

quatro personagens <strong>de</strong> A D<strong>em</strong>anda forneceram subsídios que possibilitaram a comparação<br />

entre pessoa e personag<strong>em</strong>. Desta forma, realida<strong>de</strong> e ficção se uniram num to<strong>do</strong> coeso on<strong>de</strong><br />

figuram pessoas, personagens, história e lenda.<br />

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