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N.º 187 - Novembro 2007 - 2,00 euros - Inatel

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O TEMPO E AS PALAVRAS | MARIA ALICE VILA FABIÃO<br />

São vidas...<br />

Das figuras amadas fica o eco / da sua refulgência de figuras./ São quase mágoa de sítio / em que, havendo-se já apagado a lua,<br />

brilhasse ainda o vácuo / duma presença para sempre nula./ E, contudo, o firmamento / se ilumina das máculas nocturnas / desses<br />

ecos amados entre lágrimas / na sua refulgência de figuras.<br />

Fernando Echevarría, in: Sobre os Mortos, Ed. Afrontamento, Porto, 1991<br />

Oprimeiro a regressar foi o Isaak, o droguista da<br />

esquina – disse-me, falando de um tempo passado,<br />

em que eu não sabia o que era a guerra. –<br />

Contaram-me que chegou ao anoitecer –<br />

prosseguiu. – Vinha esquelético e andrajoso e arrastava-se<br />

com dificuldade por entre as casas que ainda se mantinham<br />

de pé. Ao chegar à esquina, parou. Parecia perdido.<br />

Subitamente, pôs-se a cantar com voz roufenha e a fazer<br />

vénias diante da porta, que, como muitas outras da rua,<br />

tinha sido fechada com tábuas e pregos. Todos pensaram<br />

tratar-se de um louco, porque, com aquela barba e aquela<br />

grenha, ninguém imaginava que fosse o Isaak. Afinal,<br />

acabaram por compreender que ele não estava a cantar, mas<br />

sim a entoar, em hebraico, uma oração, uma espécie de<br />

lamento que, antes da guerra, se ouvia na antiga Sinagoga,<br />

em véspera do Sabath. Só o reconheceram quando se sentou,<br />

apático, na soleira da porta da casa que tinha sido a<br />

dele. Algumas pessoas tentaram ajudá-lo; outras aproximaram-se<br />

apenas para verificar se era realmente verdade<br />

haver sobreviventes. Escondido atrás daquela juba nojenta,<br />

porém, ele parecia cego e surdo a tudo o que o rodeava.<br />

Uma mulher pôs-lhe na frente uma tigela com duas batatas.<br />

Nem lhes tocou. Tinha sido o primeiro a chegar, segundo<br />

diziam. E veio só, é claro. Contava-se que, durante muito<br />

tempo, todos os dias à tardinha ia à estação: “A minha mulher<br />

chega hoje”, dizia. E ali ficava, no cais, à espera, com um<br />

sorriso nos lábios. Até que um dia, deixou de ir à estação.<br />

Quatro ou cinco dias mais tarde regressou o segundo, um<br />

velho que morava um pouco mais abaixo e foi trazido numa<br />

carroça de feno por um lavrador das imediações, que o<br />

tinha ajudado a sobreviver, escondendo-o num palheiro.<br />

Extremamente fraco, deitou-se no chão, ao comprido, a<br />

beijar a soleira da porta e a agradecer a Deus o ter-lhe<br />

permitido viver em liberdade.<br />

Durante uma semana não regressou mais ninguém.<br />

Era Maio, e havia muito que os salgueiros-chorões do<br />

parque se tinham coberto do verde-lagarta explosivo das<br />

Primaveras holandesas. Era a primeira Primavera em<br />

liberdade.<br />

- A seguir – continuou –, chegaram dois jovens – os dois<br />

irmãos que ainda lhe vendem o peixe, na Lange Visstraat.<br />

Consta que dormiram durante três dias seguidos e que os<br />

vizinhos os ouviam chorar alto durante o sono. Aliás, diziase,<br />

só acordaram com o choro da primeira mulher que<br />

regressara e em quem só eles reconheceram a irmã<br />

adolescente que, três anos antes, os Alemães tinham levado<br />

com o resto da família. Tinha sido uma das vítimas do Dr.<br />

Mengele, dizia-se, à boca pequena.<br />

(Quando a conheci, na peixaria, teria os seus quarenta,<br />

continuava a silenciar sobre o assunto, mas havia muito já<br />

que tinha deixado de ocultar com a manga aquele número<br />

misterioso tatuado a negro na face interior do braço. De<br />

quando em vez, deixava de ser vista. Enlouquecia, dizia-se.)<br />

Ameia dúzia de Judeus do bairro que sobreviveram<br />

nos campos de concentração alemães ou<br />

escondidos algures regressou logo após o fim da<br />

guerra, ao longo das últimas semanas de Maio.<br />

- Nessa altura, ainda eu estava no campo de concentração<br />

japonês de Tjideng – acrescentou, com voz<br />

pensativa. Fugi dos nazis, para Batávia – do espeto para a<br />

sertã! Durante mais de três anos, nada soube do meu<br />

marido, que andava num petroleiro, nas linhas do<br />

Oriente. Nem ele de mim. (“Entre duas palavras, a<br />

voz/perde o equilíbrio/ escorrega no próprio reflexo”.) De<br />

súbito, os olhos iluminam-se-lhe: - Foi com os “Japs” que<br />

aprendi as primeiras palavras portuguesas: Pan (pão) e<br />

Kappa (capa). Garpo, mantêga, bandera e mesja, aprendi<br />

com os Indonésios. Sorri.<br />

Para ela, a salvação chegara apenas em Agosto, com<br />

Hiroshima e Nagazaki. Doía-lhe, disse, dever a vida à<br />

bomba atómica, que tantas vidas e sofrimento custara. Mas<br />

era a verdade.<br />

Ela e o marido tinham sido os últimos a regressar, quase<br />

um ano mais tarde. Olho-a, na fotografia amarelada: - “A<br />

caminho de Priok – 11.2 .42. A nossa última hora”.<br />

Onde, agora, todos?<br />

Mais uma vez, os crisântemos florescem aqui por toda a<br />

parte. Impossível esquecer que, para os que partiram, não<br />

haverá mais regresso. Inútil ir à estação.<br />

O texto escreve-se - exilada dele ou exilada nele, reconto.<br />

Lá fora, alguém suspira: - São vidas!... ■<br />

<strong>Novembro</strong> <strong>2<strong>00</strong>7</strong> TempoLivre 57

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