19.04.2013 Views

N.º 187 - Novembro 2007 - 2,00 euros - Inatel

N.º 187 - Novembro 2007 - 2,00 euros - Inatel

N.º 187 - Novembro 2007 - 2,00 euros - Inatel

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

O tigre da Malásia<br />

Andávamos a preparar há um mês o primeiro<br />

folhetim radiofónico da Rádio Moçambique.<br />

Várias sugestões foram consideradas, ponderadas,<br />

relidas. A nossa memória foi buscar<br />

ao sótão, entre poeiras e teias de aranha, logo à entrada,<br />

Ponson du Terrail, Victor Hugo, o pai e o filho<br />

Dumas, Jules Verne, além de outros. No meio ou entretanto,<br />

vinham achegas de todos os lados, sugestões,<br />

pareceres, e perguntas. Muitas. Tema moderno ou antigo?<br />

Político ou aventuroso? Com muitos beijos à mistura<br />

como nos filmes de aventuras ou não?<br />

Finalmente, fizemos uma ampla lista que apresentámos<br />

vaidosos à consideração superior. Tendo ela decidido, e<br />

bem, por uma obra e autor não citados na longa e estafante<br />

lista: Sandokan, o Tigre da Malásia, de Emílio Salgari.<br />

Toda a equipa ficou tão contente com esta escolha<br />

como se tivesse de novo descoberto a penicilina.<br />

Possuía tudo o que era necessário; todos os ingredientes<br />

clássicos e imortais: amor, intriga, ciúme, traição,<br />

morte, luta contra os poderosos, combates marítimos,<br />

tiros, beijos, arrebatamentos patrióticos e amorosos,<br />

tendo até um toque de cultura ocidental com a Pérola<br />

de Labuan, uma menina inglesa de alta estirpe e estonteante<br />

beleza, a estudar o Fur Elise, de Beethoven, no<br />

piano que havia na mansão do governador inglês.<br />

Querem melhor?<br />

Reuniu-se então uma equipa para fazer a adaptação,<br />

nela figurando o poeta e jornalista Leite Vasconcelos<br />

que, com muito humor, dizia que pertencia à Frelima, a<br />

Frente de Libertação da Malásia. Por esta sua graça, foilhe<br />

atribuído o papel de Lord Brooks, que desempenhou<br />

com muita elegância e, obviamente, “british style”.<br />

Muitas e interessantes situações ocorreram durante as<br />

gravações mas uma das mais relevantes foi a fuga pela<br />

floresta de Sandokan, seguido de perto, se bem me lembro,<br />

por Tremal-Naik. Ele, para conseguir correr, tinha<br />

de abrir caminho à catanada à direita e à esquerda, vigorosamente.<br />

Fomos então gravar, comandados pelo<br />

sonoplasta Carlos Silva, para a zona de eucaliptos nos<br />

terrenos da Feira Internacional. Aliás, do outro lado da<br />

rua. Então, o que é que o povo viu, parado, espantado,<br />

confuso e boquiaberto? Um respeitável senhor de cabelo<br />

branco, à frente, com um ferro na mão a dar pancada<br />

nas árvores à direita e à esquerda, um técnico de som a<br />

captar com um gravador portátil, um ajudante e, a<br />

58 TempoLivre <strong>Novembro</strong> <strong>2<strong>00</strong>7</strong><br />

CRÓNICA |ÁLVARO BELO MARQUES<br />

fechar, o realizador. Todos berravam, arfavam, corriam<br />

às voltas das árvores e suavam… As pessoas assistiam e<br />

por certo pensavam que éramos doidos ou que se tratava<br />

do ritual de uma nova seita contra a natureza, pois<br />

pancada nas árvores não faltava.<br />

Um menino dos seus dez anos que vinha pelo trilho<br />

dos eucaliptos com uma gaiola de pássaros na mão,<br />

estava estático, sem saber se deveria agachar-se para<br />

não ser visto ou atirar a gaiola fora e desatar a fugir<br />

com quanta força tivesse. E os olhos dele por certo já<br />

tinham visto muita coisa ruim.<br />

Conseguimos fazer a gravação antes da chegada da<br />

polícia.<br />

Contudo, a mais “significativa” situação passou-se no<br />

último andar da Rádio Moçambique: no enorme salão<br />

de festas, que permitiu a gravação de um som<br />

necessário ao longo de vários episódios, principalmente<br />

nas abordagens e no final das reuniões com<br />

Sandokan. Como se necessitava de muitas vozes (não<br />

sabíamos ao certo quantas pessoas levava um parau), o<br />

mesmo sonoplasta já referido foi buscar todo o pessoal<br />

masculino da discoteca, mais os companheiros que foi<br />

encontrando pelo caminho. No final eram cerca de 30<br />

ou mais os tigres que, bem-dispostos, fizeram a abordagem<br />

ao salão de festas.<br />

Estes candidatos a lugar-tenente de Sandokan,<br />

tinham de berrar várias vezes, a plenos pulmões,<br />

“Morte aos Ingleses”, com mais gana e<br />

força que o povo português nas ruas, em 1891,<br />

aquando do ultimato.<br />

E começou-se a gravação, com várias repetições, como<br />

sempre acontece. Estava tudo a ir bem quando alguém<br />

se lembrou de que tínhamos as janelas todas abertas,<br />

para não haver eco, e do outro lado da rua estavam os<br />

Ingleses, por certo a tomar chá gelado na sua<br />

Embaixada, rodeada de jardins copiados de Kensington.<br />

Parámos precisamente quando à porta surgiu a cabeça<br />

de um segurança, com a arma na mão, a olhar espantado<br />

e ofegante para nós. Tinha ouvido, no piso térreo, os<br />

nossos berros e subido as escadas a correr.<br />

Explicámos o que se passava e o porquê daquela gritaria.<br />

Compreendeu perfeitamente, mas afastou-se a<br />

abanar a cabeça e a murmurar: “Morte aos Ingleses?<br />

Porquê?” ■

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!