N.º 187 - Novembro 2007 - 2,00 euros - Inatel
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O tigre da Malásia<br />
Andávamos a preparar há um mês o primeiro<br />
folhetim radiofónico da Rádio Moçambique.<br />
Várias sugestões foram consideradas, ponderadas,<br />
relidas. A nossa memória foi buscar<br />
ao sótão, entre poeiras e teias de aranha, logo à entrada,<br />
Ponson du Terrail, Victor Hugo, o pai e o filho<br />
Dumas, Jules Verne, além de outros. No meio ou entretanto,<br />
vinham achegas de todos os lados, sugestões,<br />
pareceres, e perguntas. Muitas. Tema moderno ou antigo?<br />
Político ou aventuroso? Com muitos beijos à mistura<br />
como nos filmes de aventuras ou não?<br />
Finalmente, fizemos uma ampla lista que apresentámos<br />
vaidosos à consideração superior. Tendo ela decidido, e<br />
bem, por uma obra e autor não citados na longa e estafante<br />
lista: Sandokan, o Tigre da Malásia, de Emílio Salgari.<br />
Toda a equipa ficou tão contente com esta escolha<br />
como se tivesse de novo descoberto a penicilina.<br />
Possuía tudo o que era necessário; todos os ingredientes<br />
clássicos e imortais: amor, intriga, ciúme, traição,<br />
morte, luta contra os poderosos, combates marítimos,<br />
tiros, beijos, arrebatamentos patrióticos e amorosos,<br />
tendo até um toque de cultura ocidental com a Pérola<br />
de Labuan, uma menina inglesa de alta estirpe e estonteante<br />
beleza, a estudar o Fur Elise, de Beethoven, no<br />
piano que havia na mansão do governador inglês.<br />
Querem melhor?<br />
Reuniu-se então uma equipa para fazer a adaptação,<br />
nela figurando o poeta e jornalista Leite Vasconcelos<br />
que, com muito humor, dizia que pertencia à Frelima, a<br />
Frente de Libertação da Malásia. Por esta sua graça, foilhe<br />
atribuído o papel de Lord Brooks, que desempenhou<br />
com muita elegância e, obviamente, “british style”.<br />
Muitas e interessantes situações ocorreram durante as<br />
gravações mas uma das mais relevantes foi a fuga pela<br />
floresta de Sandokan, seguido de perto, se bem me lembro,<br />
por Tremal-Naik. Ele, para conseguir correr, tinha<br />
de abrir caminho à catanada à direita e à esquerda, vigorosamente.<br />
Fomos então gravar, comandados pelo<br />
sonoplasta Carlos Silva, para a zona de eucaliptos nos<br />
terrenos da Feira Internacional. Aliás, do outro lado da<br />
rua. Então, o que é que o povo viu, parado, espantado,<br />
confuso e boquiaberto? Um respeitável senhor de cabelo<br />
branco, à frente, com um ferro na mão a dar pancada<br />
nas árvores à direita e à esquerda, um técnico de som a<br />
captar com um gravador portátil, um ajudante e, a<br />
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CRÓNICA |ÁLVARO BELO MARQUES<br />
fechar, o realizador. Todos berravam, arfavam, corriam<br />
às voltas das árvores e suavam… As pessoas assistiam e<br />
por certo pensavam que éramos doidos ou que se tratava<br />
do ritual de uma nova seita contra a natureza, pois<br />
pancada nas árvores não faltava.<br />
Um menino dos seus dez anos que vinha pelo trilho<br />
dos eucaliptos com uma gaiola de pássaros na mão,<br />
estava estático, sem saber se deveria agachar-se para<br />
não ser visto ou atirar a gaiola fora e desatar a fugir<br />
com quanta força tivesse. E os olhos dele por certo já<br />
tinham visto muita coisa ruim.<br />
Conseguimos fazer a gravação antes da chegada da<br />
polícia.<br />
Contudo, a mais “significativa” situação passou-se no<br />
último andar da Rádio Moçambique: no enorme salão<br />
de festas, que permitiu a gravação de um som<br />
necessário ao longo de vários episódios, principalmente<br />
nas abordagens e no final das reuniões com<br />
Sandokan. Como se necessitava de muitas vozes (não<br />
sabíamos ao certo quantas pessoas levava um parau), o<br />
mesmo sonoplasta já referido foi buscar todo o pessoal<br />
masculino da discoteca, mais os companheiros que foi<br />
encontrando pelo caminho. No final eram cerca de 30<br />
ou mais os tigres que, bem-dispostos, fizeram a abordagem<br />
ao salão de festas.<br />
Estes candidatos a lugar-tenente de Sandokan,<br />
tinham de berrar várias vezes, a plenos pulmões,<br />
“Morte aos Ingleses”, com mais gana e<br />
força que o povo português nas ruas, em 1891,<br />
aquando do ultimato.<br />
E começou-se a gravação, com várias repetições, como<br />
sempre acontece. Estava tudo a ir bem quando alguém<br />
se lembrou de que tínhamos as janelas todas abertas,<br />
para não haver eco, e do outro lado da rua estavam os<br />
Ingleses, por certo a tomar chá gelado na sua<br />
Embaixada, rodeada de jardins copiados de Kensington.<br />
Parámos precisamente quando à porta surgiu a cabeça<br />
de um segurança, com a arma na mão, a olhar espantado<br />
e ofegante para nós. Tinha ouvido, no piso térreo, os<br />
nossos berros e subido as escadas a correr.<br />
Explicámos o que se passava e o porquê daquela gritaria.<br />
Compreendeu perfeitamente, mas afastou-se a<br />
abanar a cabeça e a murmurar: “Morte aos Ingleses?<br />
Porquê?” ■