descarregar PDF - Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
descarregar PDF - Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
descarregar PDF - Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
LUGARES DE PARTIDA 7<br />
– Muita coisa, pouca coisa? Só o suficiente para<br />
dizer que, se penso em Sagres, é em Sagres <strong>de</strong>sse<br />
outrora que penso.<br />
Regressando lá, a esse outro tempo, em que<br />
se ouvia o pêndulo dos relógios das torres marcarem<br />
as horas íntimas <strong>de</strong> cada um, Sagres <strong>de</strong><br />
outrora não se me afigura um cabo nem um promontório,<br />
mas apenas uma luzinha brilhando no<br />
escuro da penumbra imensa em que se transformou<br />
o passado, a luz intermitente dum farol que<br />
a espaços riscava a noite, quando a noite ainda<br />
podia ser escura. Porque <strong>de</strong> dia a terra esmorecia<br />
<strong>de</strong>sse lado, as formas das casas iam-se per<strong>de</strong>ndo<br />
ao longe, confundindo-se com a rala vegetação<br />
da paisagem, e quando a lonjura quebrava a linha<br />
perceptível e se transformava ela mesma no próprio<br />
fio do horizonte, aí a distância tornava-se<br />
lilás, e <strong>de</strong>saparecia <strong>de</strong> encontro ao mar azul que<br />
por sua vez também <strong>de</strong>saparecia no céu anilado.<br />
Sagres encontrava-se lá, um espaço imerso nesse<br />
lugar vago, on<strong>de</strong> a Terra acabava diante da nossa<br />
vista e <strong>de</strong>saparecia como uma espécie <strong>de</strong> tira <strong>de</strong><br />
fumo. Quando o Outono chegava, a distância<br />
transformava-se em alguma coisa mais palpável,<br />
passava a ser uma proveniência, uma direcção<br />
precisa, um ponto car<strong>de</strong>al <strong>de</strong> on<strong>de</strong> sopravam os<br />
ventos que fustigavam as árvores. Era o local <strong>de</strong><br />
on<strong>de</strong> provinham as chuvas arrebatadas <strong>de</strong> Novembro,<br />
as que entravam pela chaminé e aspergiam<br />
a toalha da mesa <strong>de</strong> gotas e salpicos, atingiam<br />
as nossas camas duma humida<strong>de</strong> ainda<br />
quente. Mas Sagres, o verda<strong>de</strong>iro Sagres <strong>de</strong> outrora,<br />
era muito mais do que uma barra esfumada<br />
ou as intempéries que <strong>de</strong> lá provinham.<br />
Sagres era uma pátria nocturna, uma espécie<br />
<strong>de</strong> olho vigilante na noite que vinha ter<br />
connosco à varanda, quando subir as escadas<br />
durante a noite, para ver as estrelas ou distinguir<br />
o rebordo das nuvens, se transformava numa<br />
aventura nas nossas parcas vidas. Também a<br />
Geografia ainda era uma abstracção, mas o que<br />
a nossa mãe contava é que se caminhássemos<br />
por cima do mar, a partir daquela luz, e seguíssemos<br />
sempre em frente, se nos imaginássemos<br />
permanentemente a andar por cima das ondas,<br />
apesar das nossas pernas curtas, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> dois,<br />
três anos, chegaríamos à América do Norte. Se<br />
caminhássemos para sul iríamos ter a África, se<br />
nos dirigíssemos para sudoeste – e ela indicava<br />
essa direcção imprecisa com o seu braço, que<br />
nos parecia gigante – então chegaríamos aos<br />
países da América do Sul. Demoraríamos muito,<br />
9<br />
sofreríamos muito, no entanto seria bom, pois<br />
se lá chegássemos, em todos esses lugares, encontraríamos<br />
parentes.<br />
É possível que essas cenas <strong>de</strong> explicação <strong>de</strong><br />
geografia humana familiar acontecessem também<br />
<strong>de</strong> dia, mas a imagem <strong>de</strong>sse Sagres <strong>de</strong> outrora,<br />
sempre a associo às explicações da noite.<br />
A nossa varanda abria-se exactamente a meio do<br />
Algarve. Mais próximo brilhava o farol do Cabo<br />
Carvoeiro, <strong>de</strong>pois piscava aquele frouxo olho <strong>de</strong><br />
Sagres, tremido, longínquo. Quanto mais tremido<br />
e mais distante, mais doloroso, mais potente,<br />
como se o seu braço <strong>de</strong> luz fizesse a ponte entre<br />
nós que havíamos ficado e todos esses que haviam<br />
partido. Não o nego, aquela luz nas noites<br />
<strong>de</strong> outrora era um lugar que separava e unia a<br />
nossa gente. Gente sem passado nem futuros assinaláveis,<br />
gente que era apenas um só corpo<br />
<strong>de</strong>sunido, disperso pelo mundo. A verda<strong>de</strong> é<br />
que ninguém dali havia partido, àquele lugar<br />
ninguém iria chegar, e no entanto, no relato escuro<br />
da varanda, era como se tudo ali tivesse<br />
acontecido, como se Lisboa, seus cais e aeroporto,<br />
on<strong>de</strong> as partidas reais se davam, não<br />
existissem em lugar nenhum. A partir da nossa<br />
varanda, aquele lugar sudoeste parecia ser o<br />
único ponto car<strong>de</strong>al das nossas vidas. Mas, logo<br />
na primeira curva da infância, viria a História e<br />
viriam os mitos.<br />
Primeiro, a História. As coisas passaram-se<br />
assim – a professora do Liceu mandou apagar<br />
da cabeça todas as histórias <strong>de</strong> luzes e varandas,<br />
para nos contar como certo dia, quinhentos<br />
anos antes, um príncipe português, casto e visionário,<br />
tinha resolvido abandonar a corte, armado<br />
<strong>de</strong> seus cavalos e escu<strong>de</strong>iros, para vir assentar<br />
casa e villa no Sul <strong>de</strong> Portugal, e aqui dar<br />
início aos Descobrimentos Marítimos. A professora<br />
parecia estar enamorada <strong>de</strong>sse príncipe.<br />
Segundo a sua narrativa <strong>de</strong> fábula, o príncipe<br />
havia <strong>de</strong>scoberto, ao atravessar o Algarve, em<br />
direcção do Norte <strong>de</strong> África, que o Promontório<br />
<strong>de</strong> Sagres, muito mais do que um rochedo,<br />
era uma gran<strong>de</strong> mão aberta cujo <strong>de</strong>do indicador<br />
estendido apontava para o futuro do Mar. Em<br />
sua bata branca <strong>de</strong> oficial impecável, a professora<br />
falava da villa, do príncipe, dos sábios italianos<br />
que ali tinham chegado para falarem da rota<br />
das estrelas, dos engenhos, dos barcos e dos<br />
mapas da pequena Terra Cógnita da época, e a<br />
mão aberta do Promontório <strong>de</strong> Sagres, mais do<br />
que um local <strong>de</strong> partida era um local <strong>de</strong> chegada