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MEMÓRIA DE FOGO 44<br />
45<br />
Entre as tradições pré-colombinas da<br />
América do Sul, recolhidas pela cronística<br />
espanhola do século XVI, existe um relato<br />
que nos chama muito a atenção, não só<br />
pela forma, mas também pelo conteúdo.<br />
Recompilou-o López <strong>de</strong> Gómara [1552].<br />
Reza assim: “Dizem que no princípio do<br />
mundo veio pela parte setentrional um homem<br />
cujo nome era Con. Não tinha ossos.<br />
Caminhava muito e ligeiro e, para que o<br />
caminho fosse mais curto, baixava as serras<br />
e levantava os vales com a força da vonta<strong>de</strong><br />
e da palavra, como filho do Sol que dizia<br />
ser. Encheu a terra com homens e mulheres,<br />
<strong>de</strong>u-lhes muita fruta e pão e todas as<br />
coisas necessárias para viver. Mas um dia<br />
zangou-se com alguma ofensa que eles lhe<br />
fizeram. Então converteu a terra boa que<br />
lhes tinha dado em areais secos e estéreis,<br />
como se vêem hoje na costa, tirou-lhes a<br />
chuva e nunca mais ali choveu. Só lhes <strong>de</strong>ixou,<br />
por pieda<strong>de</strong>, os rios para que pu<strong>de</strong>ssem<br />
manter-se com o regadio e trabalho.<br />
Apareceu então Pachacama, também filho<br />
do Sol e da Lua, que significa Criador, e<br />
<strong>de</strong>sterrou Con, transformando os seus homens<br />
em gatos com riscas pretas. E <strong>de</strong>pois<br />
criou novamente os homens e mulheres<br />
como hoje são, dando-lhes as coisas que<br />
têm agora. Para agra<strong>de</strong>cer-lhe essas mercês,<br />
proclamaram-no seu Deus e assim o guardaram<br />
e honraram em Pachacama, até que<br />
os cristãos o <strong>de</strong>sterraram do lugar.”<br />
O templo <strong>de</strong> Pachacama ficava perto<br />
<strong>de</strong> Lima, era famosíssimo pelos seus oráculos,<br />
visitado por todos com muita <strong>de</strong>voção.<br />
Aparecia aí o diabo e falava com os sacerdotes<br />
que lá moravam. Os espanhóis que o<br />
visitaram com Fernando Pizarro, após a<br />
prisão <strong>de</strong> Atabalipa, <strong>de</strong>spojaram o templo<br />
do muito ouro e prata que possuía, e com<br />
a cruz e o sacramento também cessaram os<br />
oráculos e as visões.<br />
Afirmam também que durante muito<br />
tempo choveu tanto que inundou todas as<br />
terras baixas, e todos os homens, aqueles<br />
que pu<strong>de</strong>ram, refugiaram-se numas covas<br />
feitas em serras muito altas, com portas<br />
pequeninas para que a água não entrasse.<br />
Meteram lá os víveres e os animais que cabiam.<br />
Quando sentiram que já não chovia,<br />
soltaram dois cães. E, como eles voltassem<br />
limpos, mas molhados, viram que as chuvas<br />
não tinham cessado. Depois soltaram<br />
mais cães que voltaram com lama, mas enxutos,<br />
sinal <strong>de</strong> que as chuvas tinham acabado.<br />
Então saíram a ocupar as terras. E o<br />
que mais trabalho <strong>de</strong>u foi o gran<strong>de</strong> número<br />
<strong>de</strong> cobras gran<strong>de</strong>s que ainda existiam.<br />
Tinham-se criado na humida<strong>de</strong> e no lodo<br />
das cheias. Mas, finalmente, mataram-nas e<br />
agora vivem em segurança. Acreditam também<br />
no fim do mundo que será precedido<br />
por uma gran<strong>de</strong> seca. Nela se per<strong>de</strong>rão o<br />
Sol e a Lua que adoram; por isso dão gran<strong>de</strong>s<br />
berros e choram quando há eclipses,<br />
sobretudo do Sol, porque pensam que vão<br />
<strong>de</strong>saparecer, não só eles mas também o<br />
mundo inteiro.<br />
Do <strong>de</strong>us Con, pouco ou nada sabemos.<br />
Mas os vocabulários antigos dizem que essa<br />
palavra, usada nas línguas dos territórios<br />
nortenhos andinos, concretamente em<br />
Huamachuco, significava «água». É um<br />
bom ponto <strong>de</strong> partida porque o mito dá<br />
uma <strong>de</strong>finição que exprime metaforicamente<br />
as formas <strong>de</strong> um rio ou <strong>de</strong> um curso<br />
<strong>de</strong> água que se vai adaptando às condições<br />
geográficas por on<strong>de</strong> passa: «Con não tem<br />
ossos», isto é, não tem uma estrutura fixa.<br />
Ao contrário, serpenteia, transforma-se em<br />
lago, lança-se por uma ribanceira, atira-se<br />
em catarata e corre ligeiro porque amansa<br />
os cumes das montanhas e torna mais acessíveis<br />
os vales. O castigo que Con <strong>de</strong>u aos<br />
que ele tinha criado também está relacionado<br />
com a água. Privou as gentes <strong>de</strong>la e secou-lhes<br />
a terra. Há uma outra referência à<br />
água. É o dilúvio. Não diz o relato que tal<br />
acontecera em tempos do <strong>de</strong>us Con. Mas<br />
também se po<strong>de</strong> supor que se trata <strong>de</strong> uma<br />
das muitas expressões das chuvas abundantes<br />
que, <strong>de</strong> tempos a tempos, aparecem na<br />
costa peruana, fenómeno conhecido mundialmente<br />
como «Niño» ou Menino, em<br />
referência à época em que ocorre, ou seja,<br />
pelo Natal, tempo do Menino Jesus. Dizem<br />
os especialistas que a subida das águas frias<br />
do hemisfério sul fica aquém dos limites<br />
que em tempos normais atinge. Daí resultam<br />
as temperaturas muito altas na costa<br />
norte do Peru e as consequentes chuvas diluvianas,<br />
com outras expressões meteorológicas<br />
continentais.