descarregar PDF - Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
descarregar PDF - Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
descarregar PDF - Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
CRUZEIRO DO SUL 118<br />
119<br />
Porque crescem os fetos<br />
nos cemitérios<br />
esquecidos?<br />
Porque escolhem<br />
as pegas esses lugares<br />
para ensaiar<br />
os seus grasnidos?<br />
Porque é o musgo<br />
o sinónimo<br />
do esquecimento?<br />
holan<strong>de</strong>ses. Não soube do fim da República em<br />
Espanha, nem da morte <strong>de</strong> García Lorca, nem da<br />
morte <strong>de</strong> Machado, nem da morte <strong>de</strong> Miguel<br />
Hernán<strong>de</strong>z, nem da morte da poesia quando caiu<br />
a última barricada do bairro madrileno <strong>de</strong> Lavapies.<br />
Não soube que os nazis invadiram a Holanda<br />
e que o horror marchava com música wagneriana<br />
por toda a Europa.Tampouco soube que seu<br />
pai organizava a partir <strong>de</strong> Trompeloup, próximo<br />
<strong>de</strong> Bordéus, a maior operação <strong>de</strong> salvamento <strong>de</strong><br />
republicanos espanhóis perseguidos por Franco e<br />
pelas autorida<strong>de</strong>s pró-nazis da França ocupada. A<br />
água que afogava a sua cabeça manteve-a flutuando<br />
no ventre benigno dos ausentes, e negou-se a<br />
nascer num mundo <strong>de</strong> medo e espanto.<br />
O velho cemitério <strong>de</strong> Gauda é um monumento<br />
nacional, assim mo explica o meu amigo<br />
Gerd Kooster, nenhuma sepultura po<strong>de</strong> ser aberta<br />
ou fechada, <strong>de</strong> tal maneira que a sua eternida<strong>de</strong> é<br />
a mesma frágil eternida<strong>de</strong> do planeta.<br />
Após percorrer durante uma hora os estreitos<br />
carreiros do cemitério, invadidos por uma vegetação<br />
em que predomina o ténue ver<strong>de</strong> da humida<strong>de</strong>,<br />
encontramos a campa <strong>de</strong> Malva Marina, essa<br />
pequena presença do sangue <strong>de</strong> um dos maiores<br />
poetas <strong>de</strong> todos os tempos, e talvez a responsável<br />
pelo ricto <strong>de</strong> tristeza que sempre acompanhou<br />
o seu rosto, como se a água que afogava<br />
Malva Marina se tivesse instalado nas suas olheiras<br />
eternas.<br />
A inscrição que cobre essa lápi<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> cresce<br />
o musgo, é lacónica: «Aquí yace nuestra querida<br />
Malva Marina Reyes nacida en Madrid el 18<br />
<strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1934/ fallecida en Gouda el 2 <strong>de</strong><br />
Marzo <strong>de</strong> 1943.»<br />
Porque crescem os fetos nos cemitérios esquecidos?<br />
Porque escolhem as pegas esses lugares<br />
para ensaiar os seus grasnidos? Porque é o musgo<br />
o sinónimo do esquecimento? Porque escreve<br />
Neruda, no seu poema «Farawell»: «<strong>de</strong>s<strong>de</strong> el<br />
fondo <strong>de</strong> ti y arrodillado/ un niño triste como yo<br />
nos mira»?<br />
Salve, Pablo, Salve Poeta, como tão bem escreveu<br />
Atahualpa Yupanqui, «gracias por la ternura<br />
que nos diste». Quando erguer a minha taça<br />
para brindar pelos teus cem anos <strong>de</strong> Poeta e companheiro,<br />
far-te-ei essas perguntas e muitas outras.<br />
E quando regressar à Isla Negra, às tuas carrancas<br />
<strong>de</strong> proas, às tuas colecções <strong>de</strong> garrafas e<br />
objectos infantis, olharei à beira das escarpas on<strong>de</strong><br />
ainda crescem as Malvas embaladas pela salobre<br />
brisa Marina.