09.05.2013 Views

Antropofagia à moda da casa - Conexão Professor

Antropofagia à moda da casa - Conexão Professor

Antropofagia à moda da casa - Conexão Professor

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

ina baianas, índios, condessas, colombinas e o que<br />

mais dispuser na mistura antropofágica do carnaval.<br />

O prestígio europeu foi visceralmente abalado pela<br />

I Guerra Mundial. A Belle Époque seria a preliminar<br />

de um processo contínuo de ascese em direção <strong>à</strong> civilização.<br />

A Europa teria domesticado os cavalos do<br />

Apocalipse e seus cavaleiros, desempregados, teriam<br />

se convertido em cavalheiros nos salões <strong>da</strong> burguesia<br />

ascendente. Com a I Guerra Mundial, o banho de sangue<br />

<strong>da</strong> juventude europeia e as matanças industriais<br />

de populações civis desmentiram a profecia positivista.<br />

A razão e a ciência não eram dominantes, mas<br />

sim domina<strong>da</strong>s pela evolução capitalista. As guerras<br />

coloniais haviam sido introjeta<strong>da</strong>s pela “civilização”<br />

europeia.<br />

Jovens brasileiros perceberam o fracasso cultural<br />

do Velho Mundo. Não precisaram, como Picasso,<br />

procurar inspiração nas esculturas de Benin, como<br />

Brancusi, nos totens esquimós ou como Matisse, no<br />

cromatismo japonês e polinésio. Estes jovens perceberam<br />

que, olhando para o “povão” brasileiro, tinham<br />

formas e conteúdos a serem deglutidos. Tarsila do<br />

Amaral busca a plastici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />

len<strong>da</strong>s índias; Di Cavalcanti busca a<br />

sensuali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mestiça brasileira;<br />

Menotti Del Picchia, o linguajar caipira;<br />

Portinari, os pés do trabalhador<br />

do café; Villa Lobos, to<strong>da</strong>s as tonali<strong>da</strong>des<br />

musicais; Câmara Cascudo,<br />

todo e qualquer folclore. Uma plêiade<br />

de escritores se debruça sobre fatos,<br />

coisas e falares regionais: o gaúcho,<br />

o jangadeiro, o mascate, o engenho<br />

açucareiro, a fazen<strong>da</strong><br />

de cacau, a mulher<br />

nordestina, o cangaceiro,<br />

o mineiro, o colhedor<br />

de erva-mate,<br />

de borracha etc. A<br />

antropofagia tropical<br />

resgata a versão colonial<br />

digeri<strong>da</strong> de Portugal:<br />

descobre Ouro<br />

Preto, Mariana e o<br />

Aleijadinho. A feijoa<strong>da</strong><br />

e a goiaba<strong>da</strong> com<br />

queijo caminham do<br />

trivial para o banquete<br />

orgulhoso. O violão<br />

substitui o piano na<br />

sala de visitas. O gigante<br />

Gilberto Freire<br />

faz a prospecção dos<br />

desvãos <strong>da</strong> <strong>casa</strong> senhorial<br />

como lugar de<br />

simbioses, sincretis-<br />

mos e metamorfoses<br />

de protobrasili<strong>da</strong>de;<br />

24<br />

LEITURA, LEITURAS<br />

Erro de Português<br />

vê no senhor de escravos um canibal dominante e faminto<br />

e explicita uma dialética <strong>casa</strong> grande-senzala.<br />

O Rio de Janeiro serve como ilustração <strong>da</strong> redescoberta.<br />

O francófilo Pereira Passos, apoiado pelo<br />

paulista Rodrigues Alves, fez do Rio um porto moderno<br />

e um cartão de visitas dizendo ao mundo que<br />

“somos civilizados; construímos a Paris dos Trópicos;<br />

temos um Theatro Municipal que copia o Opéra de<br />

Paris; temos uma Aveni<strong>da</strong> Central”, com edifícios de<br />

telhados próprios para a neve escorregar. Não permitimos<br />

nenhuma perturbação tropical nos jardins geométricos<br />

<strong>da</strong> Beira Mar. Aclimatamos os par<strong>da</strong>is – uma<br />

praga – para evocar os Jardins de Luxemburgo. Na<br />

déca<strong>da</strong> de 30, o desfile <strong>da</strong>s escolas de samba passou<br />

a ser um evento <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Nos anos 50, o Rio, o<br />

fraque e a estola de vison (manti<strong>da</strong> climatiza<strong>da</strong> pela<br />

Casa Canadá) para a frequência ao Municipal foram<br />

substituídos pelo pré-biquíni e calção de banho em<br />

Copacabana, Princesinha do Mar. O Copacabana Palace<br />

permitiu a construção de um colar art déco de edifícios<br />

para emoldurar as areias; os “fechos” do colar,<br />

os fortes militares, completavam a ilusão que fez do<br />

Rio objeto de desejo. A Ci<strong>da</strong>de Ma-<br />

OSWALD DE ANDRADE<br />

Quando o português chegou<br />

Debaixo de uma bruta chuva<br />

Vestiu o índio<br />

Que pena!<br />

Fosse uma manhã de sol<br />

O índio tinha despido<br />

O português<br />

Manufacture des Gobelins (1692-1700), visão europeiza<strong>da</strong><br />

dos nossos índios<br />

ravilhosa apagou a Paris Tropical.<br />

A elite do poder, do ter e do<br />

saber importa desde a fórmula federativa<br />

(no Novo Mundo, os Estados<br />

Unidos <strong>da</strong> América do Norte e os Estados<br />

Unidos do Brasil) até o neoliberalismo,<br />

o modelo de metas de<br />

inflação, a sugestão de autonomia<br />

para o Banco Central, o baile funk,<br />

o jazz, sabores, tonali<strong>da</strong>des e ameni<strong>da</strong>des.<br />

Importa cultura e<br />

o povão canibaliza para<br />

subsistir. Ao canibalizar,<br />

o povo cria. A geriatria<br />

do objeto durável<br />

faz o veículo automotor<br />

sobreviver <strong>à</strong> segun<strong>da</strong>,<br />

terceira, enésima mão<br />

– existe o neoartesão<br />

mecânico, que reproduz<br />

a peça de reposição do<br />

modelo fora de uso no<br />

primeiro mundo; existe<br />

o lanterneiro genial<br />

que, como um Pitanguy<br />

do povão, preserva geladeiras,<br />

televisões e, mais<br />

recentemente, computadores.<br />

Com a geriatria,<br />

o povo cria empregos e<br />

ren<strong>da</strong>, microempresas<br />

e viabiliza o acesso popular<br />

<strong>à</strong>s mercadorias<br />

importa<strong>da</strong>s; a geriatria<br />

permite <strong>à</strong> montadora de

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!