Antropofagia à moda da casa - Conexão Professor
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á se tornou lugar-comum falar que o gosto pela leitura<br />
se cria em <strong>casa</strong>. A criança que ouve histórias, que<br />
cresce vendo pai e mãe agarrados num livro e só adivinha<br />
o mundo que existe além <strong>da</strong>quelas letrinhas pretas<br />
no papel branco, que tem em <strong>casa</strong> pelo menos um cantinho<br />
especial onde moram os livros é uma criança que tem<br />
maiores chances de vir a ser um leitor ou leitora.<br />
Quando a reali<strong>da</strong>de familiar é difícil, a escola<br />
tenta preencher esta lacuna. <strong>Professor</strong> e biblioteca<br />
passam a ser a ponte de mão dupla mais importante<br />
entre a criança e o livro. Mas, atenção: leitura não<br />
pode ser confundi<strong>da</strong> com obrigação escolar. Ler um livro<br />
não precisa ser dever de <strong>casa</strong>. Livro combina com<br />
liber<strong>da</strong>de. O ideal é ca<strong>da</strong> sala de aula ter um cantinho<br />
de leitura onde os livros sejam oferecidos livremente.<br />
A criança precisa ter liber<strong>da</strong>de de escolha: ela pode<br />
abandonar um que não despertou seu interesse, pode<br />
escolher outro, os alunos podem discutir entre si, sem<br />
a interferência constante dos adultos.<br />
É importantíssimo que haja boa oferta de livros<br />
de literatura. Livros informativos são sempre bem-vindos,<br />
mas a literatura é o campo fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de<br />
e <strong>da</strong> paixão de ler. É nesse terreno que se formam<br />
leitores para to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>.<br />
O melhor de tudo é que o professor seja um leitor.<br />
Paixão gera paixão. Um professor apaixonado pela<br />
leitura é meio caminho an<strong>da</strong>do para a criação de novas<br />
gerações de leitores.<br />
Uma biblioteca escolar convi<strong>da</strong>tiva é o território<br />
ideal para alimentar a imaginação de jovens leitores.<br />
Lá, eles vão “conversar” com escritores de ontem, de<br />
hoje e de sempre, como Monteiro Lobato, Cecília Meireles,<br />
Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Sylvia Orthof<br />
e centenas de outros. De lá, vão carregar a paixão <strong>da</strong><br />
leitura por to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>.<br />
Conheço bem o itinerário de um desses leitores<br />
apaixonados. Começou lá atrás, com histórias conta<strong>da</strong>s<br />
pelo padrinho e pela bisavó. Continuou quando ele pedia<br />
de presente de aniversário e de Natal os livros de Monteiro<br />
Lobato, até completar a coleção. Na biblioteca do colégio,<br />
monta<strong>da</strong> por seu pai, encontrou um livro sobre um<br />
NOSSA BIBLIOTECA<br />
HISTÓRIA DE PAIXÃO<br />
LUIZ RAUL MACHADO<br />
cavaleiro an<strong>da</strong>nte deslocado e tresloucado em façanhas<br />
pelo mundo, acompanhado de um fiel escudeiro trapalhão<br />
(Vi<strong>da</strong> e proezas de Dom Quixote, a<strong>da</strong>ptação de Erich<br />
Kästner). Ele já conhecia de sobra o Dom Quixote <strong>da</strong>s<br />
crianças, de Lobato. Tinha lido e relido (quantas vezes?)<br />
a visita do cavaleiro ao sítio de Dona Benta, no livro O<br />
Picapau Amarelo, quando os personagens dos contos e<br />
fábulas de todos os tempos se mu<strong>da</strong>m para o sítio dos<br />
sonhos <strong>da</strong>s crianças brasileiras. Ali, espantosamente,<br />
Emília diz: “Acho D. Quixote o suco dos sucos. A loucura<br />
chegou ali e parou. Adoro os loucos. São as únicas gentes<br />
interessantes que há no mundo”.<br />
Tempos depois, quando este leitor se apaixonou pela<br />
poesia de Carlos Drummond de Andrade, descobriu que ele<br />
fez uma série de poemas sobre o cavaleiro maravilhoso, a<br />
partir de quadros de Portinari:<br />
O DERROTADO INVENCÍVEL<br />
(...) / Doído, / moído, / caído, / perdido, / curtido,<br />
/ morrido, / eu sigo, / persigo / o lunar / intento:<br />
/ pela justiça no mundo, / luto, iracundo.<br />
Descobriu depois, em Euclides <strong>da</strong> Cunha, um belo<br />
soneto ao Quixote. O leitor procurou boas traduções <strong>da</strong><br />
íntegra do romance que muitos e grandes consideram o<br />
primeiro e o mais importante do Ocidente. Deleitou-se<br />
então com as aventuras completas do apaixonado errante<br />
pela cavalaria e pela bela Dulcinéia.<br />
Já beirando a velhice, comprou a edição em espanhol,<br />
comemorativa do quarto centenário <strong>da</strong> obra.<br />
Agora, ele namora o livro em sua estante, pega, folheia,<br />
lê trechos e espera o dia de viajar do prólogo<br />
até o fim. Agora, ao alcance <strong>da</strong> mão e <strong>da</strong> imaginação,<br />
o Quixote na língua em que foi concebido pelo genial<br />
Miguel. O leitor apaixonado alimenta sua paixão.<br />
Este leitor sou eu.<br />
LUIZ RAUL MACHADO<br />
Escritor<br />
Especialista em literatura infantil<br />
Autor, entre outros, de Chifre em cabeça de cavalo, Fulustreca<br />
e História de Oe<br />
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