Antropofagia à moda da casa - Conexão Professor
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Diz-se habitualmente que o morador <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />
de Salvador an<strong>da</strong> desnorteado no interior, no<br />
sertão. Ele está tão acostumado com a vista e a<br />
presença do mar que não imagina uma natureza sem<br />
água salga<strong>da</strong>, on<strong>da</strong>s, navios cargueiros e a cultura <strong>da</strong><br />
pesca e do mergulho. O universo de Iemanjá é parte<br />
importante do imaginário do povo do litoral baiano e<br />
<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Salvador, porto de saí<strong>da</strong> e de chega<strong>da</strong>,<br />
ponto há séculos de viajantes livres ou forçados.<br />
Então pensei que seria oportuno publicar de vez<br />
em quando uma coluna dedica<strong>da</strong> ao tema “O livro e o<br />
mar”, ou seja, obras de literatura ou poesia que têm o<br />
mar como fonte de inspiração e assunto central.<br />
Escolhi como primeiro texto <strong>da</strong> coluna “marítima”<br />
um poema do, provavelmente, maior poeta italiano<br />
do século XX e Prêmio Nobel de Literatura em<br />
1975, Eugenio Montale. Montale nasceu na região <strong>da</strong><br />
Ligúria, no norte <strong>da</strong> Itália, cheia de paisagens deslumbrantes,<br />
com vista para o mar Tirreno. A Ligúria é<br />
também a região de Gênova, pátria de Cristóvão Colombo<br />
e de outros navegantes e descobridores de mundos<br />
novos. Montale brincava dizendo que sua natureza era<br />
de homem que prefere ficar olhando para o mar mais<br />
do que os que se aventuram pelas on<strong>da</strong>s. Mas vamos<br />
ao poema, de 1940, no original e na lin<strong>da</strong> tradução em<br />
português de Mauricio Santana Dias.<br />
LEITURA, LEITURAS<br />
O LIVRO E O MAR<br />
Portofino, na Ligúria, Itália<br />
PAOLO SPEDICATO<br />
Salvador, Bahia<br />
LUNGOMARE<br />
Il soffio cresce, il buio è rotto a squarci,<br />
E l’ombra che tu mandi sulla fragile<br />
Palizzata s’arriccia. Troppo tardi<br />
Se vuoi esser te stessa! Dalla palma<br />
Tonfa il sorcio, il baleno è sulla miccia,<br />
Sui lunghissimi cigli del tuo sguardo.<br />
BEIRA-MAR<br />
O sopro cresce, o breu se rompe em partes,<br />
e a sombra que seu corpo imprime <strong>à</strong> frágil<br />
paliça<strong>da</strong> se enscrespa. E’ muito tarde<br />
querer ser você mesma! Da palmeira<br />
tomba o rato, o relampago é rastilho<br />
nos longuíssimos cílios de sua vista.<br />
Típica do estilo do poeta é a escolha <strong>da</strong><br />
forma do “poema breve”, bom a evidenciar o pensamento<br />
concentrado e antirretórico, e, em geral,<br />
imagens <strong>da</strong> natureza que são quase iluminações,<br />
“relâmpagos” de ver<strong>da</strong>des dramáticas, vagamente<br />
existencialistas.<br />
Outra caraterística do grande poeta italiano é<br />
o constante diálogo com evanescentes personagens<br />
femininas: Evelina, Dora Markus, Clizia…, companheiras<br />
de vi<strong>da</strong> mas também enigmáticas presenças<br />
que aju<strong>da</strong>m a enfrentar as amarguras <strong>da</strong> existência<br />
humana, vista com sentimento pessimista,<br />
ain<strong>da</strong> mais dramático <strong>da</strong><strong>da</strong>s as circunstâncias<br />
<strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial e <strong>da</strong> época<br />
<strong>da</strong>s ditaduras na Europa, quando o poema foi<br />
escrito.<br />
Impressiona o elemento <strong>da</strong> palmeira na<br />
costa marítima <strong>da</strong> Ligúria, que aproxima visualmente<br />
o poema <strong>à</strong> paisagem brasileira e ao<br />
nosso viver, filosófico e/ou poético, <strong>à</strong> beira do<br />
oceano Atlântico. E, muito particularmente,<br />
ao litoral <strong>da</strong> Bahia, onde vivo.<br />
PAOLO SPEDICATO<br />
Graduado em Letras Italianas – Universi<strong>da</strong>de de Pádua<br />
Doutor em Literatura Italiana – New York University<br />
Foi <strong>Professor</strong> na UFES e Visitante na UFRJ e USP<br />
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