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Antropofagia à moda da casa - Conexão Professor

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veículos um mercado<br />

ampliado de primeira<br />

mão e ao banco endivi<strong>da</strong>r<br />

a família que<br />

não presta atenção ao<br />

juro, calcula apenas o<br />

valor <strong>da</strong> prestação.<br />

A criativi<strong>da</strong>de<br />

popular transformou<br />

o football importado<br />

pelo inglês colonizador.<br />

A elite do ter, com<br />

a miragem do anglicismo,<br />

fundou clubes<br />

de football e regatas.<br />

A bola é redon<strong>da</strong>, barata<br />

e pode ser improvisa<strong>da</strong><br />

com meia velha;<br />

o campo pode ser<br />

qualquer terreiro – e o<br />

povão canibalizador<br />

inventou o futebol.<br />

O inglês chutava a<br />

ball, mas o brasileiro<br />

quer dominar a bola.<br />

Futebol virou paixão.<br />

Qualquer lugar pode<br />

ter seu time de várzea e disputar com o time do lugar<br />

vizinho fazendo o ritual de construção de identi<strong>da</strong>de,<br />

que Lévi-Strauss identificou pela oposição ao idêntico.<br />

Viramos, em 1958, campeões do mundo. Garrincha,<br />

torto, surgiu em Pau Grande (RJ), a partir do<br />

time de uma fábrica de tecidos de proprie<strong>da</strong>de britânica.<br />

No final dos 50, completamos nosso desempenho<br />

construindo Brasília mais além do território real<br />

ocupado.<br />

Em resumo, o povão cria e a elite come criação.<br />

O povão foi expulso <strong>da</strong>s escolas de samba do grupo<br />

especial, não tem ren<strong>da</strong> para comprar a fantasia, nem<br />

para um lugar na arquibanca<strong>da</strong>. O Sambódromo é negócio<br />

e o espetáculo é para a elite. O criativo povão já<br />

fez renascer o bloco de rua.<br />

A feijoa<strong>da</strong> é guloseima em hotéis de luxo para<br />

atrair turista, mas em qualquer botequim tem uma<br />

boa feijoa<strong>da</strong>. O povão já superou o fast-food com a<br />

comi<strong>da</strong> a quilo, que permite ao brasileiro canibal misturar<br />

feijão com sashimi, sala<strong>da</strong> verde com talharim<br />

e o que mais a imaginação e o apetite permitirem.<br />

O povão, com pouco ter e poder, preserva o saber<br />

cultural brasileiro. Recicla tudo naturalmente, do<br />

auto <strong>à</strong> latinha de alumínio. Inventa a favela, a música<br />

popular, idealiza o malandro, tropicaliza o salpicão e<br />

faz com este prato uma multiplicação do frango. Organiza<br />

festas e novas religiões (é capaz de praticar várias<br />

ao mesmo tempo). Preserva o idioma, pois o maneja<br />

dinamicamente. O léxico é campo de aclimatação dos<br />

pe<strong>da</strong>ços que canibaliza. Enquanto a elite procura uma<br />

residência alternativa em Miami, seus epígonos procu-<br />

LEITURA, LEITURAS<br />

ram reproduzir o subúrbio<br />

norte-americano nas Alphavilles<br />

e socializar seus<br />

filhos no condomínio e no<br />

shopping, o povão canibaliza<br />

o baile funk. O estu<strong>da</strong>nte<br />

brasileiro despreza<br />

Camões e, em vez de imprimir<br />

e apagar, “printa” e<br />

“deleta”; o povão pega no<br />

funk uma música importa<strong>da</strong><br />

que se refere a tonight<br />

e a transforma na “Melô<br />

do Tomate”. Ligado nas<br />

sonori<strong>da</strong>des, este cultor de<br />

Camões transmuta o sítio<br />

do irlandês O’Higgins em<br />

Favela do Arrelia; o sítio<br />

do escocês William em um<br />

bairro, a Ilha. O Visconde<br />

de Asseca deu origem <strong>à</strong><br />

Praça Seca.<br />

Ao invés de constatar<br />

um Brasil com uma<br />

elite que importa e um povão<br />

que canibaliza, espero<br />

um projeto nacional para o<br />

Brasil de amanhã, onde estaremos abertos ao mundo e<br />

conscientes de nossa identi<strong>da</strong>de e soberania. Parafraseando<br />

Martinho <strong>da</strong> Vila, iremos “devagar, devagarzinho”<br />

em direção <strong>à</strong> premonição de Duque Estra<strong>da</strong>, que<br />

intuiu o “berço esplêndido” e atribuiu aos nossos bosques<br />

mais vi<strong>da</strong> e <strong>à</strong> nossa vi<strong>da</strong> mais amores. Neste Brasil<br />

de amanhã, Zeca Pagodinho não precisará se referir<br />

a caviar com “não sei, nunca vi, eu só ouço falar”. Zeca,<br />

estamos precisando de um samba que fale do futuro, que<br />

veja no baiano a vanguar<strong>da</strong> <strong>da</strong> civilização brasileira; que<br />

veja no mineiro a sabedoria; no paulista o maquinista <strong>da</strong><br />

locomotiva; no forró do nordestino a criativi<strong>da</strong>de lúdica<br />

do povão; no carioca, o brasileiro que não tem medo de<br />

praça cheia e que faz a maior festa mundial de fim de ano<br />

(três milhões reunidos, sem polícia nem violência) para<br />

recuperar o sonho de um futuro sempre postergado.<br />

A sugestão modernista <strong>da</strong> Semana de Arte Moderna<br />

de 1922 combina<strong>da</strong> <strong>à</strong> geniali<strong>da</strong>de de Gilberto<br />

Freire lastreou a redescoberta pela qual a elite canibalizou<br />

o povão. Nos últimos 25 anos, a elite praticamente<br />

deixou de lado o Brasil e mergulhou gostosamente<br />

na “Globalização”. Abandonou a cultura popular,<br />

<strong>da</strong> qual o culto <strong>à</strong> boa cachaça é a nova deglutição<br />

<strong>da</strong> elite. Tenho a esperança que estejamos próximos<br />

a um tempo em que, dialeticamente, povão e elite,<br />

juntos, superem o ritual recorrente <strong>da</strong> canibalização e<br />

haja a afirmação <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de brasileira explicitando<br />

nosso potencial civilizatório.<br />

CARLOS LESSA<br />

Economista<br />

<strong>Professor</strong> Emérito e ex-Reitor <strong>da</strong> UFRJ<br />

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