Untitled - Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da UFMG
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Em todo caso, como ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong>, essas questões se iniciariam no episódio<br />
humoristíco do quadro Et le soleil s’endormit sur l’Adriatique (E o sol adormeceu sobre o<br />
mar Adriático, 1910) <strong>de</strong> Joachim-Raphaël Boronali, chefe <strong>de</strong> fila do “excessivismo”, pintor<br />
que não passava <strong>de</strong> um asno, o asno do Senhor Frédé, o dono do Lapin Agile <strong>de</strong> Montmartre,<br />
asno cujo rabo tinha pintado o famoso quadro. O pintor Pierre Girieud, que Duchamp sempre<br />
apreciou, havia participado <strong>da</strong> brinca<strong>de</strong>ira. 380 Boronali, anagrama <strong>de</strong> Aliboron, aliás, o asno<br />
<strong>da</strong> fábula <strong>de</strong> La Fontaine, que não é outro senão o asno do filósofo nominalista do século<br />
XIV Jean Buri<strong>da</strong>n, citado por François Villon na Balla<strong>de</strong> <strong>de</strong>s Dames du Temps Jadis.<br />
Episódio não sem relação com a “liber<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> indiferença” duchampiana e seus vínculos<br />
com a antiga noção escolástica <strong>de</strong> Liberum arbitrium indiferentiae <strong>de</strong>bati<strong>da</strong> por Descartes e<br />
Leibniz, precisamente em torno do dilema do asno <strong>de</strong> Buri<strong>da</strong>n. 381 Uma indiferença que<br />
conduz a uma posição equilibra<strong>da</strong>, um “Et Qui Libre” (E Quem Livre/Equilíbrio) cujos<br />
rastros po<strong>de</strong>riam ser aprofun<strong>da</strong>dos a partir <strong>de</strong> uma pista indica<strong>da</strong> por Marcadé, quando<br />
Duchamp faz a distinção, em uma <strong>da</strong>s notas para um “quadro hilariante”, <strong>da</strong> Boîte verte:<br />
“[…] O ironismo <strong>de</strong> afirmação: diferenças com o ironismo negador <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte só do<br />
Riso.” 382 “Ambivalência” duchampiana a respeito <strong>da</strong> ciência que Marcadé associa ao<br />
“convencionalismo” <strong>de</strong> Henri Poincaré, mas também ao ceticismo <strong>de</strong> Pirro <strong>de</strong> Élis, pintor e<br />
discípulo <strong>de</strong> Sócrates que Duchamp teria <strong>de</strong>scoberto ou re<strong>de</strong>scoberto nas suas leituras na<br />
<strong>Biblioteca</strong> Sainte Geneviève. “O ceticismo <strong>de</strong> Pirro fun<strong>da</strong> a suspensão do julgamento sobre a<br />
natureza <strong>da</strong>s coisas, graças ao ‘conflito <strong>da</strong>s forças equivalentes’ (isotonia). Po<strong>de</strong>mos pensar<br />
que para ca<strong>da</strong> enunciado [correspon<strong>de</strong>] um enunciado oposto equivalente”. 383 Marcadé cita<br />
Victor Brochard, o especialista <strong>da</strong> época sobre a questão, que resume esse ceticismo com a<br />
frase: “Duvi<strong>da</strong>r <strong>de</strong> tudo e ser indiferente a tudo”. 384<br />
Essa indiferença duchampiana <strong>da</strong> qual Marcadé lembra certos fun<strong>da</strong>mentos conduz o<br />
autor a pensar a preguiça como “uma posição política e moral que Duchamp não vai<br />
abandonar.” 385 Marcadé não esquecerá, aliás, <strong>de</strong> opor Le droit à la paresse (O direito à<br />
preguiça, 1880), panfleto <strong>de</strong> Paul Lafargue (genro <strong>de</strong> Karl Marx) ao qual Duchamp faz<br />
380<br />
MARCADÉ. Marcel Duchamp. La vie à crédit, p. 29.<br />
381<br />
MARCADÉ. Marcel Duchamp. La vie à crédit, p. 135.<br />
382<br />
DUCHAMP. Duchamp du signe, p.45-46.<br />
383<br />
MARCADÉ. Marcel Duchamp. La vie à crédit, p. 85. “Le scepticisme <strong>de</strong> Pyrrhon fon<strong>de</strong> la suspension du<br />
jugement sur la nature <strong>de</strong>s choses, grâce au ‘conflit <strong>de</strong>s forces équivalentes’ (isothénie). On peut penser que<br />
pour chaque énoncé un énoncé opposé équivalent.”<br />
384<br />
MARCADÉ. Marcel Duchamp. La vie à crédit, p. 85. “Douter <strong>de</strong> tout et être indifférent à tout”.<br />
385<br />
MARCADÉ. Marcel Duchamp. La vie à crédit, p. 86. “une position politique et morale dont Duchamp ne se<br />
départira pas.”<br />
200