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Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes<br />
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estabelecer nexos e reconstituir sua história. Tanto a memória prodigiosa de Funes<br />
quanto a memória volátil de Leonard são distúrbios decorrentes de forte traumatismo.<br />
Ambas as formas de totalidade são igualmente funestas para a identidade do<br />
indivíduo e da sociedade.<br />
O pesadelo da iminente amnésia coletiva pode ser gerado por imposição de governos<br />
totalitários, como em Fahrenheit 451, de François Truffaut (adaptação cinematográfica<br />
do romance homônimo, de Ray Bradbury), em que o pensamento crítico é proibido<br />
e os materiais escritos incinerados (o título refere-se à temperatura em que o<br />
papel entra em combustão). Guy Montag, um dos bombeiros encarregados de queimar<br />
livros, furta alguns para ler, e fica seduzido. Refugia-se, com outros dissidentes, na<br />
terra dos homens-livro, cada um deles identificado com o nome do livro que conserva<br />
“tatuado” na memória.<br />
A memória-dom conferida por Mnemosyne através das Musas conjuga harmoniosamente<br />
memória e não-memória: é seletiva, reflexiva, capaz de discernir o que se<br />
deve presentificar pela rememoração ou entregar ao esquecimento (lesmosyne), “para<br />
oblívio de males e pausa de aflições” (Hesíodo). A boa memória, portanto, implica<br />
seleção, esquecimento e pausa. Poesia e sabedoria bebem em Lethes e Mnemosyne,<br />
fontes de lembrar e esquecer. Nessa dialética, pulsa a vida.<br />
O Canto, a memória, o tempo. Ao invocarem a manifestação dessas forças<br />
numinosas, Camões (século XVI) e Sophia (século XX) reafirmam que as Musas são<br />
o princípio do Canto, inaugurando e alentando o sopro poético. Camões invoca<br />
Calíope, Musa da epopeia, para cantar “aqueles que por obras valerosas / se vão da<br />
lei da Morte libertando”. Sophia reinventa e celebra na sua moderna lírica a memória<br />
fulgurante da Grécia antiga.<br />
Se na sociedade moderna a memória não mais conserva o sentido originário,<br />
que permitia o conhecimento em êxtase e vidência, o poeta recita-a, recorda-a (recordar,<br />
trazer de novo ao coração) e, assim, preserva-a e lega-a ao futuro. Lançado<br />
num mundo dessacralizado, o poeta-cantor de nosso tempo – “tempo de indigência”<br />
(Hölderlin), “tempo dividido” (Sophia), de “homens partidos” (Drummond) – abre