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[Gilka Girardello]<br />
Com a novela de rádio aprendemos a ansiar pela continuação de uma história:<br />
para muitas gerações de brasileiros, a radionovela foi a primeira Scherazade.<br />
Na minha vida, por exemplo, o primeiro rádio foi um Telefunken grandão,<br />
encaixado num móvel de madeira de um estilo que naqueles anos 1960 chamávamos<br />
de moderno. Esse móvel era o centro da sala do nosso apartamento em Porto Alegre:<br />
tinha toca-discos, um nicho espelhado para guardar bebidas… e o rádio.<br />
Depois do almoço, lavada a louça, minha mãe sentava conosco no tapete junto ao<br />
rádio – éramos quatro crianças – e amontoados escutávamos os acordes de abertura<br />
da novela. O rádio era quente, e quentes eram as vozes da mocinha, do galã, da vilã.<br />
Choros, soluços, suspiros, sussurros, batidas de portas, passos pelo chão, acordes de<br />
violino e sustos de tambor: como era quente tudo o que ouvíamos com o ouvido<br />
colado numa novela de rádio!<br />
De onde vinha aquele calor todo – fico pensando. Um pouco vinha das válvulas<br />
aquecidas do corpo físico do radião, claro. Outro pouco do aconchego das famílias<br />
que se embolavam em colo, café e cafuné na moleza das tardes daquele tempo mais<br />
lento. Mas muito vinha mesmo de uma linguagem íntima, de vozes que falavam coladas<br />
no microfone, a ouvidos que as escutavam colados na tela palpitante do rádio.<br />
Essa intimidade tinha a ver também com o espaço doméstico: não havia cenas<br />
externas nas radionovelas daquele tempo. O vento e os ruídos da cidade certamente<br />
atrapalhariam gravações de rua, e além disso os enredos em si eram intimistas: segredos<br />
atrás da porta, confissões no leito de morte, cartas encontradas em gavetas, promessas<br />
e maldições ao pé do ouvido.<br />
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