Flash - Fonoteca Municipal de Lisboa
Flash - Fonoteca Municipal de Lisboa
Flash - Fonoteca Municipal de Lisboa
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
A minha peça <strong>de</strong> te<br />
é melhor do qu<br />
“Internal”: cinco performers<br />
para cinco espectadores<br />
VIRGINIE SCHREYEN<br />
Em “The Smile Off Your Face”,<br />
o espectador não sabe<br />
<strong>de</strong> que terra é<br />
A partir <strong>de</strong> amanhã, os Ontroerend Goed fazem teatro <strong>de</strong> um para um na Culturgest. “Personal T<br />
Your Face” e “A Game of You”, é uma tareia em três “rounds” que <strong>de</strong>ixa o espectador KO: perdido, m<br />
Alexan<strong>de</strong>r Devriendt morre <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> contar o que <strong>de</strong> facto se passa<br />
em cada uma das três peças da “Personal<br />
Trilogy” que os Ontroerend<br />
Goed apresentam, a partir <strong>de</strong> amanhã,<br />
na Culturgest, em <strong>Lisboa</strong> (ou<br />
então morre <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> acabar<br />
rapidamente a conversa, porque isto<br />
que acabámos <strong>de</strong> interromper é a sua<br />
festa <strong>de</strong> aniversário), mas isso seria<br />
estragar tudo. “Internal” (2007), “The<br />
Smile Off Your Face” (2003) e “A Game<br />
of You” (2010) são o tipo <strong>de</strong> teatro<br />
a que se sobrevive para não contar,<br />
porque o contrário seria a morte não<br />
do artista, mas do espectáculo e até<br />
do espectador, que sai <strong>de</strong> cada um<br />
<strong>de</strong>stes três “rounds” KO <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
uma luta extenuante contra aquilo<br />
que nem nos seus sonhos mais in<strong>de</strong>cifráveis<br />
imaginaria encontrar pela<br />
frente: a sua própria imagem, projectada<br />
num espelho assustadoramente<br />
esclarecedor (e entretanto, como Devriendt<br />
morre <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> contar<br />
tudo mas não conta nada, aqui estamos<br />
nós a escrever um texto sobre<br />
não sabemos exactamente o quê:<br />
“Força!”, diz ele, antes <strong>de</strong> ir outra vez<br />
fazer 34 anos).<br />
Parece sinistro, isto <strong>de</strong> o teatro po<strong>de</strong>r<br />
tornar-se tão pessoal que sabe<br />
mais sobre nós do que nós sobre ele,<br />
“As pessoas sabem<br />
os limites que<br />
separam a ficção<br />
da realida<strong>de</strong>.<br />
Mas claro que um em<br />
cada mil espectadores<br />
passa os limites, e<br />
quando isso acontece<br />
temos <strong>de</strong> mudar o<br />
espectáculo todo”<br />
Alexan<strong>de</strong>r Devriendt<br />
mas para muitas das centenas <strong>de</strong> pessoas<br />
que já passaram por estes umpara-um<br />
dos Ontroerend Goed (na<br />
Bélgica, on<strong>de</strong> as três peças se estrearam,<br />
ou em Edimburgo, on<strong>de</strong> os dois<br />
primeiros capítulos da trilogia fizeram<br />
história, talvez com H gran<strong>de</strong>) não foi<br />
sinistro, foi uma epifania. “As pessoas<br />
apren<strong>de</strong>ram coisas sobre si próprias<br />
<strong>de</strong> que nem suspeitavam: muita gente<br />
veio agra<strong>de</strong>cer-nos por lhe termos<br />
mostrado isto ou aquilo. É claro que<br />
isso po<strong>de</strong> acontecer em qualquer espectáculo;<br />
a diferença é que aqui o<br />
que fazemos é verda<strong>de</strong>iramente personalizado,<br />
e isso po<strong>de</strong> mudar o mundo.<br />
Não acredito em revoluções colectivas,<br />
mas acredito em revoluções<br />
individuais, e ao longo <strong>de</strong>sta trilogia<br />
vi-as a acontecer. Até comigo: aconteceram-me<br />
coisas com alguns espectadores<br />
que nunca me tinham acontecido<br />
na vida, e isso é muito po<strong>de</strong>roso”,<br />
explica o actor e encenador do<br />
grupo. Houve alturas em que teve medo<br />
disso: “Na noite em que estreámos<br />
‘Internal’, houve uma rapariga que<br />
acabou com o namorado no fim da<br />
peça. Veio ter comigo e eu, angustiadíssimo:<br />
‘Não é isto, eu não quero<br />
fazer peças que façam acontecer coisas<br />
<strong>de</strong>ssas’. Ela garantiu-me que não<br />
foi a peça: podia ter sido um livro, um<br />
filme, um passeio no parque. Para<br />
mim isso foi o mais extraordinário:<br />
perceber quão profundamente os espectadores<br />
conhecem os mecanismos<br />
do teatro. As pessoas sabem os limites<br />
que separam a ficção da realida<strong>de</strong>.<br />
Mas claro que um em cada mil espectadores<br />
passa os limites, e quando<br />
isso acontece temos <strong>de</strong> mudar o espectáculo<br />
todo”.<br />
Não será tão grave como ter <strong>de</strong> mudar<br />
a vida toda, o que como vimos às<br />
vezes também acontece, mas diz muito<br />
sobre o papel que sucessivas vagas<br />
<strong>de</strong> espectadores tiveram na construção<br />
<strong>de</strong>stes espectáculos. “No fundo”,<br />
sublinha Devriendt, “esta trilogia é<br />
uma investigação do espectador, uma<br />
espécie <strong>de</strong> ‘quem és tu?’. Ficámos tão<br />
fascinados pelo contacto um-a-um<br />
que nos <strong>de</strong>ixámos levar. Mas só ao fim<br />
<strong>de</strong> sete anos é que percebemos que<br />
os três espectáculos podiam funcionar<br />
como uma trilogia”. Funcionam.<br />
E on<strong>de</strong> os Ontroerend Goed <strong>de</strong>scobriram<br />
o sentido do teatro houve<br />
quem <strong>de</strong>scobrisse o sentido da vida.<br />
Os limites do controlo<br />
“Smile Off Your Face” (dias 11, 12 e 13),<br />
a primeira pedra <strong>de</strong>ste empreendimento,<br />
começou por ser um exercício<br />
formal <strong>de</strong> inversão das regras <strong>de</strong> comportamento<br />
numa sala <strong>de</strong> espectáculos,<br />
o tipo <strong>de</strong> sítio on<strong>de</strong> em princípio<br />
o espectador nunca está sozinho e é<br />
obrigado a permanecer sentado no<br />
seu lugar, a não ser para bater palmas<br />
no fim. “Quisemos que o espectador<br />
estivesse sozinho, numa ca<strong>de</strong>ira que<br />
se mexe, vendado e impedido <strong>de</strong> bater<br />
palmas”, esclarece Devriendt, e<br />
mais não diz. O que acontece a seguir<br />
(<strong>de</strong>scobrir os segredos dos Ontroerend<br />
Goed po<strong>de</strong> ser um trabalho sujo,<br />
mas tivemos <strong>de</strong> o fazer) é um assalto<br />
<strong>de</strong> 20 minutos - um assalto que<br />
a crítica britânica <strong>de</strong>screveu como<br />
próximo da epifania, coisa capaz <strong>de</strong><br />
mover montanhas, ou pelo menos<br />
gente empe<strong>de</strong>rnida por décadas <strong>de</strong><br />
teatro que não quer saber dos espectadores<br />
para nada. Des<strong>de</strong> a estreia,<br />
em Gent, a companhia teve todo o<br />
tipo <strong>de</strong> reacções, algumas “extremas”,<br />
e foi preciso readaptar constantemente<br />
a peça. Mas os Ontroerend<br />
Goed apren<strong>de</strong>ram a confiar nos<br />
espectadores, e os espectadores<br />
apren<strong>de</strong>ram a confiar neles: “Devo<br />
admitir que vendar e amarrar pessoas,<br />
a seguir pô-las numa ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong><br />
rodas e arranjar maneira <strong>de</strong> mesmo<br />
assim elas se sentirem confortáveis é<br />
um feito. Mas quando isso acontece<br />
as pessoas estão dispostas a <strong>de</strong>ixar-se<br />
24 • Sexta-feira 7 Janeiro 2011 • Ípsilon