Flash - Fonoteca Municipal de Lisboa
Flash - Fonoteca Municipal de Lisboa
Flash - Fonoteca Municipal de Lisboa
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Livros<br />
Colum<br />
McCann parte<br />
<strong>de</strong> uma manhã<br />
<strong>de</strong> Agosto<br />
<strong>de</strong> 1974 para<br />
compor uma<br />
narrativa que<br />
é Nova Iorque<br />
em todos os<br />
seus estados:<br />
passado,<br />
presente e<br />
futuro<br />
Ficção<br />
Na cida<strong>de</strong><br />
on<strong>de</strong> se<br />
<strong>de</strong>safia o céu<br />
O gran<strong>de</strong> mundo <strong>de</strong> Nova<br />
Iorque é uma epopeia<br />
neste livro com que Colum<br />
McCann ganhou o National<br />
Book Award em 2009.<br />
Rui Lagartinho<br />
Deixa o Gran<strong>de</strong> Mundo Girar<br />
Colum McCann<br />
(Trad. Helena Lopes)<br />
Civilização Editora<br />
mmmmm<br />
O National Book<br />
Award <strong>de</strong> 2009 é<br />
um retrato épico e<br />
intimista <strong>de</strong> Nova<br />
Iorque. Das suas<br />
contradições e<br />
dos genes que a<br />
fazem girar.<br />
Para quem<br />
goste muito <strong>de</strong><br />
Nova Iorque, este é um livro<br />
indispensável. “Deixa o Gran<strong>de</strong><br />
Mundo Girar” faz um balanço <strong>de</strong><br />
algum passado com os olhos sempre<br />
no futuro: para o bem e para o mal.<br />
Funciona como um marco no meio<br />
do caminho. É tão útil como um<br />
bastão nas mãos <strong>de</strong> um peregrino.<br />
“Nunca me tinha ocorrido antes,<br />
mas tudo em Nova Iorque está<br />
construído sobre outra coisa, nada<br />
existe totalmente por si só,<br />
cada coisa é tão<br />
estranha como<br />
a anterior e<br />
relacionada<br />
com ela”<br />
(p. 380).<br />
Nova<br />
Iorque<br />
é,<br />
Encontros<br />
A obra <strong>de</strong> Agustina<br />
Bessa-Luís vai estar<br />
em cima da mesa no<br />
Centro Cultural Calouste<br />
Gulbenkian e na Sorbonne<br />
Nouvelle, em Paris, nos<br />
próximos dias 20, 21 e 22.<br />
nestas 430 páginas, metáfora do<br />
mundo.<br />
Colum McCann (Dublin, 1965)<br />
explica que este livro nasceu quando<br />
lhe veio parar às mãos uma<br />
fotografia tirada a 7 <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong><br />
1974. Nela vêem-se as duas torres do<br />
World Tra<strong>de</strong> Center acabadas <strong>de</strong><br />
construir. A ligá-las um enorme cabo<br />
<strong>de</strong> aço, que visto cá <strong>de</strong> baixo tem a<br />
espessura <strong>de</strong> um cabelo. Em cima<br />
<strong>de</strong>le, em equilíbrio precário mas<br />
<strong>de</strong>terminado a não cair, aquele que<br />
por causa <strong>de</strong>sta caminhada se<br />
tornaria uma lenda do<br />
funambulismo, Philippe Petit. Do<br />
lado esquerdo, a sair <strong>de</strong> campo, um<br />
avião que parece estar ali a mais e<br />
que <strong>de</strong> facto só não está porque<br />
projecta em nós uma sombra num<br />
futuro com 27 anos.<br />
“Deixa o Gran<strong>de</strong> Mundo Girar” é<br />
um retrato <strong>de</strong> Nova Iorque naquela<br />
manhã <strong>de</strong> Agosto <strong>de</strong> 1974. Conta as<br />
vidas dos muitos que levantaram a<br />
cabeça do chão e viram, atónitos,<br />
um ponto negro em evolução lá no<br />
alto que <strong>de</strong>pressa <strong>de</strong>scobriram não<br />
ser um pássaro, e muito menos o<br />
Super-Homem.<br />
Nesse Verão, cá em baixo, a<br />
Guerra do Vietname estava mais do<br />
que perdida, Richard Nixon estava a<br />
ponto <strong>de</strong> se <strong>de</strong>mitir da Presidência<br />
dos Estados Unidos da América por<br />
causa do escândalo Watergate, o<br />
Bronx e o Harlem estavam<br />
dominados pela violência, pela<br />
prostituição e pela droga. Times<br />
Square, mais ou menos como se vê<br />
no filme “Taxi Driver” <strong>de</strong> Martin<br />
Scorsese, era um parque <strong>de</strong><br />
diversões da indústria do sexo, os<br />
negros ainda eram olhados com<br />
<strong>de</strong>sconfiança quando tentavam<br />
apanhar um táxi. As correntes <strong>de</strong><br />
vanguarda artística<br />
na literatura, nas<br />
artes plásticas e na música atolavam-<br />
se em novos ácidos fatais. Havia uma<br />
crise petrolífera mundial. Nova<br />
Iorque tinha tudo para paralisar e no<br />
entanto nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> girar.<br />
Este romance explica o milagre e é<br />
credível porque nele cabem todas as<br />
cida<strong>de</strong>s, que acabam por ser só uma<br />
à medida que Colum McCann as liga:<br />
padres irlan<strong>de</strong>ses que tentam salvar<br />
a alma das prostitutas dos bairros<br />
perigosos, ju<strong>de</strong>us ricos e po<strong>de</strong>rosos<br />
da Park Avenue que partilham com<br />
as mães dos bairros mais populares<br />
as fotografias dos filhos soldados<br />
mortos no Vietname numa<br />
miscigenação solidária.<br />
Dividido em quatro capítulos a<br />
que o autor chamou livros, a<br />
estrutura constrói-se que as histórias se<br />
cruzam. Depois<br />
em mosaico até<br />
há fragmentos <strong>de</strong> efeito coral, como<br />
quando uma longa sequência <strong>de</strong><br />
prostitutas se apresenta numa longa<br />
ladainha, e alguns<br />
mini-contos sobre<br />
o quotidiano e a observação da vida<br />
numa prisão: “O compartimento do<br />
chuveiro é o melhor lugar. Um<br />
elefante podia ficar suspenso dos<br />
tubos” (p. 267). Colum McCann<br />
volta a um<br />
estilo que já tinha<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
experimentado em “Deste Lado da<br />
Luz” (Difel, 2001), um romance<br />
sobre os homens-toupeira que<br />
construíram o metro <strong>de</strong> Nova<br />
Iorque.<br />
No “Quarto Livro” <strong>de</strong> “Deixa o<br />
Gran<strong>de</strong> Mundo Girar”, o último,<br />
damos um salto no tempo até 2006.<br />
Em 30 páginas, as vidas que se<br />
contaram arrumam-se no percurso<br />
<strong>de</strong> uma personagem surpresa. Essa<br />
con<strong>de</strong>nsação <strong>de</strong>ixa-nos mais<br />
tranquilos. Na ficção é sempre fácil<br />
moldar a matéria dos sonhos<br />
fazendo-os <strong>de</strong>slizar para baixo <strong>de</strong><br />
uma nova realida<strong>de</strong>: aqui a guerra<br />
do Iraque, o furacão Katrina.<br />
O mundo aturdido parece que<br />
continua a querer girar.<br />
Ironia<br />
“highbrow”<br />
Divertido, irónico,<br />
mordaz, neurótico, culto,<br />
discretamente amargo. Tudo<br />
em doses homeopáticas.<br />
Eduardo Pitta<br />
O Acompanhante<br />
Jonathan Ames<br />
(Trad. André Chêdas)<br />
Contraponto<br />
mmmnn<br />
Três investigadoras da<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paris 3<br />
(Catherine Dumas, Agnès<br />
Levécot e Ilda Men<strong>de</strong>s dos<br />
Santos) e uma professora<br />
catedrática da Faculda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Letras da Universida<strong>de</strong><br />
Entre nós,<br />
Jonathan Ames<br />
(Nova Iorque,<br />
1964) é<br />
praticamente<br />
<strong>de</strong>sconhecido.<br />
Autor <strong>de</strong> “Bored<br />
to Death”,<br />
popular série <strong>de</strong><br />
televisão feita a<br />
partir <strong>de</strong> um dos seus contos,<br />
publicou romances, ensaios, uma<br />
antologia <strong>de</strong> memórias transexuais<br />
(“Sexual Metamorphosis”, 2005) e<br />
até uma autobiografia gráfica, sobre<br />
a <strong>de</strong>pendência do álcool, ilustrada<br />
por Dean Haspie. Longe <strong>de</strong> reunir<br />
consenso, tem sido elogiado e<br />
execrado com igual fervor <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />
publicou “I Pass Like Night” (1989).<br />
Mesmo em Manhattan, attan, esta<br />
mistura <strong>de</strong> Iggy Pop com<br />
P. G. Wo<strong>de</strong>house soa<br />
<strong>de</strong>sconcertante.<br />
Decerto não por<br />
acaso, <strong>de</strong>fine-se a si<br />
mesmo como<br />
“probably the<br />
gayest straight<br />
writer in America”.<br />
Po<strong>de</strong>mos agora a<br />
ler a tradução que<br />
André Chêdas fez <strong>de</strong><br />
“O Acompanhante”,<br />
romance sobre as<br />
relações <strong>de</strong> Henry<br />
Harrison,<br />
dramaturgo<br />
do Porto, Fátima Marinho,<br />
propõem, a partir do<br />
slogan “Audaces et<br />
Défigurations”, uma<br />
leitura plural dos textos<br />
da escritora portuguesa.<br />
falhado que vive <strong>de</strong> acompanhar<br />
mulheres da alta socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova<br />
Iorque, e Louis Ives, docente <strong>de</strong> um<br />
colégio privado <strong>de</strong> Princeton que<br />
per<strong>de</strong> o emprego no dia em que é<br />
apanhado a vestir o sutiã <strong>de</strong> uma<br />
colega na sala dos professores. Fica<br />
por esclarecer se a punição é <strong>de</strong>vida<br />
ao arremedo <strong>de</strong> travestismo ou à<br />
erecção <strong>de</strong> Louis: “A protuberância<br />
conseguiu a proeza <strong>de</strong> confirmar a<br />
culpa dos meus actos, <strong>de</strong> forma mais<br />
contun<strong>de</strong>nte do que o próprio olhar,<br />
já <strong>de</strong> si claramente sexual...” Por<br />
momentos, julgamos estar a ler<br />
Augusten Burroughs. Com o fluir da<br />
intriga, a ilusão <strong>de</strong>sfaz-se. Burroughs<br />
é literal, lá on<strong>de</strong> Ames prolonga a<br />
“respiração” da narrativa clássica.<br />
“O Acompanhante” são duas vidas<br />
cruzadas: a <strong>de</strong> Henry, vergado ao<br />
peso das idiossincrasias; e a <strong>de</strong><br />
Louis, em trânsito entre os dois<br />
lados <strong>de</strong> um espelho. Concluído em<br />
1996, o livro andou em bolandas<br />
durante dois anos, <strong>de</strong> editor em<br />
editor, tendo, ao cabo <strong>de</strong> 20<br />
rejeições, sido publicado em 1998<br />
pela Scribner. Shari Springer<br />
Berman adaptou-o ao cinema, com<br />
Kevin Kline (Henry) e Paul Dano<br />
(Louis) nos protagonistas. Tarefa<br />
inglória, na medida em que a<br />
estrutura semântica resiste à<br />
transposição <strong>de</strong> suporte. Se, por um<br />
lado, o cortejo <strong>de</strong> reflexões auto<strong>de</strong>preciativas<br />
do narrador potencia<br />
o “overacting”, a trama dos envios<br />
(<strong>de</strong> Freud a Scott Fitzgerald, sem<br />
esquecer Bertie Wooster) apenas é<br />
perceptível na escrita precisa <strong>de</strong><br />
Ames.<br />
A história mistura elementos<br />
autobiográficos, <strong>de</strong>ixando adivinhar<br />
o futuro interesse <strong>de</strong> Ames pela<br />
problemática transexual: “Ao ver-me<br />
vestido <strong>de</strong> mulher em toda a minha<br />
fealda<strong>de</strong>, tinha aprendido a apreciar<br />
e valorizar a beleza <strong>de</strong>stas raparigas<br />
e o trabalho a que as obrigava. Só os<br />
homens po<strong>de</strong>riam ter uma presença<br />
<strong>de</strong> espírito tão obstinadamente<br />
direccionada para se quererem fazer<br />
passar por mulheres.”<br />
Por razões difíceis <strong>de</strong> explicar, não<br />
é comum associar Ames aos gran<strong>de</strong>s<br />
nomes da<br />
tradição<br />
literária<br />
judaica, como<br />
Ames,<br />
“o escritor<br />
heterossexual<br />
mais gay da<br />
América”,<br />
chega<br />
finalmente a<br />
Portugal com<br />
“O Acompanhante”<br />
TRAVIS ROOZÉE<br />
32 • Sexta-feira 7 Janeiro 2011 • Ípsilon