13.03.2015 Views

Flash - Fonoteca Municipal de Lisboa

Flash - Fonoteca Municipal de Lisboa

Flash - Fonoteca Municipal de Lisboa

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

“No Oci<strong>de</strong>nte<br />

po<strong>de</strong>mos mudar<br />

<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> a toda<br />

a hora. Po<strong>de</strong>mos<br />

tocar reggae num dia<br />

e música indiana<br />

no dia seguinte.<br />

No Congo, a tua<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> é o padrão<br />

rítmico específico que<br />

tocas no chocalho,<br />

uma dança específica,<br />

e é complicado<br />

perceber uma cultura<br />

em que não estamos<br />

ligados a algo”<br />

Vincent Kenis<br />

Há mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos que Vincent Kenis<br />

<strong>de</strong>sembarcava regularmente no<br />

Aeroporto Internacional <strong>de</strong> N’Djili em<br />

Kinshasa. Nas mãos, carregava a bagagem<br />

para uma estada <strong>de</strong> duração<br />

incerta; no estômago amarrotado, a<br />

ansieda<strong>de</strong> electrizante <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r finalmente<br />

<strong>de</strong>scobrir o rasto <strong>de</strong> um grupo<br />

chamado Konono Nº1, <strong>de</strong>saparecido<br />

<strong>de</strong> circulação há 20 anos. Mas a esperança<br />

começava a ruir. De cada vez,<br />

os resultados das suas investigações<br />

eram-lhe sempre lembrados num familiar<br />

número redondo (que parecia<br />

piscar a um ritmo <strong>de</strong>smaiado na sua<br />

<strong>de</strong>spedida <strong>de</strong> N’Djili): zero. Numa nova<br />

investida, Vincent <strong>de</strong>ixou-se conduzir<br />

pela mão da filha <strong>de</strong> Dr. Nico –<br />

um dos gran<strong>de</strong>s heróis da guitarra no<br />

Congo, sendo o outro Franco – a todos<br />

os sítios que, na cabeça <strong>de</strong>la, po<strong>de</strong>riam<br />

sugerir quaisquer pistas. Uma<br />

vez mais, zero. Até que o acaso tratou<br />

<strong>de</strong> produzir os resultados que o planeamento<br />

falhara. Ao passearem calmamente<br />

por uma <strong>de</strong>ssas gran<strong>de</strong>s<br />

avenidas da capital da República Democrática<br />

do Congo, a janela aberta<br />

<strong>de</strong> uma qualquer associação <strong>de</strong>ixou<br />

escapar para a rua o som dos Konono<br />

e a imagem <strong>de</strong> gente a dançar uma<br />

música perdida no tempo como se<br />

fosse o sucesso do momento. Vincent<br />

tinha <strong>de</strong>scoberto uma espécie <strong>de</strong> clube<br />

<strong>de</strong> fãs do grupo e jogou a sua cartada<br />

<strong>de</strong>sesperada.<br />

O contacto ali estabelecido assegurou-lhe<br />

que conseguiria chegar à fala<br />

com os Konono. Vincent esperou um<br />

telefonema durante o resto da sua<br />

estada em Kinshasa, mas foi só <strong>de</strong>pois<br />

do regresso a Bruxelas que soube que<br />

pouco <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter apanhado o avião<br />

<strong>de</strong> volta o grupo voltara a juntar-se.<br />

E que, afinal, nunca tinham parado<br />

<strong>de</strong> tocar, simplesmente tinham sido<br />

escorraçados para a teia <strong>de</strong> uma periferia<br />

pantanosa e insondável, on<strong>de</strong><br />

viviam muitos dos praticantes originais<br />

do som tradi-mo<strong>de</strong>rne <strong>de</strong> que os<br />

Konono eram o diamante mais visível.<br />

Diz Vincent que se tratou <strong>de</strong> uma manobra<br />

do autoritarismo <strong>de</strong> Mobutu,<br />

presi<strong>de</strong>nte entre 1965 e 1997, <strong>de</strong>rrubado<br />

apenas pela morte, invenção <strong>de</strong><br />

um cancro na próstata. Quando em<br />

71 Mobutu iniciou a sua Campanha<br />

pela Autenticida<strong>de</strong>, recusando todas<br />

as referências exteriores e promovendo<br />

a supremacia cultural africana,<br />

obrigando todos os congoleses a substituírem<br />

os nomes europeus por nomes<br />

africanos, fazendo do Congo um<br />

outro país chamado Zaire, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u<br />

o aparecimento e a sobrevivência <strong>de</strong><br />

grupos como os Konono Nº1 e os Kasai<br />

Allstars. “Diziam às pessoas para<br />

não ouvirem música estrangeira, para<br />

que ficassem mais próximas da sua<br />

cultura”, lembra Kenis. “O que parece<br />

uma excelente i<strong>de</strong>ia para um país<br />

muito musical e tão gran<strong>de</strong> quanto<br />

um continente”.<br />

Em 1974, quando se <strong>de</strong>u o lendário<br />

combate <strong>de</strong> boxe entre George Foreman<br />

e Muhammad Ali em Kinshasa,<br />

o tradi-mo<strong>de</strong>rne era um movimento<br />

imenso na capital, com grupos a povoarem<br />

cada esquina, como prostitutas<br />

numa cida<strong>de</strong> europeia. Foi esse<br />

cenário que o músico sul-africano Hugh<br />

Masekela encontrou quando se<br />

<strong>de</strong>slocou para testemunhar o gancho<br />

<strong>de</strong> direita com que Ali <strong>de</strong>itou Foreman<br />

ao tapete. O KO que <strong>de</strong>volveu Ali<br />

ao trono mundial, ao <strong>de</strong>rrotar um adversário<br />

mais novo, teria um correspon<strong>de</strong>nte<br />

inverso na música congolesa.<br />

Mobutu <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ver nestes<br />

grupos <strong>de</strong> expressão mais tribal um<br />

meio para chegar às massas, e o Estado<br />

fechou a torneira, escorraçando-os<br />

para fora do centro, abrindo caminho<br />

para a juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> grupos trans-étnicos,<br />

para a rumba, para o jazz africano,<br />

“mais fáceis <strong>de</strong> usar como meio<br />

político, porque se dirigiam ao país<br />

como um todo”. Estes géneros seriam<br />

<strong>de</strong>pois engolidos pela proliferação <strong>de</strong><br />

música religiosa inspirada pelo gospel<br />

americano que tomou conta das ruas<br />

Kasai Allstars<br />

e Konono<br />

Nº1 elevam a<br />

música tribal<br />

congolesa a<br />

fenómeno da<br />

world music<br />

até hoje e que a juventu<strong>de</strong> se habituou<br />

a encarar como a face da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />

congolesa. Daí que a sonorida<strong>de</strong><br />

tradi-mo<strong>de</strong>rne dos Congotronics, se<br />

mostrada agora aos locais, é <strong>de</strong>scartada<br />

com uma sentença: “Ah, isto é<br />

música dos anos 70”. É música <strong>de</strong>masiado<br />

associada ao passado, a Mobutu<br />

e à propaganda para que possa gozar<br />

do mesmo sucesso com que chega ao<br />

exterior.<br />

Quando Vincent voltou ao Congo<br />

em 2002 para gravar os Konono Nº1,<br />

estava prestes a dar origem a um dos<br />

mais marcantes fenómenos na world<br />

music: a série Congotronics. O “tronics”,<br />

entenda-se, não é tanto alusivo<br />

à electrónica quanto à electricida<strong>de</strong>,<br />

uma vez que a força propulsora <strong>de</strong>sta<br />

música é o som dos três likembés passados<br />

por amplificadores que, por sua<br />

vez, me<strong>de</strong>iam servem <strong>de</strong> canais <strong>de</strong><br />

distribuição <strong>de</strong> energia para os corpos<br />

<strong>de</strong> quem ouve. Segundo se conta,<br />

Mingiedi, o fundador do grupo, terse-á<br />

interessado pela electrificação<br />

dos instrumentos para que a música<br />

não morresse sob o tráfego incessante<br />

<strong>de</strong> Kinshasa. E, portanto, quando<br />

Kenis se encontrou com o grupo em<br />

2002, <strong>de</strong>u <strong>de</strong> caras com a mesma música<br />

por que se tinha apaixonado 20<br />

anos antes ao ouvir os Konono num<br />

programa da rádio France Culture,<br />

miraculosamente abrigada <strong>de</strong> qualquer<br />

tentação mo<strong>de</strong>rnizadora. Afinal,<br />

conta o homem que produziu a série<br />

Congotronics, Mingiedi pretendia<br />

apenas “reproduzir a música tradicional<br />

que o seu pai tocara enquanto<br />

músico na corte do rei da sua tribo, a<br />

200 quilómetros <strong>de</strong> Kinshasa”.<br />

Problema quase filosófico<br />

A relação <strong>de</strong> Vincent Kenis com a música<br />

congolesa começou no final dos<br />

Electricida<strong>de</strong> a céu<br />

A série Congotronics, sinónimo <strong>de</strong> electrificação <strong>de</strong> instrumentos precários para se<br />

sobreporem ao tráfego <strong>de</strong> Kinshasa, é-nos explicada pelo seu produtor Vincent Kenis,<br />

numa altura em que duas compilações revisitam a matéria dada. Gonçalo Frota<br />

26 • Sexta-feira 7 Janeiro 2011 • Ípsilon

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!