Flash - Fonoteca Municipal de Lisboa
Flash - Fonoteca Municipal de Lisboa
Flash - Fonoteca Municipal de Lisboa
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
“No Oci<strong>de</strong>nte<br />
po<strong>de</strong>mos mudar<br />
<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> a toda<br />
a hora. Po<strong>de</strong>mos<br />
tocar reggae num dia<br />
e música indiana<br />
no dia seguinte.<br />
No Congo, a tua<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> é o padrão<br />
rítmico específico que<br />
tocas no chocalho,<br />
uma dança específica,<br />
e é complicado<br />
perceber uma cultura<br />
em que não estamos<br />
ligados a algo”<br />
Vincent Kenis<br />
Há mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos que Vincent Kenis<br />
<strong>de</strong>sembarcava regularmente no<br />
Aeroporto Internacional <strong>de</strong> N’Djili em<br />
Kinshasa. Nas mãos, carregava a bagagem<br />
para uma estada <strong>de</strong> duração<br />
incerta; no estômago amarrotado, a<br />
ansieda<strong>de</strong> electrizante <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r finalmente<br />
<strong>de</strong>scobrir o rasto <strong>de</strong> um grupo<br />
chamado Konono Nº1, <strong>de</strong>saparecido<br />
<strong>de</strong> circulação há 20 anos. Mas a esperança<br />
começava a ruir. De cada vez,<br />
os resultados das suas investigações<br />
eram-lhe sempre lembrados num familiar<br />
número redondo (que parecia<br />
piscar a um ritmo <strong>de</strong>smaiado na sua<br />
<strong>de</strong>spedida <strong>de</strong> N’Djili): zero. Numa nova<br />
investida, Vincent <strong>de</strong>ixou-se conduzir<br />
pela mão da filha <strong>de</strong> Dr. Nico –<br />
um dos gran<strong>de</strong>s heróis da guitarra no<br />
Congo, sendo o outro Franco – a todos<br />
os sítios que, na cabeça <strong>de</strong>la, po<strong>de</strong>riam<br />
sugerir quaisquer pistas. Uma<br />
vez mais, zero. Até que o acaso tratou<br />
<strong>de</strong> produzir os resultados que o planeamento<br />
falhara. Ao passearem calmamente<br />
por uma <strong>de</strong>ssas gran<strong>de</strong>s<br />
avenidas da capital da República Democrática<br />
do Congo, a janela aberta<br />
<strong>de</strong> uma qualquer associação <strong>de</strong>ixou<br />
escapar para a rua o som dos Konono<br />
e a imagem <strong>de</strong> gente a dançar uma<br />
música perdida no tempo como se<br />
fosse o sucesso do momento. Vincent<br />
tinha <strong>de</strong>scoberto uma espécie <strong>de</strong> clube<br />
<strong>de</strong> fãs do grupo e jogou a sua cartada<br />
<strong>de</strong>sesperada.<br />
O contacto ali estabelecido assegurou-lhe<br />
que conseguiria chegar à fala<br />
com os Konono. Vincent esperou um<br />
telefonema durante o resto da sua<br />
estada em Kinshasa, mas foi só <strong>de</strong>pois<br />
do regresso a Bruxelas que soube que<br />
pouco <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter apanhado o avião<br />
<strong>de</strong> volta o grupo voltara a juntar-se.<br />
E que, afinal, nunca tinham parado<br />
<strong>de</strong> tocar, simplesmente tinham sido<br />
escorraçados para a teia <strong>de</strong> uma periferia<br />
pantanosa e insondável, on<strong>de</strong><br />
viviam muitos dos praticantes originais<br />
do som tradi-mo<strong>de</strong>rne <strong>de</strong> que os<br />
Konono eram o diamante mais visível.<br />
Diz Vincent que se tratou <strong>de</strong> uma manobra<br />
do autoritarismo <strong>de</strong> Mobutu,<br />
presi<strong>de</strong>nte entre 1965 e 1997, <strong>de</strong>rrubado<br />
apenas pela morte, invenção <strong>de</strong><br />
um cancro na próstata. Quando em<br />
71 Mobutu iniciou a sua Campanha<br />
pela Autenticida<strong>de</strong>, recusando todas<br />
as referências exteriores e promovendo<br />
a supremacia cultural africana,<br />
obrigando todos os congoleses a substituírem<br />
os nomes europeus por nomes<br />
africanos, fazendo do Congo um<br />
outro país chamado Zaire, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u<br />
o aparecimento e a sobrevivência <strong>de</strong><br />
grupos como os Konono Nº1 e os Kasai<br />
Allstars. “Diziam às pessoas para<br />
não ouvirem música estrangeira, para<br />
que ficassem mais próximas da sua<br />
cultura”, lembra Kenis. “O que parece<br />
uma excelente i<strong>de</strong>ia para um país<br />
muito musical e tão gran<strong>de</strong> quanto<br />
um continente”.<br />
Em 1974, quando se <strong>de</strong>u o lendário<br />
combate <strong>de</strong> boxe entre George Foreman<br />
e Muhammad Ali em Kinshasa,<br />
o tradi-mo<strong>de</strong>rne era um movimento<br />
imenso na capital, com grupos a povoarem<br />
cada esquina, como prostitutas<br />
numa cida<strong>de</strong> europeia. Foi esse<br />
cenário que o músico sul-africano Hugh<br />
Masekela encontrou quando se<br />
<strong>de</strong>slocou para testemunhar o gancho<br />
<strong>de</strong> direita com que Ali <strong>de</strong>itou Foreman<br />
ao tapete. O KO que <strong>de</strong>volveu Ali<br />
ao trono mundial, ao <strong>de</strong>rrotar um adversário<br />
mais novo, teria um correspon<strong>de</strong>nte<br />
inverso na música congolesa.<br />
Mobutu <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ver nestes<br />
grupos <strong>de</strong> expressão mais tribal um<br />
meio para chegar às massas, e o Estado<br />
fechou a torneira, escorraçando-os<br />
para fora do centro, abrindo caminho<br />
para a juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> grupos trans-étnicos,<br />
para a rumba, para o jazz africano,<br />
“mais fáceis <strong>de</strong> usar como meio<br />
político, porque se dirigiam ao país<br />
como um todo”. Estes géneros seriam<br />
<strong>de</strong>pois engolidos pela proliferação <strong>de</strong><br />
música religiosa inspirada pelo gospel<br />
americano que tomou conta das ruas<br />
Kasai Allstars<br />
e Konono<br />
Nº1 elevam a<br />
música tribal<br />
congolesa a<br />
fenómeno da<br />
world music<br />
até hoje e que a juventu<strong>de</strong> se habituou<br />
a encarar como a face da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />
congolesa. Daí que a sonorida<strong>de</strong><br />
tradi-mo<strong>de</strong>rne dos Congotronics, se<br />
mostrada agora aos locais, é <strong>de</strong>scartada<br />
com uma sentença: “Ah, isto é<br />
música dos anos 70”. É música <strong>de</strong>masiado<br />
associada ao passado, a Mobutu<br />
e à propaganda para que possa gozar<br />
do mesmo sucesso com que chega ao<br />
exterior.<br />
Quando Vincent voltou ao Congo<br />
em 2002 para gravar os Konono Nº1,<br />
estava prestes a dar origem a um dos<br />
mais marcantes fenómenos na world<br />
music: a série Congotronics. O “tronics”,<br />
entenda-se, não é tanto alusivo<br />
à electrónica quanto à electricida<strong>de</strong>,<br />
uma vez que a força propulsora <strong>de</strong>sta<br />
música é o som dos três likembés passados<br />
por amplificadores que, por sua<br />
vez, me<strong>de</strong>iam servem <strong>de</strong> canais <strong>de</strong><br />
distribuição <strong>de</strong> energia para os corpos<br />
<strong>de</strong> quem ouve. Segundo se conta,<br />
Mingiedi, o fundador do grupo, terse-á<br />
interessado pela electrificação<br />
dos instrumentos para que a música<br />
não morresse sob o tráfego incessante<br />
<strong>de</strong> Kinshasa. E, portanto, quando<br />
Kenis se encontrou com o grupo em<br />
2002, <strong>de</strong>u <strong>de</strong> caras com a mesma música<br />
por que se tinha apaixonado 20<br />
anos antes ao ouvir os Konono num<br />
programa da rádio France Culture,<br />
miraculosamente abrigada <strong>de</strong> qualquer<br />
tentação mo<strong>de</strong>rnizadora. Afinal,<br />
conta o homem que produziu a série<br />
Congotronics, Mingiedi pretendia<br />
apenas “reproduzir a música tradicional<br />
que o seu pai tocara enquanto<br />
músico na corte do rei da sua tribo, a<br />
200 quilómetros <strong>de</strong> Kinshasa”.<br />
Problema quase filosófico<br />
A relação <strong>de</strong> Vincent Kenis com a música<br />
congolesa começou no final dos<br />
Electricida<strong>de</strong> a céu<br />
A série Congotronics, sinónimo <strong>de</strong> electrificação <strong>de</strong> instrumentos precários para se<br />
sobreporem ao tráfego <strong>de</strong> Kinshasa, é-nos explicada pelo seu produtor Vincent Kenis,<br />
numa altura em que duas compilações revisitam a matéria dada. Gonçalo Frota<br />
26 • Sexta-feira 7 Janeiro 2011 • Ípsilon