No ringuecom Bruno <strong>de</strong> Almeida“Bobby Cassidy” é muito bonito por várias razões. Por exemplo: sendo <strong>um</strong> doc<strong>um</strong>entáriosobre <strong>um</strong> pugilista americano, incita a nossa imaginação a ver ali Nova Iorque e o cinemaamericano dos anos 70. Foi isso que levámos para o ringue. Vasco CâmaraCinemaBobby Cassidy “O que meinteressou foi esse lado <strong>de</strong> ‘journeymen’<strong>de</strong>sses pugilistas do final dos anos 70, quesemana a semana faziam o seu serviço”Atirámo-nos para o ringue com “OToiro Enraivecido”. Há qualquercoisa <strong>de</strong> ritual sacrificial nisto, masBruno <strong>de</strong> Almeida não protestou. Conheceos combates <strong>de</strong> cor, sabe, claro,que o filme <strong>de</strong> Martin Scorsese é apreto e branco por sugestão <strong>de</strong> <strong>um</strong>atleta da cor, Michael Powell... Tratapor tu as modulações da agressivida<strong>de</strong>entre as personagens <strong>de</strong> Robert DeNiro e Joe Pesci, irmãos no filme. Écapaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>slizar com o “fast forward”até ao “frame” em que o ciúme tomaconta <strong>de</strong> Jake La Motta/De Niro, do“Did you fuck my wife?” disparado aPesci ao “did you fuck my brother?”com que cerca a mulher, Vicky (CathyMoriarty). “Adoro estas cenas, maisdo que as dos combates <strong>de</strong> boxe”,diz.E faz-nos <strong>de</strong>scobrir, por entre a florestasonora que é “O Toiro Enraivecido”,os sons <strong>de</strong> elefantes que Frank E.Warner, o “sound effects supervisingeditor”, ali meteu e que “não têm a vercom nada” – e nós fazêmo-lo <strong>de</strong>scobrir,junto ao som dos elefantes, <strong>um</strong> pedaço<strong>de</strong> <strong>um</strong>a canção <strong>de</strong> Marilyn, que tambémnão tem a ver com nada. Alguémduvida que “O Toiro Enraivecido” é <strong>um</strong>c<strong>um</strong>e orgiástico atingido <strong>de</strong>baixo dainfluência do génio? Há aquele momentoem que Jake La Motta se oferece aSugar Ray Robinson, “Hey Ray, you’venever got me down...”, e Sugar Ray faz<strong>um</strong> banquete...“Como é que se faz <strong>um</strong> filme <strong>de</strong> boxea seguir a este?”, pergunta o realizador<strong>de</strong> “Bobby Cassidy: Counterpuncher”,história <strong>de</strong> <strong>um</strong> ex-pugilistaamericano, activo entre os anos 60 e1980, contada pelo corpo do próprio.É <strong>um</strong>a boa pergunta...Mas Bruno aceitou o ritual: começaresta “jukebox” <strong>de</strong> filmes comScorsese e o filme <strong>de</strong> que ele quis fugir.Explica porque é que não quispensar em “O Toiro Enraivecido”: oseu, diz, é menos <strong>um</strong> filme sobre boxedo que <strong>um</strong> filme sobre a relaçãoentre <strong>um</strong> pai, Bobby Cassidy, e os doisfilhos, pelos quais ele subiu ao ringueao longo dos anos. “O meu pai morreuno ano passado. Acho que acabei estefilme para lidar com a morte <strong>de</strong>le”,confessa o realizador.Mais diferenças... “O Jake [La Motta]foi <strong>um</strong> campeão, o Bobby nuncafoi; o Jake tinha <strong>um</strong> lado sacrificial, oBobby nunca teve. O que me interessoufoi esse lado <strong>de</strong> ‘journeymen’ <strong>de</strong>ssespugilistas do final dos anos 70, quesemana a semana faziam o seu serviço”.A figura, concorda, foi entretantosubstituída pelo equivalente ao“blockbuster” cinematográfico: o pugilistaprogramado para ganhar.“Interessam-me os mundos fechados,do pugilista, do toureiro ou dofadista, mundos com códigos... Umtipo que passa a vida a levar porradacomo é que vive, como é que ama?”– na mesa da sala <strong>de</strong> Bruno estão doislivros: “On Boxing”, <strong>de</strong> Joyce CarolOates, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> tirou a disposição daautora para olhar para os pugilistascomo quem contempla os limites doh<strong>um</strong>ano, e “The Fight”, <strong>de</strong> NormanMailer, sobre o combate entreMuhammad Ali e George Foremanno Zaire.O pugilista como actorExplicamos porque é que começámoseste “zapping” por Scorsese.Por causa do monólogo <strong>de</strong> BobbyCassidy, repetindo omonólogo <strong>de</strong>“Requiem for aHeavyweight”(1962),<strong>de</strong> Ralph Nelson,e do monólogo<strong>de</strong> JakeLa Motta, <strong>de</strong>“Interessam-meos mundos fechados,do pugilista,do toureiro oudo fadista, mundoscom códigos... Um tipoque passa a vida alevar porrada como éque vive, como éque ama?”Bruno <strong>de</strong> Almeida24 • Sexta-feira 19 Fevereiro 2010 • Ípsilon
“O Toiro Enraivecido”, cruzandoShakespeare com o Brando <strong>de</strong> “HáLodo no Cais”. Por causa dos pugilistascomo actores, como “performers”,e obcecados pelos actores e pelos“performers”. “É verda<strong>de</strong>, alguém jáme disse que quando Bobby Cassidy,no meu filme, está a contar históriasreais é mais teatral do que quandoestá a representar o monólogo. O boxeé <strong>um</strong>a representação”, confirma.Isso é das coisas mais bonitas <strong>de</strong>“Bobby Cassidy”: a disposição paraoferecer o ringue ao corpo do pugilista,para <strong>de</strong>ixá-lo representar(-se).Isso e a maneira como, com a subtilinserção <strong>de</strong> fotos, acaba por fazer <strong>um</strong>doc<strong>um</strong>entário sobre a Nova Iorquedos anos 70. E sobre o cinema <strong>de</strong>ssadécada – <strong>um</strong> doc<strong>um</strong>entário imaginado,está sobretudo na nossa memória<strong>de</strong> espectadores.Passamos a “Os Incorruptíveiscontra a Droga”, <strong>de</strong> William Friedkin,por causa dos viadutos do metro,por causa <strong>de</strong> <strong>um</strong>a cida<strong>de</strong> que já<strong>de</strong>sapareceu, e porque Bobby é parecidocom Gene Hackman. Mas, respon<strong>de</strong>Bruno, melhor seria pegar emSidney L<strong>um</strong>et, no seu “Serpico” ouno seu “Dia <strong>de</strong> Cão”. “Cresci comeste cinema; os meus pais eram membrosda Comissão <strong>de</strong> Classificação <strong>de</strong>Espectáculos, e por isso entre os 11 eos 14 anos vi esses filmes”. E Brunofaz entrar Harry Nilsson e o nostálgicoe <strong>de</strong>vastador “Everybody’s Talkin”<strong>de</strong> “O Cowboy da Meia-Noite”, <strong>de</strong>John Schlesinger.“É dos meus favoritos”, extasia-se(para acrescentar que mesmo assimnão encontra em Dustin Hoffman a“mesma verda<strong>de</strong>” que encontra emDe Niro ou em Pacino). Extasia-se mesmo,Bruno. Com o olhar exterior <strong>de</strong>steinglês, Schlesinger, fascinando pelaAmérica: “É quase o filme perfeito arepresentar aquela época... Olha o quese passa aqui...”. E o que se passa alié <strong>um</strong> compacto <strong>de</strong> “flashbacks” e“flashforwards” com que – estávamosem pleno “mainstream” dos anos 70(o “mainstream” já não é mesmo oque era!) – Schlesinger experimentava,introduzia <strong>um</strong>a dimensão alucinatóriano realismo. E já que estamos aí...“Taxi Driver”. “Eu gosto mais do‘Taxi Driver’ do que do ‘Toiro Enraivecido’.A minha Nova Iorque [Brunoviveu na cida<strong>de</strong> entre 1985 e 2006] éainda a do ‘Taxi Driver’”. A solidão...“É talvez o filme mais nova-iorquino,estamos mais sozinhos em Nova Iorquedo que noutra cida<strong>de</strong> qualquer”.A <strong>de</strong>ambulação inicial, o rosto <strong>de</strong>De Niro, a música <strong>de</strong> Bernard Herrmann,as cores (“isto é lindo, isto vemdo Mario Bava”) são <strong>um</strong> <strong>de</strong>slize irreversível.Bruno também trata por tuo filme. “A [montadora] Marcia Lucasnão gostava <strong>de</strong>stes cortes [três vezesrepetem-se, cadência musical marcada,os planos dos sinais l<strong>um</strong>inosos <strong>de</strong>trânsito], mas são do Scorsese. É <strong>um</strong>filme influenciado pelo Godard. Egosto mais do De Niro aqui do que noO Toiro Enraivecido Há aquele momento em que Jake La Motta se oferece a Sugar RayRobinson, “Hey Ray, you’ve never got me down...”, e Sugar Ray faz <strong>um</strong> banquete... “Como é que sefaz <strong>um</strong> filme <strong>de</strong> boxe a seguir a este?”, pergunta Bruno <strong>de</strong> AlmeidaO Cowboy da Meia-Noite É Bruno quefaz entrar Harry Nilsson a cantar o nostálgico e<strong>de</strong>vastador “Everybody’s Talkin”. “É dos meusfilmes favoritos”, extasia-se, para acrescentar quemesmo assim não encontra em Dustin Hoffman a“mesma verda<strong>de</strong>” que encontra em Robert DeNiroou em Al PacinoTaxi Driver “Eu gosto mais do ‘Taxi Driver’do que do ‘Toiro Enraivecido’. A minha NovaIorque [Bruno viveu na cida<strong>de</strong> entre 1985 e 2006]é ainda a do ‘Taxi Driver’. É talvez o filme maisnova-iorquino, estamos mais sozinhos em NovaIorque do que noutra cida<strong>de</strong> qualquer”New York, New York “O Scorsese foicriticado por ter <strong>de</strong>morado alguns segundos sobreos olhos da Liza Minnelli ao espelho neste plano.Ele estava completamente apaixonado por ela”A Ultrapassagem “O meu primeiro filme[‘On the Run’] é influenciado por este, por causada relação entre as personagens: <strong>um</strong> ingénuo quecomeça a viver [Trintignant] e <strong>um</strong> extrovertido”que o perverte [Gassman]O Samurai “Cost<strong>um</strong>o mostrar este filme aosmeus actores. Pela economia. Isto é só cinema. Nãotem a ver com mais nada. O De Niro e o Pacino nãoconseguiam fazer o que faz aqui o Alain Delon,que nem era gran<strong>de</strong> actor. Não conseguiriamaguentar o lado artificial <strong>de</strong> tudo isto”Os Sapatos Vermelhos “Não há este<strong>de</strong>splante hoje. Acho que é [Michael Powell] maisrelevante do que o Hitchcock. É <strong>um</strong> cineasta queinfluenciou todos os outros”‘Toiro Enraivecido’, porque é menosrepresentação, há <strong>um</strong> lado neste filmequase doc<strong>um</strong>ental, antropológico.Lembro-me <strong>de</strong> ter chegado a NovaIorque [em 1985] e <strong>de</strong> sentir a verda<strong>de</strong>do ‘Taxi Driver’”.Solidão por solidão... “O Samurai”,<strong>de</strong> Jean-Pierre Melville. “Sefizesse <strong>um</strong>a sessão dupla, seria como ‘Taxi Driver’ e com ‘O Samurai’. Estáentre os meus <strong>de</strong>z filmes favoritos.Cost<strong>um</strong>o mostrar este filme aos meusactores. Pela economia. Isto é só cinema.Não tem a ver com mais nada.O De Niro e o Pacino não conseguiamfazer o que faz aqui o Alain Delon, quenem era gran<strong>de</strong> actor. Não conseguiriamaguentar o lado completamenteartificial <strong>de</strong> tudo isto” – no ecrã, Delone o seu chapéu, gesto que se ritualizaao longo da obra <strong>de</strong> Melville. “Isto é<strong>um</strong> gajo francês influenciado pelosfilmes americanos que <strong>de</strong>pois vai influenciaros americanos!”.Este tráfico é a história do cinemaamericano e do cinema europeu. Eeste tráfego, entre realismo e artificialismo,é o fascínio <strong>de</strong> Bruno. “Adoravafazer <strong>um</strong> filme completamenteplástico”. Vejam: “Os Chapéus <strong>de</strong>Chuva <strong>de</strong> Cherburgo”, <strong>de</strong> JacquesDemy, logo no genérico. “Incrível...os franceses conseguem sempre sairsebem”. “Os Sapatos Vermelhos”,<strong>de</strong> Michael Powell: “Não há este <strong>de</strong>splantehoje. Acho que é mais relevantedo que o Hitchcock. É <strong>um</strong> cineastaque influenciou todos os outros. Olhaas cores do ‘Querelle’, do Fassbin<strong>de</strong>r...E o ‘New York, New York’ [Scorsese]é todo tirado daqui”.“New York, New York”... “Os melhoresmovimentos <strong>de</strong> câmara <strong>de</strong>Scorsese estão neste filme”. Que juntao artifício total à saturação cassavetesianado improviso. O que fascinaBruno. Faz-nos parar n<strong>um</strong> plano que,no seu artificialismo, é também <strong>um</strong>pedaço <strong>de</strong> doc<strong>um</strong>entário: “O Scorsesefoi criticado por ter <strong>de</strong>morado algunssegundos sobre os olhos da LizaMinnelli ao espelho neste plano. Eleestava completamente apaixonadopor ela”.Trânsito final, para algo só aparentementediferente porque vive da mesmaoscilação entre o doc<strong>um</strong>ento e avoracida<strong>de</strong> da construção: “A Ultrapassagem”,Dino Risi. “O meu primeirofilme [‘On the Run’] é influenciadopor este, por causa da relaçãoentre as personagens, a história <strong>de</strong>opostos: <strong>um</strong> ingénuo que começa aviver [Jean-Louis Trintignant] e <strong>um</strong>extrovertido” que o perverte [VittorioGassman]. “É <strong>um</strong> ‘buddy movie’, é <strong>um</strong>‘road movie’, não se percebe bem, queinfluenciou o Scorsese na utilização damúsica popular na banda sonora. É <strong>um</strong>filme sobre a perda da inocência”.Depois disto ainda tentámos QuentinTarantino. E a resposta veio eminglês: “Smart movies for supermarketaudiences”.Ver crítica <strong>de</strong> filmes pags 52 e segsÍpsilon • Sexta-feira 19 Fevereiro 2010 • 25