Quando cheguei, James Ellroy estavaa dar outra entrevista. Falava n<strong>um</strong>tom <strong>de</strong> voz doce, sinal <strong>de</strong> já ter criadoc<strong>um</strong>plicida<strong>de</strong> com <strong>um</strong>a colega <strong>de</strong>outra publicação. No final até lhepediu para voltar a entrevistá-lo parao ano que vem, quando sair o seunovo livro. Então, afinal, a irascibilida<strong>de</strong>e a soberba, frequentemente<strong>de</strong>nunciadas pelos críticos <strong>de</strong> Ellroy,não passam <strong>de</strong> mistificação? Fiqueicom a impressão que o escritor norte-americano<strong>de</strong> 61 anos guarda a suaface mais sedutora para jornalistas<strong>de</strong> saias. Digamos que a minha conversacom Ellroy evoluiu em muitossentidos, menos para <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong>confraternização ídolo/fã – o que estálonge <strong>de</strong> querer dizer que tenharedundado n<strong>um</strong> fracasso. Na verda<strong>de</strong>,até parece ter resultado melhorno papel que ao vivo.James Ellroy esteve em <strong>Lisboa</strong>, no<strong>de</strong>curso da “tournée” <strong>de</strong> “Sangue Vadio”,o romance que encerra a trilogia“Un<strong>de</strong>rworld USA”. Entre nós a Presençaacaba <strong>de</strong> reeditar “A Dália Negra”,“A Colina dos Suicídios”, “NoEscuro da Noite” e “Sangue na Lua”.A edição <strong>de</strong> “Sangue Vadio” fica prometidapara Maio.Os <strong>de</strong>graus da ambiçãoGeneve O<strong>de</strong>lia, nascida Hilliker emãe <strong>de</strong> James Ellroy, foi brutalmenteassassinada, em 1958, em El Monte,Califórnia. Na altura, Ellroy tinha<strong>de</strong>z anos e os pais estavam divorciados.O assassínio nunca foi resolvidoe, naturalmente, teve impactona sua juventu<strong>de</strong>. Ellroy nunca acabouos estudos, embarcou n<strong>um</strong>arotina <strong>de</strong> álcool, drogas e pequenoscrimes, vivendo sem tecto. Acaboupor ir <strong>de</strong>ntro, contraindo pne<strong>um</strong>o-DANIEL ROCHALivrosJames Ellroyem <strong>Lisboa</strong>, napromoção <strong>de</strong>“SangueVadio”, oromance queencerra atrilogia“Un<strong>de</strong>rworldUSA” e queserá editadopor cá emMaio26 • Sexta-feira 19 Fevereiro 2010 • Ípsilon
nia na prisão, da qual saiu sóbrio edisposto a iniciar nova vida como“caddy” <strong>de</strong> golfe e escritor nas horasvagas. Publicou o primeiro romance,“Brown’s Requiem”, em 1981,<strong>um</strong>a história policial, justamentebaseada na sua experiência como“caddy”.Seguiu-se <strong>um</strong>a série <strong>de</strong> romancesno estilo clássico <strong>de</strong> policiais negros,que lhe valeu <strong>um</strong> estatuto <strong>de</strong>escritor <strong>de</strong> culto nos anos 80. Veio<strong>de</strong>pois o “Quarteto <strong>de</strong> LA” – “A DáliaNegra”, “The Big Nowhere”, “LAConfi<strong>de</strong>ntial” e “White Jazz” –, misturandoficção e história e empregandodispositivos narrativos heterodoxosque vieram a convergir naentrada do romance policial na erapós-mo<strong>de</strong>rna. Mas o “Quarteto”impôs-se, sobretudo, como retratodo sonho californiano a sangrar atése tornar em pesa<strong>de</strong>lo vivo. No passoseguinte, em 1996, Ellroy publicou“My Dark Places”, a sua própriainvestigação ainda e sempre inconclusivasobre o assassínio da mãe,que acaba por ser <strong>um</strong>a insólita autobiografiae <strong>um</strong> dos seus melhoreslivros até à data.Entretanto Ellroy tornou-se <strong>um</strong>acelebrida<strong>de</strong> e os seus romances maispopulares <strong>de</strong>ram lugar a adaptaçõesno cinema e na televisão. Incentivosque o encorajaram a subir a parada,avançando para “Un<strong>de</strong>rworld USA”,<strong>um</strong>a nova trilogia já não no registo dopolicial, mas no do romance histórico.Definida pelo próprio como “<strong>um</strong>ahistória secreta <strong>de</strong> meados/finais doséculo XX”, arranca em Novembro<strong>de</strong> 1952 e acaba em Maio <strong>de</strong> 1972, cobrindo<strong>um</strong> dos períodos mais conturbadose ainda enigmáticos <strong>de</strong> históriados EUA. Começa com “AmericanO assassínio <strong>de</strong> Elizabeth Short, cujo corpo apareceu mutilado em Los Angeles, em 1947, obcecouEllroy em “A Dália Negra”, pedra <strong>de</strong> toque da mistura <strong>de</strong> ficção e história que é “Quarteto <strong>de</strong> LA”Tabloid” (1995), que se centra no período<strong>de</strong> ascensão e queda <strong>de</strong> John F.Kennedy, culminando no seu assassinatoem Dallas, em Novembro <strong>de</strong>1963. “The Cold Six Thousand” reporta-seao turbulento período posterior,que levou aos assassinatos <strong>de</strong>Martin Luther King e Robert Kennedy,em 1968. E trilogia encerra com“Sangue Vagabundo” (“Blood’s A Rover”),que começa na ressaca dasmortes daquelas figuras públicas,atravessa as convenções <strong>de</strong>mocráticae republicana <strong>de</strong> 1968, a eleição <strong>de</strong>Nixon nesse ano e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> novo em1972, explorando a concomitância<strong>de</strong>sses acontecimentos com fenómenoscomo o activismo negro e a contestaçãoestudantil, até <strong>de</strong>sembocarnas vésperas do Watergate. É <strong>um</strong>alonga sequência <strong>de</strong> conjuras políticas,assassínios e convulsões sociaisque “Un<strong>de</strong>rworld USA” vai retratandoatravés das vidas <strong>de</strong> personagenssecundárias, inventadas mas colocadasno centro dos acontecimentos.Tal como o “Quarteto <strong>de</strong> LA”, o fionarrativo é assegurado pela transição<strong>de</strong> alg<strong>um</strong>as das personagens principais<strong>de</strong> <strong>um</strong> romance para outro e todosmisturam ficção e realida<strong>de</strong>.Também à semelhança do “Quarteto”,“Un<strong>de</strong>rworld USA” alterna o enredoficcionado com <strong>um</strong> sortido <strong>de</strong>doc<strong>um</strong>entos forjados, e assim criando<strong>um</strong> hipérbole narrativa, que contrastaostensivamente com a linguagemvernacular e o fraseado minimalem que se alicerça.Escrever com tomatesO início da conversa com Ellroy é pacífico.Começo por c<strong>um</strong>primentá-lopelos 17 romances que publicou, <strong>de</strong>stacando“My Dark Places”. Ele respon<strong>de</strong>com a falta <strong>de</strong> modéstia quejá o levou a auto-retratar-se como “omaior escritor <strong>de</strong> policiais vivo dosEstados Unidos”, a comparar-se emtermos artísticos a Beethoven, ou alembrar que Joyce Carol Oates o rotulou<strong>de</strong> “Dostoievski americano”. Avoz revela-se coloquial, <strong>um</strong>a escalaabaixo do normal, conferindo <strong>um</strong>certo charme “cool” ao seu discursoaustero, mas articulado, levementeteatral.Ganhou celebrida<strong>de</strong> a escrever romancespoliciais. O que o levou apassar aos romances históricos?Houve <strong>um</strong>a fase importante <strong>de</strong> transição,marcada pelo “Quarteto <strong>de</strong> LA”,<strong>um</strong>a série <strong>de</strong> romances históricos sobrea polícia <strong>de</strong> Los Angeles. Quis escreverlivros maiores, melhores, mais profundos.Quis passar da fase Los Angelespara <strong>um</strong>a fase geopolítica mundial.Isto por <strong>um</strong>a questão <strong>de</strong> ambição pessoal,<strong>de</strong> orgulho espiritual <strong>de</strong> me tornar<strong>um</strong> escritor cada vez melhor.Admitiu que “Libra” <strong>de</strong> DonDeLillo foi a razão que o levoua escrever “Un<strong>de</strong>rworld USA”.Po<strong>de</strong> explicar essa conexão?O livro <strong>de</strong> Don DeLillo é <strong>um</strong> romance<strong>de</strong>finitivo sobre o assassinato <strong>de</strong> JohnF. Kennedy. Depois <strong>de</strong> o ler percebi quenão faria sentido eu voltar a escrever<strong>um</strong> romance sobre o mesmo tema. Mastambém me <strong>de</strong>i conta que po<strong>de</strong>ria escrever<strong>um</strong>a trilogia sobre essa épocasem me concentrar no assassínio. Quandocomecei a escrever “Un<strong>de</strong>rworldUSA”, a primeira coisa que fiz foi pôr“Libra” <strong>de</strong> lado. Fiz todos os esforços“Po<strong>de</strong>r dar <strong>um</strong>tiro em algunsmafiosos– isso, sim,far-me-ia feliz”James Ellroy ass<strong>um</strong>e que é homem à altura dos homens dos seus livros: autoritário e comforte fixação em mulheres; homem <strong>de</strong> consciência, mesmo se a conduta pessoal não é a maiscorrecta. Foi <strong>um</strong>a entrevista tensa e musculada – faz justiça à fama <strong>de</strong> génio contorcido doescritor a que Joyce Carol Oates chamou “o Dostoievski americano”. Luís MaioÍpsilon • Sexta-feira 19 Fevereiro 2010 • 27