Vida em confusão, fotFotografou, foi fotografada: em 34 anos, a suíça Annemarie Schwarzenbach foi tanto<strong>um</strong> sujeito como <strong>um</strong> objecto do século XX. Uma exposição no Museu Colecção Berardo,em <strong>Lisboa</strong>, reconstitui agora as viagens (e a viagem) da vida <strong>de</strong>la. Sérgio B. GomesExposições<strong>Lisboa</strong>, s/a,1941-1942É <strong>um</strong> risco. E quem o correu não querfazer apostas. Nem <strong>um</strong>a previsão sobreas superfícies impressas para on<strong>de</strong>mais ten<strong>de</strong>rá o nosso olhar – se para asfotografias on<strong>de</strong> Annemarie Schwarzenbachfoi fixada, se para as fotografiasque Annemarie Schwarzenbachfixou. É a obra a <strong>de</strong>ixar-se ofuscar pelaimagem do seu criador. Nada que nãose tenha já concretizado, nada que nãose pu<strong>de</strong>sse já antever em relação a estaviajante suíça, também fotógrafa eaprendiz <strong>de</strong> arqueóloga, mas sobretudoescritora compulsiva, que durante<strong>um</strong>a vida curta (morreu aos 34 anos)se <strong>de</strong>dicou ao romance, ao conto, àepístola, à poesia e à reportagem, alg<strong>um</strong>asvezes sobre os outros, quasesempre sobre si, sobre os seus medos,angústias e contradições.Esta ameaça <strong>de</strong> sombra (que tambémpo<strong>de</strong> ser <strong>de</strong> brilho) não é nova.Emília Tavares e Sónia Serrano, as comissárias<strong>de</strong> “Auto-Retratos do Mundo- Annemarie Schwarzenbach, 1908-1942”, a exposição que na segundafeiraabre portas no Museu ColecçãoBerardo, em <strong>Lisboa</strong>, tiveram-na emconta e, no início do projecto, até pon<strong>de</strong>raramfugir <strong>de</strong>le, mas viram-se perante<strong>um</strong>a força icónica po<strong>de</strong>rosa, difícil<strong>de</strong> contornar – os rostos <strong>de</strong> Schwarzenbachimpuseram-se pare<strong>de</strong>s meiascom mais <strong>de</strong> <strong>um</strong>a centena <strong>de</strong> fotografiascaptadas pela sua Rolleiflex emgeografias longínquas (do Afeganistãoao Congo Belga), durante tempos agitados(da Áustria ocupada pelos nazisaos EUA mergulhados na Gran<strong>de</strong> Depressão).O magnetismo da figura andrógina<strong>de</strong> Annemarie Schwarzenbach e o seupo<strong>de</strong>r <strong>de</strong> sedução enquanto sujeitofotográfico já tinham sido experimentadosno Verão <strong>de</strong> 1987, quando a revistasuíça “Der Alltag” <strong>de</strong>cidiu resgatálado esquecimento com <strong>um</strong>a série <strong>de</strong>artigos a que se seguiu a publicação <strong>de</strong>38 • Sexta-feira 19 Fevereiro 2010 • Ípsilon
ografia em <strong>de</strong>vaneioAnnemarie S., “São Tomé: lugar das lavagens on<strong>de</strong> todas as mulheres se reúnem”, 1941 Annemarie S., “Afeganistão, Shabash, Moinhos”, 1939livros inéditos. Nessa altura, <strong>um</strong> retratoseu <strong>de</strong> 1930, estampado na capa <strong>de</strong><strong>um</strong>a revista e em cartazes espalhadospor Zurique, bastou para aguçar acuriosida<strong>de</strong> sobre quem teria sido e oque teria produzido aquele ser, cujorosto se revelava tão <strong>de</strong>sconcertante,simples e belo, cujo olhar se mostravatão melancólico, profundo e sombrio.Schwarzenbach, habituada a convivercom máquinas fotográficas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedopor causa <strong>de</strong> <strong>um</strong>a mãe obsessiva como registo da sua figura, parece conscientedo frenesi encantatório da suaimagem. Sónia Serrano conta no catálogoda exposição que a escritora envioua Clau<strong>de</strong> Carrac (segundo secretárioda <strong>de</strong>legação francesa na Pérsia,com quem manteve <strong>um</strong> casamento àdistância) a fotografia que muitos anosmais tar<strong>de</strong> fez capa da “Der Alltag” coma <strong>de</strong>dicatória “Quelque ressemblance<strong>de</strong> Annemarie” (“Alg<strong>um</strong>a semelhançacom Annemarie”) juntamente com“<strong>um</strong> provocatório texto sobre si” noverso do papel fotográfico. Conscienteou não <strong>de</strong>sse po<strong>de</strong>r, AnnemarieSchwarzenbach sabia estar diante <strong>de</strong><strong>um</strong>a objectiva, não a temia, <strong>de</strong>ambulavaà frente <strong>de</strong>la em poses sedutoras,que fazem lembrar sofisticadas produções<strong>de</strong> moda.Perto do precipícioPrimeiro, as passagens por <strong>Lisboa</strong> epelas ex-colónias portuguesas. Depoisas viagens por África, Médio Oriente eEUA. E <strong>de</strong>pois a vida na Europa central.À medida que se foram ac<strong>um</strong>ulandoos núcleos <strong>de</strong> fotografias captadas porAnnemarie Schwarzenbach durante assuas viagens e se foram organizandodoc<strong>um</strong>entos sobre a sua obra literária,cresceu a consciência <strong>de</strong> que faltava aimagem <strong>de</strong> <strong>um</strong>a viagem não menosimportante, também fornecida pelosinúmeros retratos que fizeram <strong>de</strong> si – aviagem interior, <strong>um</strong> caminho queSchwarzenbach nunca parou <strong>de</strong> percorrer.Sónia Serrano em conversa como Ípsilon: “Tendo ela esta força imagéticaera impossível não incluir fotografiassuas enquanto tema da fotografia.Tem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser fotografada. Etem a percepção do seu po<strong>de</strong>r enquantoimagem fotográfica. Esta predisposiçãopara a imagem está <strong>de</strong> alg<strong>um</strong>aforma relacionada com a obra literáriaque produz – quase tudo fala sobre si,quase tudo gira à sua volta.” Muito antesdo po<strong>de</strong>r da sua imagem, Annemariepasseou o seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> sedução empessoa: para o Nobel da Literatura francêsRoger Martin du Gard tinha <strong>um</strong>“belo rosto <strong>de</strong> anjo inconsolável”; afotógrafa berlinense Marianne Breslauer,com quem trabalhou no iníciodos anos 30, disse que era semelhantea <strong>um</strong>a obra <strong>de</strong> arte, “estranha misturaentre homem e mulher”; <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> aconhecer, a escritora americana CarsonMcCullers admitiu que o seu rostoa perseguiria “para toda a vida”.Assim <strong>de</strong>scrita, espalhando <strong>de</strong>sl<strong>um</strong>bramentoe erotismo, AnnemarieSchwarzenbach – “<strong>um</strong> dos segredosmais bem guardados da literatura europeia”,sublinha Carlos Vaz Marquesno prefácio a “Morte na Pérsia” (ed.Tinta da China, 2008) – parece muitosegura <strong>de</strong> si. É certo, no entanto, quea sua curta existência carregou intensaslutas interiores (tentativas <strong>de</strong> suicídio,constantes reabilitações por causada <strong>de</strong>pendência da morfina, homossexualida<strong>de</strong>reprimida pela família). Asua postura perante a vida, em constantevaivém, sempre perto <strong>de</strong> <strong>um</strong>qualquer precipício, em convulsão,reflecte em certa medida <strong>um</strong>a Europamergulhada em “mal-estar”, <strong>um</strong> continenteque assistiu à ascensão do nazismoe logo a seguir à <strong>de</strong>mência exterminadorapor ele gerada. Annemarieé oriunda <strong>de</strong> <strong>um</strong>a famíliaaristocrática, her<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> <strong>um</strong> milioná-“Mais do queas imagens que tirou,o que marcaa passagem<strong>de</strong> AnnemarieSchwarzenbach porPortugal são asimagens que nãotirou”Emília TavaresPortugal, o fim da aventuraFoi <strong>um</strong>a viagem <strong>de</strong> trabalho ao Norte<strong>de</strong> Espanha, em 1933, com a fotógrafaberlinense Marianne Breslauer, quemarcou o início <strong>de</strong> <strong>um</strong>a apropriaçãomais consequente da fotografia. Além<strong>de</strong> dar relevo à inevitável faceta literária<strong>de</strong> Annemarie Schwarzenbach nasua mais complexa teia <strong>de</strong> estilos e géneros,a exposição do Museu Berardoprocura i<strong>de</strong>ntificar as particularida<strong>de</strong>se a relevância criativa da imagem fotográficano conjunto da obra da aurionegócio ligado aos têxteis. N<strong>um</strong>asocieda<strong>de</strong> conservadora, e perante<strong>um</strong>a mãe possessiva (os Schwarzenbacheram simpatizantes do regime nazi),manifestou a sua discordância com or<strong>um</strong>o dos acontecimentos políticosrevelando “i<strong>de</strong>ias mo<strong>de</strong>rnas e antimilitaristas”.No início dos anos 30, <strong>de</strong>uinício a <strong>um</strong> ciclo <strong>de</strong> idas e voltas que sóteve fim quando morreu, em 1942,após complicações originadas por <strong>um</strong>aqueda <strong>de</strong> bicicleta, em Sils, no sul daSuíça.Terminada a formação académicaem História, em 1931, AnnemarieSchwarzenbach passou a <strong>de</strong>dicar-secada vez mais à escrita. Apesar <strong>de</strong> <strong>um</strong>aprodução relativamente vasta – se consi<strong>de</strong>rarmoso curto período em que suaobra fotográfica ganha efectivamentealg<strong>um</strong> relevo –, a fotografia nunca foio seu suporte <strong>de</strong> eleição e terá começadoa interessar-se por ele por influênciada mãe, fotógrafa compulsiva. Apalavra (ou a simples sonorida<strong>de</strong> quepotencia, como chegou a confessar) éo seu campo criativo favorito, mas oconjunto da obra fotográfica que produziuestá longe <strong>de</strong> ser figura <strong>de</strong> corpopresente. “As imagens que Schwarzenbachfoi produzindo nas viagens aolongo da sua vida gizam trajectos marginais<strong>de</strong> entendimento da fotografiamuitas vezes <strong>de</strong> forma completamentesolitária”, escreve Emília Tavares,para quem a fotografia da autora “nãose enquadra em nenh<strong>um</strong> género, nãosegue nenh<strong>um</strong> movimento e é difícil<strong>de</strong> catalogar”. As motivações para terpegado na Rolleiflex são variadas e vãodo registo doc<strong>um</strong>ental, <strong>de</strong> testemunhoou <strong>de</strong>núncia, à contemplação prazenteirae à mais pura <strong>de</strong>ambulação semobjectivo concreto, <strong>um</strong>a errância visualque condiz mais com o espírito <strong>de</strong>viajante do que com o <strong>de</strong> turista (Annemariecriticou sempre o “sightseeing”).Ípsilon • Sexta-feira 19 Fevereiro 2010 • 39