MúsicaAméliae o seu bicho<strong>de</strong> muitas cabeçasAno e pouco <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> rever a sua obra no CCB, AméliaMuge levou mais longe a i<strong>de</strong>ia que subjazia a essesconcertos e fez <strong>um</strong>a operação plástica: pegou n<strong>um</strong>adata <strong>de</strong> canções antigas, em canções que escreveupara outros e <strong>de</strong>u-lhes a volta. Porquê? Porque há <strong>um</strong>aaventura imensa naquela garganta. João BonifácioEm finais <strong>de</strong> Dezembro <strong>de</strong> 2008 fizerama Amélia Muge <strong>um</strong>a proposta quepo<strong>de</strong>ria parecer óbvia, mas cujo óbvioservia para lhe fazer justiça: apresentarno CCB, em <strong>Lisboa</strong>, <strong>um</strong> concertoem que o que estivesse em jogo fosseo seu lado <strong>de</strong> compositora.É certo que, entre os seus admiradores,sempre foi vista como compositora.Mas exponham <strong>um</strong>a canção<strong>de</strong>la ao português com<strong>um</strong> e o que eleassinalará <strong>de</strong> imediato será a voz, goste<strong>de</strong>la ou não. E no entanto há muitamúsica em Amélia Muge, bem maisque <strong>um</strong>a voz e bem mais do que aquiloque lhe conhecemos dos discos,por norma apelidados <strong>de</strong> experimentalistas– expressão que tem servidotanto para a laudar quanto para a <strong>de</strong>negrir.Na realida<strong>de</strong>, Amélia é bem maisque <strong>um</strong>a experimentalista. Uma parteda sua conta bancária tem sido preenchidacom as mais clássicas dascomposições nacionais: o fado. Temescrito para Ana Moura ou PedroMoutinho, irmão <strong>de</strong> Camané, e as requisiçõessão cada vez mais regulares.“Eu era incapaz <strong>de</strong> chegar à beira<strong>de</strong> <strong>um</strong>a pessoa e compor para ela”,diz, no seu jeito frontal <strong>de</strong> avaliar nãosó o que faz como também o mundointeiro – é <strong>um</strong>a conversadora nata queé capaz <strong>de</strong> estar horas a <strong>de</strong>bicar omundo na forma <strong>de</strong> palavra. “Nãotenho a veleida<strong>de</strong> <strong>de</strong> achar que sei osuficiente para o fazer”, diz, com <strong>um</strong>ah<strong>um</strong>ilda<strong>de</strong> que faz curioso contrastecom a força com que aborda todos osassuntos.Essas canções que escreveu paraoutros, canções que “nunca escreveria”se não lhe pedissem, acabarampor fazer parte do espectáculo <strong>de</strong> final<strong>de</strong> 2008 e “o espectáculo <strong>de</strong>u origema outro espectáculo” e esse aoutro e por aí fora, “até que se tornounisto”. O “isto” a que se refere era <strong>um</strong>objecto que estava na mesa à qual nossentámos para esta entrevista: “UmaAutora, 202 Canções”, o produto <strong>de</strong>sseconcerto único que se tornou noseu “PREC”, processo <strong>de</strong> reconstruçãoem movimento.Reconstrução porque não é o registoao vivo <strong>de</strong>sse concerto inicial, muitomenos inclui as 202 canções queregistou ao longo da sua carreira. É<strong>um</strong> disco único e <strong>de</strong> estúdio, mas nãopropriamente <strong>um</strong> disco <strong>de</strong> originais:antes <strong>um</strong> bicho <strong>de</strong> muitas cabeças emque se reúnem canções originais, revisõespor vezes radicais <strong>de</strong> temasantigos e faixas que havia escrito parafadistas.Ou seja, é o levar ao extremo doconceito do concerto original, realçaro lado <strong>de</strong> compositora revendo tudoo que podia ser revisto: os temas <strong>de</strong>fado soam a tudo menos fado, canções<strong>de</strong> discos antigos que antes estavamà guitarra agora têm electrónica,temas novos encontram-na com <strong>um</strong>maior controlo vocal que nunca.“Quando fiz o concerto no CCB e<strong>de</strong>pois fiz outro e ainda mais outro,tive ao meu lado os Gaiteiros <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>e a Ana Moura. Isso obrigou-mea rever as canções <strong>de</strong> <strong>um</strong> modo quese adaptasse a eles. Todo esse conjunto<strong>de</strong> circunstâncias levaram a essanoção <strong>de</strong> rever temas que dá origema este disco”.O rasto das cançõesPo<strong>de</strong> dar a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que se trata <strong>de</strong> <strong>um</strong>disco para preencher calendário, <strong>um</strong>mero recolher <strong>de</strong> canções que andavamperdidas, mais <strong>um</strong>as outras quenão tinham servido para os anterioresdiscos. Mas não é isso: é o prosseguirda inacabável tarefa <strong>de</strong> encontrar formasoriginais <strong>de</strong> dizer coisas, o mesmoprincípio que a move <strong>de</strong>s<strong>de</strong> oinício.E nesse sentido os fados, ou a revisãodos fados que escreveu, são emblemáticos<strong>de</strong>sse extraordinário esforço<strong>de</strong> criação <strong>de</strong> novos mundosque há muito a move. Há <strong>um</strong>a coisacuriosa que Amélia diz: que nuncapor si própria <strong>de</strong>sataria a compor <strong>um</strong>fado, mas se lhe pedirem tenta. Aofazê-lo, <strong>de</strong>scobre “novas soluçõesmusicais que <strong>de</strong>sconheça”, fica “atentaa coisas a que antes não estaria”,põe-se no “lugar do outro”, a imaginar“outras vozes” e com isso ela própria,com os seus métodos e os seusgostos, torna-se “outra coisa <strong>de</strong>sconhecida”.“Aprendo muito com o processo”,e isto encerra a chave do disco: cadacanção é <strong>um</strong> lugar precário e a distânciaque vai entre as versões aquicontidas e as anteriores (na voz <strong>de</strong>laou dos fadistas) são o cambaleantepercurso que <strong>um</strong> autor percorre naprocura <strong>de</strong> não ficar enclausurado noseu habitat mais óbvio.“As canções são algo em aberto”,diz, naquela que é, provavelmente, aimagem menos original que usou naconversa inteira: tal como nas palavrasque escreve para canções, Améliaem conversa dispara imagens como seu quê <strong>de</strong> literário e muito <strong>de</strong> imaginativopara explicar o que faz. Comoesta: “As canções são <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong>poeira que vai assentando”, como quea dizer que as canções não estão quietas,são quase impalpáveis e <strong>de</strong>moramo seu tempo até que <strong>de</strong>sapareçao que as escon<strong>de</strong>, assim as revelando.Conclui: “O importante aqui”, e aquié neste disco, “é procurar o rasto dascanções”.Uma exactidão emocionalUma boa parte <strong>de</strong>sse trabalho res<strong>um</strong>iu-sea saber “se era ou não possívelmudar alg<strong>um</strong>a coisa nas canções,em particular nas que já tinham apa-“Não é que não goste<strong>de</strong> pop, apenas hácoisas que cansam<strong>de</strong>masiado.recido” nos discos. Amélia aproximou-sedos seus arranjadores habituais,entre os quais o marido, e fezlhes<strong>um</strong>a pergunta: “Conseguemfazer alg<strong>um</strong>a coisa nova com isto?”.A pergunta tinha <strong>um</strong> objectivo simples:“Precisava <strong>de</strong> perceber com elesse as canções estavam esgotadas anível da paisagem musical”. Isto porque“não há arranjos perfeitos”, ouseja: nada garante que a canção original,o fado composto para outra voz,não tivesse ali outra canção <strong>de</strong>ntro<strong>de</strong>la. Acabou por dar-lhes não liberda<strong>de</strong>completa, mas c<strong>um</strong>plicida<strong>de</strong>completa: podia-se fazer tudo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>que todos ficassem satisfeitos. “Nascanções que tinham sido feitas paraoutros fui mais interveniente”, confessa.“Queria pôr o tear ao meu feitio”.Mas nada aqui trata apenas <strong>de</strong> remexerno caixote só por simples inquietu<strong>de</strong>.Trata-se <strong>de</strong> <strong>um</strong>a procura<strong>de</strong> exactidão. Porque “<strong>um</strong> tema, paraser arranjado, tem <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sconstruídono que tem <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias e simbo-32 • Sexta-feira 19 Fevereiro 2010 • Ípsilon
logias”. Porquê? “Porque é isso quetenho <strong>de</strong> transmitir n<strong>um</strong>a canção”.Ou seja: reescrever as canções significaprocurar <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> exactidãoemocional que não tinha sidoalcançada.Esta abordagem à música tem-lhevalido o epíteto <strong>de</strong> compositora difícil,algo com que não concorda:“Não ponho a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> serdifícil: se faço as coisas é porque nãome é assim tão difícil”. Tão menos<strong>de</strong>saprova a música dita “fácil.” “Nãoé que não goste <strong>de</strong> pop, apenas hácoisas que cansam <strong>de</strong>masiado. Quandose repete <strong>de</strong>masiadas vezes amesma frase musical, por exemplo”.Ainda assim, tem <strong>um</strong>a abordagemracional às músicas que não lhe interessam:“Tudo <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do que<strong>um</strong>a canção que ser: há canções quenão são feitas para serem ouvidasmas sim dançadas, e há algo <strong>de</strong> ritualnisso, pelo que a repetição fazsentido. Mas no que eu faço isso nãofaz sentido”.Curiosamente, diz, <strong>de</strong>scobriu quehá muito mais potencial para remexernas canções mais simples que nasmais complexas: “É engraçado queas músicas que só têm meia dúzia <strong>de</strong>acor<strong>de</strong>s têm mais ambiências harmónicaspara experimentar que as cançõesem que a sucessão <strong>de</strong> harmónicosjá é muito rica.”Isto justifica alg<strong>um</strong>as das opçõesque fez em termos <strong>de</strong> revisão do seucatálogo. Em particular, o crescenteuso da electrónica. “Estou interessadaem explorar o espaço do não acústico,que tem estado muito associadocom <strong>de</strong>terminados géneros, mas quetem mais para dar”.Quer tirar a electrónica dos génerosa que está confinada e usá-la paracriar paisagens mentais inusitadasn<strong>um</strong> universo que <strong>de</strong>ve muito aosFaustos, aos Sérgios e aos Zecas, comoela admite e como é notório poralg<strong>um</strong>as opções vocais no disco.“Quando estou a compor e sinto quehá afinida<strong>de</strong>s no que estou a fazercom o trabalho <strong>de</strong> alguém que meensinou alg<strong>um</strong>a coisa, aí <strong>de</strong>nuncioa homenagem. Pisco o olho ao Fausto,ao Sérgio, admito”.Um ouvido giganteAmélia diz não acreditar “nada nainspiração”, naquela imagem doautor “<strong>de</strong> olhos em alvo e a espreitaras estrelas”. Criar “tem a vercom reor<strong>de</strong>nar o que se ouve, massabendo <strong>de</strong> on<strong>de</strong> é que as coisasvêm”. De qualquer modo, não é “capaz<strong>de</strong> compor à X ou à Y”: “Quandoestou a compor só estou a tentarresolver problemas com os materiaisque tenho.” E para isso precisa<strong>de</strong> ser melómana – e é-o – porqueprecisa <strong>de</strong> conhecer mais, já que“conhecer mais é aguçar a sensibilida<strong>de</strong>”.A sua sensibilida<strong>de</strong>, diga-se, é aguçada,como se tivesse <strong>um</strong> ouvido giganteque <strong>de</strong>turpasse todos os sonsque o mundo produz. Herança <strong>de</strong> infância.“Eu venho <strong>de</strong> <strong>um</strong>a família <strong>de</strong>músicos. O meu pai era <strong>um</strong> barítonoque cantava em corais e compravadiscos <strong>de</strong> todos os géneros”.É daí que tantas contradições permeiema sua obra. Ela tem os adufese a electrónica. A guitarra e a voz <strong>de</strong><strong>um</strong> lado, e polifonias em barda do“As canções são <strong>um</strong>aespécie <strong>de</strong> poeira quevai assentando”Em “Uma Autora, 202Canções” reúnem-secanções originais,revisões por vezesradicais <strong>de</strong> temasantigos e faixas queAmélia havia escritopara fadistasoutro. Po<strong>de</strong> ser assustadora e aomesmo tempo as crianças gostam <strong>de</strong>canções suas, talvez resquícios dainfluência <strong>de</strong> Zeca ou do facto <strong>de</strong> ternascido em Moçambique, on<strong>de</strong> trabalhoua cantar para os miúdos: faziacampanhas <strong>de</strong> educação em quecriava canções como “Quem gostada mosca?” ou temas em que falavados perigos da lombriga. A nossopedido canta-as e é difícil resistir aoapelo imediato das canções – o quemais <strong>um</strong>a vez entra em contradiçãocom o seu lado complexo. Certo éque alguém <strong>de</strong>via obrigá-la a gravarestes temas ou a fazer <strong>um</strong> disco paracrianças.Enquanto isso não acontece e enquantonão sai o disco com músicagrega que há muito quer fazer ou osdois discos que já terminou e não aindanão editou por falta <strong>de</strong> financiamentoé possível que haja <strong>um</strong>a sequela<strong>de</strong>ste disco.“Isto é <strong>um</strong>a i<strong>de</strong>ia em viagem: enquantoeu tiver canções posso continuar,porque há sempre canções quetêm outras canções <strong>de</strong>ntro”.Ípsilon • Sexta-feira 19 Fevereiro 2010 • 33