12.07.2015 Views

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

www.nead.unama.brUniversida<strong>de</strong> da Amazônia<strong>Memorial</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong><strong>Passageiro</strong> <strong>de</strong> Bon<strong>de</strong><strong>de</strong> Ama<strong>de</strong>u AmaralneadNúcleo <strong>de</strong> Educaçãoa Di st â nci aNEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIAAv. Alcindo Cacela, 287 – UmarizalCEP: 66060-902Belém – ParáFones: (91) 4009-3196 /4009-3197www.nead.unama.brE-mail: nead@unama.br1


www.nead.unama.brrejuvenescimento. A vida é <strong>um</strong>a carreira louca em pós <strong>de</strong> automóveis relampejantes.Poucos os agarram. E os que os agarram, apenas aboletados mandam tocar mais<strong>de</strong>pressa para alcançar <strong>um</strong> outro que faiscou ao longe. E toda esta canseira seresolve n<strong>um</strong>a carreira <strong>de</strong>sesperada empós do último carro, aquele que tem douradase negruras.O automóvel é o veículo dos que fogem a si mesmos. Qual a causa <strong>de</strong>ssafebre <strong>de</strong> pressa? Vaida<strong>de</strong> material, exteriorização do centro <strong>de</strong> gravida<strong>de</strong> psíquica.Depois, gosto puro da velocida<strong>de</strong>, pendor infantil reencontrado na ida<strong>de</strong> madura —prazer <strong>de</strong> <strong>um</strong> tropel <strong>de</strong> sensações, dominado pela sensação central e capitosa <strong>de</strong>sermos <strong>um</strong>a vertigem que voa através do <strong>de</strong>lírio das coisas. Tudo maneiras novas<strong>de</strong> embriaguez. O automóvel vem da mesma prateleira que o whisky, o tango e amorfina. Tudo maneiras <strong>de</strong> <strong>um</strong>a pessoa esquivar o olho antipático e fulgurante doseu Eu profundo, o consciente, o rememorador, o censurante, o meditativo, que<strong>de</strong>sperta e fala quando abandonamos o corpo e os sentidos, e os braços<strong>de</strong>scansam, e o animal estatela como <strong>um</strong> mecanismo cuja corda se acabou.O automóvel é o veículo dos que não amam, apenas <strong>de</strong>sfloramlibertinamente a beleza das coisas. — A melhor atenção do viajante, por essasestradas, se concentra na máquina. "Como se porta? Quanto anda? Quantosquilômetros andou? Como funcionam os freios? Bastará a provisão <strong>de</strong> gasolina?On<strong>de</strong> encontrar gasolina aos litros? Olha <strong>um</strong> que lá vem como <strong>um</strong> louco! Vamos a<strong>um</strong>a chispada! Cuidado com essa volta... Diabo, lá se foi <strong>um</strong> pneu!... — Assim,conjugado ao passageiro por todas as fibras da atenção e da vonta<strong>de</strong>, o auto écomo <strong>um</strong> corpo doente que <strong>um</strong>a triste criatura tem <strong>de</strong> conduzir, absorvida nele, porentre esbarros e escorregões. É <strong>um</strong> prolongamento imediato do Eu material, e pois<strong>um</strong> reforço tremendo da múltipla escravidão que amarra a endolorece o espírito. Oi<strong>de</strong>al do filósofo é <strong>de</strong>spojar-se <strong>de</strong> tudo quanto nos limita e nos pesa: o i<strong>de</strong>al com<strong>um</strong>é encarapitar novas cargas e novos prolongamentos, novas estruturas postiças àpersonalida<strong>de</strong> natural.Os homens na verda<strong>de</strong> amam todo gênero <strong>de</strong> escravidão, contanto que lheponham <strong>um</strong> nome aprazível. Dirigir <strong>um</strong> automóvel é "dirigir" alg<strong>um</strong>a coisa. (Veja-se atradicional imponência dos indivíduos atrelados a <strong>um</strong>a boléia). Chamam a issodominar a matéria cega e a força bruta. Dominar a matéria e a força, quem o faz é oinventor que labuta no gabinete e no laboratório. Os outros apenas reproduzem ahistória do mágico aprendiz. — Chamam a isso fazer esporte, cooperar na obra <strong>de</strong>não sei que vago progresso. E com estas idéias se alegram. Fáceis <strong>de</strong> contentar, oshomens. É pena que os forçados das galés antigas não tenham tido a consolação <strong>de</strong>alg<strong>um</strong> pensamento nesse estilo, quando se dobravam e <strong>de</strong>sdobravam amarrados àmecânica extenuante do remo!Sim, automobilistas há que têm tempo para ver; que colecionam sensações;que trazem braçadas <strong>de</strong> impressões da natureza, dos povoados, das caras e dasalmas entrevistas. Impressões talvez nítidas, mas fragmentárias e superficiais, comofotografias. A objetivida<strong>de</strong> chata e unilateral do instantâneo. Nada das penetrações,das tatilida<strong>de</strong>s envolventes, das sondagens reveladoras, das adivinhaçõesenlevadas, das apreensões íntimas, concretas, totalizantes, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a alma em lentocontato, em luta e em núpcias com a virginda<strong>de</strong> fugitiva do real. A imparcialida<strong>de</strong>química, a mentirosa, a estúpida imparcialida<strong>de</strong> da fotografia.Enquanto que o bon<strong>de</strong>... Ah! O bon<strong>de</strong> é outra história. Nem tão vagaroso quedê sono, nem tão veloz que dê vertigem, tem a suprema vantagem <strong>de</strong> ser seguro erepousante. "Repousante" quer dizer que nos <strong>de</strong>ixa o <strong>de</strong>scanso necessário paracontinuarmos em lida e em briga conosco mesmos. Quer dizer que no bon<strong>de</strong> não4


www.nead.unama.brintervém a força centrífuga que nos estraçalha e nos projeta contra as coisasambientes, na alucinação das corridas elásticas e esfuziantes. Em vez <strong>de</strong> domar apulso <strong>um</strong>as engenhocas pomposas e traiçoeiras, acho mais razoável e maisagradável <strong>de</strong>gustar as aquisições já provadas e certas do gênio inventivo, das quaisnos po<strong>de</strong>mos servir sem lhes dar maior atenção. E que formidáveis aquisições, jádocemente incorporadas aos nossos modos <strong>de</strong> ser! Por exemplo, este meu Faber n. 02, macio, leve e corrente como <strong>um</strong>a agulha sensibilíssima adaptada a <strong>um</strong> aparelhopsicográfico; este papel em que escrevo, liso e lúcido como porcelana, claro como acordialida<strong>de</strong>, alvo como a inocência, receptivo como <strong>um</strong> espelho; este h<strong>um</strong>il<strong>de</strong> capote<strong>de</strong> lã que molemente me escorrega dos ombros à medida que trabalho, brando como<strong>um</strong> carinho piedoso que discretamente se retira; este meu relógio paciente eincansável, que há seis anos tiquetaqueia todos os minutos da minha vida, jáembaciado, já com os relevos do tempo meio <strong>de</strong>lidos, já com <strong>um</strong> ponteiro meio torto,já com o vidro meio opaco, mas con moto <strong>de</strong>ntro firme e obstinado no seu trabalho,sempre a contar lá consigo, na sua vizinha martelada e tilintante, a medida perpétua<strong>de</strong> todas as monotonias essenciais <strong>de</strong>ste mundo t<strong>um</strong>ultuoso.O bon<strong>de</strong> permite que eu me concentre em mim mesmo. Não vale issogran<strong>de</strong> coisa, mas sempre é <strong>um</strong> meio <strong>de</strong> eu me sentir viver enquanto vivo. O quenão é possível no automóvel à solta, on<strong>de</strong> a nossa alma se vai espadanando peloscaminhos como a água <strong>de</strong> <strong>um</strong>a vasilha sacolejada.O bon<strong>de</strong> permite-me ver <strong>de</strong> perto, viver o bicho-homem na substancialrealida<strong>de</strong> dos seus gestos inadvertidos. E esse bichinho (verme da terra, lá diz oEvangelho) é afinal só o que há <strong>de</strong> interessante no mundo.As próprias estrelas são <strong>um</strong>a poeira estúpida, na sua mu<strong>de</strong>z mortal e na suamecânica fria. De on<strong>de</strong> lhes vem a magnitu<strong>de</strong> e a beleza? Da pequenez e da miséria<strong>de</strong>sse bichinho que pensa e que imagina, entre as minhocas e os sapos. A suapequenez e a miséria o fazem visionário <strong>de</strong> esplendores.Deliciae meae esse c<strong>um</strong> filiis homin<strong>um</strong>.O bon<strong>de</strong> é <strong>um</strong>a galeria inesgotável <strong>de</strong> exemplares <strong>de</strong>sse verme sempreigual e sempre vário; <strong>um</strong>a exposição permanente, renovada a cada instante, <strong>de</strong>tipos, <strong>de</strong> esboços, <strong>de</strong> caricaturas, rica e múltipla como a vida, sugestiva como <strong>de</strong>veser a antecâmara do Purgatório. Se as almas soassem, o bon<strong>de</strong> seria como <strong>um</strong>po<strong>de</strong>roso jazz-band sobre rodas em que os uivos, os berros, os soluços, ascasquinadas interiores se <strong>de</strong>spenhariam em cataratas <strong>de</strong> dissonâncias — semper<strong>de</strong>r o fio às gran<strong>de</strong>s linhas monótonas da composição."Ah! O bon<strong>de</strong>, sim..."Depois <strong>de</strong> me dar esta resposta, achei que era <strong>um</strong> pouco longa <strong>de</strong>mais paraexplicar <strong>um</strong>a resolução tomada em dois segundos. Mas não sei fazê-lo por outromodo. Sei apenas que é assim, ordinariamente, com todas as nossas resoluções.Elas pressupõem longos trabalhos <strong>de</strong> raciocínio e reflexão; na verda<strong>de</strong>, essestrabalhos vêm <strong>de</strong>pois, e só servem, quando muito, para as seguintes edições domesmo ato.No cabo <strong>de</strong> tudo, se eu ainda dispusesse <strong>de</strong> dinheiro sobrante, compraria<strong>um</strong> automóvel, ou <strong>um</strong>a <strong>de</strong>ssas máquinas que mais se assemelham automóvel.UM SONETOSaí, hoje, <strong>de</strong> casa maquinando <strong>um</strong> soneto. Não foi culpa minha, mas obra doacaso. Lendo <strong>um</strong> jornal, <strong>de</strong>para-se-me, perdido no entrecho <strong>de</strong> <strong>um</strong>a notíciaordinária, em que se narrava a prisão <strong>de</strong> <strong>um</strong>a negrinha gatuna, este retalho <strong>de</strong> frase:5


www.nead.unama.br"Toda a ilusão da triste Gabriela..." — Magia do número! Não foi sem razão, ósombra venerável <strong>de</strong> Pitágoras! Que a pressentiste por tudo nas esferas como nasalmas. Repeti duas, três, <strong>de</strong>z vezes esse pedaço <strong>de</strong> frase vulgar, que é <strong>um</strong> versointeiro e excitante. Gabriela alvejou-se-me e transfigurou-se-me logo na remotaimagem <strong>de</strong> <strong>um</strong>a linda pessoa que <strong>de</strong> repente se vira nua <strong>de</strong> toda ilusão, nua comolady Godiva montada n<strong>um</strong> asno, em meio da praça. Comecei a compor... Não,começou a compor-se em mim <strong>um</strong> soneto:Já não tens ilusão, ó Gabriela!Nega-ta o amor, essa comédia triste.Nega-ta a vida. E em tudo quanto existe,O espinho do real se te revela.Subi para o bon<strong>de</strong> a escandir mentalmente esses <strong>de</strong>cassílabos, que paraser sincero comigo mesmo, não me pareceram maravilhosos. Mas alentava-me aesperança <strong>de</strong> que pu<strong>de</strong>ssem ir melhorando do meio para o fim do soneto. — O queme apepinava <strong>um</strong> bocado era que as rimas aproveitáveis não se <strong>de</strong>ixavam pegarcomo frangos <strong>de</strong> pés amarrados. A memória, afeita a servir-me os torresmos dovocabulário trivial, só me <strong>de</strong>parava coisas como fivela, moela, espinhela, chiste,alpiste, que não se coadunavam à pura nobreza da inspiração. Encolhi-me, cerrei aspálpebras e atirei-me à caça <strong>de</strong> boas rimas, exercício muito útil, para refrescar asidéias e especialmente indicado como passatempo higiênico e divertido parahomens atarefados, nas horas vagas.Ia engolfado nesse labor — Cellini do verso! — quando senti que uns <strong>de</strong>dosme bicavam no ombro. Voltei-me, era o meu amigo Fabiano Alves, prático <strong>de</strong> farmáciameu vizinho. Bom homem, mas confiado, e ainda com a particularida<strong>de</strong> esquisita <strong>de</strong>se achar sempre n<strong>um</strong>a temperatura espiritual completamente diversa da minha.— "Está calculando?" indagou.Tive ganas <strong>de</strong> lhe perguntar que conta lhe fazia que eu estivesse calculandoou voando muito acima do lodaçal do mundo, on<strong>de</strong> patejam os boticários sem alma.— "Vem tão concentrado, mexendo com os lábios."— "Cá <strong>um</strong>as coisas."Fabiano entrou imediatamente a explicar que era tapadíssimo em questões <strong>de</strong>cálculo. Decididamente, não dava para essa especialida<strong>de</strong>. De <strong>um</strong>a feita,propuseram-lhe <strong>um</strong> problema, no clube <strong>de</strong> Periquitos, sua terra natal: "Um pássaro fazsete voltas em redor <strong>de</strong> <strong>um</strong>a torre <strong>de</strong> cantaria em quarenta segundos; quantas torresserão precisas para que sete pássaros façam <strong>um</strong>a volta..." Mais ou menos isso. Coisaà-toa, simples aplicação da regra <strong>de</strong> três; po<strong>de</strong>ndo-se também resolver rapidamentepor análise. Pois levou mais <strong>de</strong> meia hora para dar com a solução! Uma vergonha.— "Ainda assim, você é <strong>um</strong> bicho, Fabiano."— "Não; em Matemática, serei bicho, mas <strong>de</strong> má qualida<strong>de</strong>: <strong>um</strong> burrego. Detodas as ciências, a que dá com o meu feitio é esta" (e batia com a larga e magramão sobre a capa <strong>de</strong> <strong>um</strong> livro <strong>de</strong> espiritismo) "é esta, a filosofia."E Fabiano falou copiosamente sobre a doutrina espírita, "a mais consoladora<strong>de</strong> todas", e em particular sobre a moral, "sem discussão possível, a mais perfeita."6


www.nead.unama.br— "Fabiano" (lhe disse eu, apenas por dizer alg<strong>um</strong>a coisa), "você conhece amoral <strong>de</strong> Sócrates?Ele sorriu:— "Esse, justamente, freqüenta o meu círculo. Um espírito evoluído.Adiantado!"E dizendo "adiantado", Fabiano esticou os beiços para <strong>um</strong> assobio, que<strong>de</strong>ixou subentendido. Mas eu, intrigado, questionei:— "Como é isso, ó Fabiano? Então Sócrates freqüenta..."Ele sorriu com bonomia, explicando:— "Manifesta-se, compreen<strong>de</strong>? Está <strong>de</strong>sencarnado há muitos anos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><strong>um</strong> <strong>de</strong>sastre que houve aqui na Central. Saiu com as pernas esmigalhadas. Nessemesmo dia visitou uns nossos irmãos, no Pará; por sinal que fez o pobre do aparelhogritar com dores nas pernas!"Fabiano discorria, discorria. A certeza da verda<strong>de</strong> dava-lhe <strong>um</strong> ar <strong>de</strong>beatitu<strong>de</strong>. "Ele já parecia respirar o eterno, planava além <strong>de</strong> todas as coisasperecedouras, que vão da molécula às estrelas. Este prático <strong>de</strong> farmácia, queacabava <strong>de</strong> largar o almofariz para ir comprar <strong>um</strong>a porção <strong>de</strong> calomelanos àdrogaria, achava-se absolutamente integrado nos planos perpétuos da vida e domovimento universal. E o curioso é que se consolava com isto.Ia sorrindo, no bon<strong>de</strong>, como sorriria <strong>um</strong> arcanjo na sua bica <strong>de</strong> chamas,através do infinito, assistindo ao florir e ao <strong>de</strong>spertar das constelações pelosabismos sem fundo. Ou como <strong>um</strong>a criança contemplando <strong>um</strong> queimar <strong>de</strong> rodinhas etraques.Com isto, <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong> fazer o meu soneto. Quando pretendi reinvocar ainspiração, ela havia batido as asas. Um acaso ma trouxera, <strong>um</strong> outro ma levou.Assim acontece com tantas coisas belas e boas da alma! Nascem e morrempor aí na sombra e na br<strong>um</strong>a da vida larvada. Nascem por acaso, por acaso morrem.E nós caminhamos sobre as flores mortas dos nossos jardins interiores, como <strong>um</strong>cordão <strong>de</strong> porcos-do-mato sobre <strong>um</strong>a camada <strong>de</strong> pétalas, na época da in<strong>um</strong>erávelflorescência dos manacás. Mas entre a preta Gabriela e o boticário Fabiano, minhaalma teve <strong>um</strong> momento <strong>de</strong> ventura inocente, embalada no berço dos ritmos e dostimbres. E, se não chegou a perpetrar nada, tanto melhor.O melhor da poesia e <strong>de</strong> tudo quanto se lhe parece é a elaboração, o estado<strong>de</strong> graça, a embriaguez esporeante, a doce liberda<strong>de</strong> interior em que vive quem aelabora ou r<strong>um</strong>ina. Talvez que o mais alto poeta seja <strong>um</strong> simples r<strong>um</strong>inante mudo <strong>de</strong>formas, O mais, vaida<strong>de</strong> e pretexto. Bendita a Gabriela, e bendito o Fabiano.RUFINA— "Entre, Rufina."Quando eu voltava, hoje, para casa, lendo <strong>um</strong>a folha da tar<strong>de</strong>, ouvi soaressa frase n<strong>um</strong> dos bancos dianteiros. Instintivamente, olhei: Quem a proferira fora<strong>um</strong> senhor idoso, com <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> cara bonacheirona e sonsa, dirigindo-se a <strong>um</strong>a7


www.nead.unama.brrapariga que, não sei por que motivo, parecia hesitar sobre o estribo, como <strong>um</strong>abaratinha machucada.O bon<strong>de</strong> estava parado. Quando o homem acabava <strong>de</strong> falar, o carrosubitamente arrancou, e a moça ia per<strong>de</strong>ndo o equilíbrio, soltando <strong>um</strong> <strong>de</strong>ssesguinchos <strong>de</strong> boneca rapidamente apertada na barriguinha. Dei <strong>um</strong> salto, voei, equando caí em mim estava agarrando a jovem por <strong>um</strong> dos braços com a energia <strong>de</strong><strong>um</strong> guindaste, enquanto os passageiros se levantavam à <strong>um</strong>a, como se o bon<strong>de</strong>fosse peneira <strong>de</strong> sururucar em movimento, e eles quisera.Larguei logo a presa, que, cabisbaixa e ruborizada, foi para perto do senhoridoso. Como este me fizera <strong>um</strong>a cortesia, agra<strong>de</strong>cendo a intervenção, aproveitei-meda oportunida<strong>de</strong> para pedir <strong>de</strong>sculpas à menina, ainda arrufada do inci<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong> ater agarrado <strong>um</strong> pouco à bruta, no receio <strong>de</strong> a ver sofrer <strong>um</strong>a queda. Ela riu-se, com<strong>um</strong>a pontinha <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdém.— "Queda? Ah! Disso não havia perigo. Tomo o bon<strong>de</strong> em movimento acada passinho!"Curvei a cabeça com dignida<strong>de</strong>, como quem <strong>de</strong>liberadamente interrompe<strong>um</strong>a situação <strong>de</strong>licada; recostei-me, e recomecei a leitura da minha gazeta. Tenteirecomeçar. Mas não podia dar com o seguimento do artigo em que vieramergulhado. As seções tinham feito <strong>um</strong> chassê-croasê completo. Trechos vistosos,que antes me saltavam aos olhos, agora andavam brincando <strong>de</strong> Maria-condê pelasoito páginas do diário. Cheguei a <strong>de</strong>sconfiar que alg<strong>um</strong>a página se houvesseevaporado. E, na correnteza das minhas emoções embrulhadas, a consciênciaapenas tinha força para me sussurrar:"Toma, burro! Bem feito. Por que é que te meteste? Por que é que não a<strong>de</strong>ixaste periclitar à vonta<strong>de</strong>?"Já então, o gesto da moça, que fora quase imperceptivelmente abespinhado— também, com aquele susto — me reaparecia, em imagem, todo a ar<strong>de</strong>r em puramá criação. Cheguei a sentir por ela <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> ódio. (Digo espécie <strong>de</strong> ódio,porque teria remorso, caso julgasse o meu coração à ligeira, capaz <strong>de</strong> tão grosseirosentimento. O amor da justiça é inato nas almas; todos temos infinitos escrúpulosem sentenciar contra nós mesmos.)Como quer que seja, no aceso da raiva, afastei <strong>um</strong> pouco o meu paravento,isto é, o meu jornal, e dar<strong>de</strong>jei contra a rapariga <strong>um</strong>a torva olha<strong>de</strong>la <strong>de</strong> esguelha. Elaestava agora voltada para mim, <strong>de</strong> <strong>um</strong> modo repassado e calmante, olhando-mecom esse ar <strong>de</strong> complacência <strong>de</strong>sinteressada com que se contempla <strong>um</strong> animal <strong>de</strong>jardim zoológico. Dei imediatamente à minha olhadura envenenada o ar mais neutroe casual que foi possível. Sorri. Ela sorriu. Aquilo foi como se <strong>um</strong> céu borrascoso <strong>de</strong>repente clareasse, todo florido <strong>de</strong> nuvenzinhas recém-nascidas, castas como roupalavada ao sol. Sorri, mais docemente. Ela baixou as pálpebras pestanudas e <strong>de</strong><strong>um</strong>eia volta ao rosto moreno e rosado sobre cuja superfície; dura e lisa como a <strong>de</strong><strong>um</strong>a figura <strong>de</strong> biscuít, o f<strong>um</strong>o <strong>de</strong> <strong>um</strong> cigarro vizinho punha a in<strong>de</strong>cisão aérea <strong>de</strong> <strong>um</strong>tenuíssimo nevoeiro. E ainda sorria; e pu<strong>de</strong> perceber que por entre a franja dos cíliosa sua íris <strong>um</strong>idamente faiscava, enviesada para o meu lado, embutida n<strong>um</strong>a sedosapen<strong>um</strong>bra. E os cílios palpitavam..........................................................................ainsiqu'un noir feuillage où filtre un long rayon d'étoile.8


www.nead.unama.brNisto, o velho bezerrão fez sinal ao condutor e, na sua voz plácida: "Vamos,Rufina; mas não caia!" A moça riu-se <strong>de</strong> boa vonta<strong>de</strong>, como <strong>um</strong> lindo mo<strong>de</strong>lo paraanúncio <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntifrício; fez-me <strong>um</strong> c<strong>um</strong>primento <strong>de</strong> cabeça, largo e cordial, e saltou,acompanhada pelo velhote.Vieram-me ímpetos <strong>de</strong> saltar igualmente, mas uns temores me agarraram aobanco, pelos fundilhos, como cola. Não me acharia ela ridículo. Não daria o meu atona vista dos passageiros? Refleti que este receio era estúpido. Eu tinha o sagradodireito <strong>de</strong> saltar on<strong>de</strong> quisesse. Demais, como é que se podia <strong>de</strong>centemente receber<strong>um</strong> sorriso <strong>de</strong> mulher bonita, sem a seguir, ainda que a custo <strong>de</strong> alg<strong>um</strong> risco?Ia eu refletindo, quando olhei para trás: Rufina tinha <strong>de</strong>saparecido. Bolas!Encolhi-me, n<strong>um</strong> acabrunhado <strong>de</strong>sprezo <strong>de</strong> mim mesmo, e <strong>de</strong>ixei o bon<strong>de</strong> rodar.Quando <strong>de</strong>i acordo <strong>de</strong> mim, era o único passageiro restante e estava no fim da linha.Só, só na solidão do carro vazio. Só e triste como a fruta murcha que ficou no fundodo cesto. A voz do condutor português rolava, irônica, conclusiva, ret<strong>um</strong>bando-mena alma como a voz do pai <strong>de</strong> Hamlet nos subterrâneos <strong>de</strong> Elsenor:Pooonto finale!!!O PESCADOR E O SILÊNCIO"Com que então, Barbosa, você é pescador?"Esta simples frase, dita n<strong>um</strong>a voz branca, <strong>de</strong> <strong>um</strong> jeito quase distraído, me iahoje ren<strong>de</strong>ndo <strong>um</strong>a quebra <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>.Fre<strong>de</strong>rico Paulo Barbosa Ramires é o homem mais calmo, sisudo e direitoque jamais conheci. O senso com<strong>um</strong> encarnou-se nele como a seiva se infun<strong>de</strong> e sesolidifica n<strong>um</strong>a cabiúna. Dir-se-ia que a própria arquitetura <strong>de</strong> Barbosa fora armadacom aquele material primário: os ossos robustos, as carnes duras, o corpanzilmaciço, a fisionomia <strong>de</strong>nsa <strong>de</strong> hoplita membrudo. Familiarizamo-nos há muito. Enunca <strong>de</strong>scobri no meu amigo <strong>um</strong>a trinca, <strong>um</strong> recanto <strong>de</strong>sleixado, <strong>um</strong>a <strong>de</strong>pendênciain<strong>de</strong>cisa e frouxa.Vendo-o, hoje, no bon<strong>de</strong>, <strong>de</strong> caniço em punho, tive <strong>um</strong>a pequena surpresa,olhei para ele fiz-lhe aquela pergunta inócua. Parece que lhe toquei n<strong>um</strong> pontodolorido. Não se <strong>de</strong>sconcertou, nem se irritou propriamente, mas respon<strong>de</strong>u-me com<strong>um</strong> nadinha <strong>de</strong> impertinência:— "É verda<strong>de</strong>; pescador. Todos têm a sua mania, a minha é esta. Não fazmal a ninguém— senão aos peixes. É higiênica, tem a sua dose <strong>de</strong> poesia..."— "Bem, Barbosa, pesque, pesque, isso não precisa <strong>de</strong> justificação."— "Mas, se eu quiser justificar?"Fez então o elogio da pesca <strong>de</strong> vara. Uma pessoa fica à beira da água coma cana em punho, lança o anzol, e espera. Não há nisso nenh<strong>um</strong> <strong>de</strong>sbarato <strong>de</strong>energias físicas nem morais. Por outro lado, não há tampouco a mínima astúcia nema mínima violência. Fica à espera. Não corre atrás do peixe, não vai agarrá-lo. Nemo enxerga sequer. É como quem tira a sorte. O rio traz o peixe, o peixe vê a isca,engole-a, engasga-se. Então, o pescador sente na ponta da vara <strong>um</strong>estremecimento característico, dá-lhe <strong>um</strong> meneio, e puxa.— "Como vê" (prosseguiu) "a intervenção do pescador é em tudosemelhante à do acaso, ou dos aci<strong>de</strong>ntes cegos que semeiam o curso dos rios e <strong>de</strong>todas as coisas. Ele espera, enten<strong>de</strong>u? Ali, parado. Não vê o peixe, não sabe se o9


www.nead.unama.brpeixe virá, nem <strong>de</strong> que espécie há <strong>de</strong> ser caso venha; não sabe nada. Espera. É <strong>de</strong><strong>um</strong>a imparcialida<strong>de</strong> absoluta."— "Em todo caso atalhei, sabe que o rio é piscoso. E a imparcialida<strong>de</strong>, aí,quer dizer simplesmente que qualquer <strong>um</strong> serve."— "Sim. Mas o peixe, se não pegasse no anzol, seria imortal? Não teria <strong>de</strong>morrer logo adiante?"— "Dizem que eles têm o sestro <strong>de</strong> viver muito; até duzentos anos,conforme.,'— "E você acredita isso? Quem é que contou os aniversários do peixe? E<strong>de</strong>pois, olhe aqui, e <strong>de</strong>pois que vem a ser <strong>um</strong> século ou dois diante da imensida<strong>de</strong>do tempo."— "Alto lá, nós não vivemos a imensida<strong>de</strong> do tempo, Barbosa. Com esseartifício metafísico, se tem justificado muita pose <strong>de</strong> espíritos in<strong>um</strong>anos e muitamonstruosida<strong>de</strong> material. Nós vivemos <strong>um</strong> minuto! Esse minuto é que <strong>de</strong>ve ser anossa medida. Tudo que o exce<strong>de</strong> é imensurável. E, sendo imensurável, é sagrado."— "Ahn..."— "Mas, falando sério, você não precisa ter esse trabalho <strong>de</strong> justificar o seugosto. Nada <strong>de</strong> repreensível na pesca, nem mesmo na caça. É lei do mundo que asespécies <strong>um</strong>as às outras se exterminem, por necessida<strong>de</strong>, por esporte, por prazer,por passar o tempo, é lei do homem que combata as outras espécies todas e aprópria. Que lhe havemos <strong>de</strong> fazer? Observo-lhe, simplesmente, que a sua filosofiapiscatória po<strong>de</strong>ria justificar também <strong>um</strong>a larga parte da moral corrente nas relaçõesh<strong>um</strong>anas. Lança-se o anzol, fica-se à espera. Conheci <strong>um</strong> mercador que, fisgando ealeijando o freguês, não se <strong>de</strong>sculpava por outra forma: Veio porque quis! Nãoobrigo ninguém a comprar."— "Mas está muito direito" (replicou Barbosa). "Ele tinha razão. Eu, dono <strong>de</strong><strong>um</strong> negócio, daria o preço que bem enten<strong>de</strong>sse às minhas coisas."— "Você não o faria, Barbosa."— "Faria, sim, e você também."— "Pois, se eu o fizesse, seria <strong>um</strong> espertalhão como qualquer outro."Barbosa amuou, resmungou, e creio que só a sua sensatez e bonomia <strong>de</strong>animal forte, o impediu <strong>de</strong> levar adiante a contenda. Separamo-nos sem nosencarar. Fiquei penalizado com esse primeiro fio partido na teia <strong>de</strong> seda quevínhamos tecendo há tantos anos. Por <strong>um</strong> fio roto vai-se às vezes o tecido inteiro.Todo o mal está em se falar <strong>de</strong>mais.O que vale <strong>de</strong>veras, <strong>de</strong>veras, nos indivíduos, não são as idéias, que mudam,que ondulam, que o menor sopro <strong>de</strong> interesse ou paixão modifica, é o fundoin<strong>de</strong>finível <strong>de</strong> bonda<strong>de</strong> que neles exista. E esse fundo mesmo, e preciso que não sepretenda apurar com fúrias <strong>de</strong> análise! Não é senão <strong>um</strong> pouco menos mudável eincerto, neste perpétuo <strong>de</strong>venir em que tudo o que vive se res<strong>um</strong>e n<strong>um</strong> equilíbriomomentâneo e precário <strong>de</strong> elementos errantes e fluidos.Devemos crer nesse fundo, sem o examinar com insistente rigor. A nossaboa vonta<strong>de</strong> o faz crescer. Acreditar que ele existe é corroborar-lhe a existência. Anossa fé transfun<strong>de</strong>-se no íntimo dos outros como <strong>um</strong>a levedura vivaz. E assim cada<strong>um</strong> <strong>de</strong> nós é <strong>um</strong> pouco criador; criador das mais doces coisas do mundo.Os homens <strong>de</strong> bem são geralmente melhores do que a sua própria lógicafaria supor. Há indivíduos excelentes que falam como cínicos ou malvados.A palavra não foi dada a todos os homens para encobrir os seuspensamentos: foi dada à maior parte para encobrir a falta <strong>de</strong> pensamento. Felizes os10


www.nead.unama.brque ainda têm pensamentos que encobrir! A maioria pensa à medida que fala. Anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> falar é que a obriga a pensar <strong>um</strong> pouco. E há pior: a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>falar a obriga por vezes a dizer coisas que nunca teria pensado.Era preciso falar muito menos. O silêncio seria a nossa melhor cura. E seriafreqüentemente a melhor das satisfações que pudéssemos dar <strong>de</strong> nós, em nossairremediável enfermida<strong>de</strong>.No silêncio germinam as forças heróicas. No silêncio con<strong>de</strong>nsam-se as forçasinvencíveis. O silêncio é a túnica invisível e pesada das almas inquebrantáveis,s<strong>um</strong>idas na profundida<strong>de</strong> triste da sua clarividência e da sua pieda<strong>de</strong>.Silence and Secrecy! — palavra <strong>de</strong> Carlyle que <strong>de</strong>via ser a divisa das almasreligiosas, isto é, das almas h<strong>um</strong>anas.Os amigos <strong>de</strong>viam estar juntos apenas para se sentirem viver <strong>um</strong> ao outro,mantendo entre si esses largos silêncios falantes que são o que há <strong>de</strong> mais expressivona linguagem do amor. A linguagem do amor é <strong>um</strong>a brosladura vã <strong>de</strong> palavras sobre<strong>um</strong> fundo uniforme <strong>de</strong> sentimento. Para que sobrecarregar a brosladura? Para quearriscar <strong>de</strong>senhos supérfluos que po<strong>de</strong>m comprometer irremediavelmente o tecido? Alinguagem apropriada seria musical, a meia voz, lenta como <strong>um</strong> cantus planusenvolvido pela melancolia suave que banha as felicida<strong>de</strong>s efêmeras.O mundo com todas as suas complicações miseráveis e a nossapersonalida<strong>de</strong> mundana e aparente, com todas as suas pretensões, e imbecilida<strong>de</strong>s,mistificações e parlapatices, <strong>de</strong>veriam <strong>de</strong>saparecer, como f<strong>um</strong>o varrido por <strong>um</strong> ventopuro e purificador, diante do milagre <strong>de</strong> duas almas que <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> se querem,—milagre! Coisa incompreensível e estupefaciente, nesta raça <strong>de</strong> macacos famélicos eobscenos. E seria como se cada <strong>um</strong>a dissesse para a outra, sem dizer nada: "Eismeaqui. Tal como sou, eis-me aqui: <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong> lodo com duas asas. Amemo-nos,pelas nossas asas. Mas em silêncio, chut! Em si-lên-ci-o... Basta o sopro <strong>de</strong> <strong>um</strong>apalavra vã para que essas asas se rompam como teias <strong>de</strong> aranha!Etre méconnu memê par ceux qu'on aime, é est la coupe d'amert<strong>um</strong>e et lacroíx <strong>de</strong> la vie... escreveu Amiel com o seu sangue.Dentro do silêncio, a compreensão mútua, <strong>de</strong>spindo os incômodos véus dapalavra exterior e dos conceitos ordinários, e mesmo da palavra interior, po<strong>de</strong>riaass<strong>um</strong>ir a forma serena <strong>de</strong> <strong>um</strong>a il<strong>um</strong>inação. De <strong>um</strong>a clarida<strong>de</strong> difusa e divina. Paraalém da lógica tardígrada das magras aparências, das reflexões esterilizantes.—Po<strong>de</strong>ria. Mas!...O HOMEM QUE FUMAVou <strong>de</strong>ixar o hábito <strong>de</strong> ler no bon<strong>de</strong>, hábito estúpido. Ver o homem viver émais interessante do que ler as histórias do que ele faz e pensa, (ou pensa quepensa.) É certo que no bon<strong>de</strong>, geralmente, salvo n<strong>um</strong>erosas exceções, vai quieto esor<strong>um</strong>bático. Mas on<strong>de</strong> quer que esteja, e como quer que esteja respirah<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>. E os seus gestos e momos mais fugitivos são <strong>de</strong>buxos <strong>de</strong>scosidos dogran<strong>de</strong> jogo <strong>de</strong> cena que faz a dramaticida<strong>de</strong> da história."Todo ser h<strong>um</strong>ano é para mim <strong>um</strong> templo, e eu gostaria mais <strong>de</strong> distinguir ostraços originais, as leves pinceladas que aí se encontram, do que <strong>de</strong> ver o famosoquadro da Transfiguração <strong>de</strong> Rafael." Esta opinião <strong>de</strong> Sterne em sua ViagemSentimental, é justamente a minha. Honra a Sterne. — Só divirjo <strong>de</strong>le em que nãogosto apenas dos traços originais, mas <strong>de</strong> todos. Aliás, no fundo, cada homem ésempre <strong>um</strong>a síntese original, <strong>um</strong> composto único, <strong>um</strong> exemplar sem parelha. Anossa visão grosseira ou a nossa necessida<strong>de</strong> e se<strong>de</strong> <strong>de</strong> catalogação é que nos11


www.nead.unama.brobriga a converter as semelhanças em i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e as analogias em semelhanças,a criar espécies e gêneros para ver o indivíduo, única realida<strong>de</strong> tangível, único<strong>de</strong>pósito real <strong>de</strong> h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong> vivente e vibrante.Viajei ao lado <strong>de</strong> <strong>um</strong> homem que, pela casca, <strong>de</strong>via ser negociante <strong>de</strong> secose molhados. Era, <strong>de</strong> fato. Cheirava a suor, tinha os <strong>de</strong>dos grossos e encardidos,trazia <strong>um</strong> casaco <strong>de</strong> casimira cinzenta semeado <strong>de</strong> respingos, coscorões e tintas <strong>de</strong>varias cores. Contudo, carregava relógio com <strong>um</strong>a grossa ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> ouro, guardavana pupila a chispa da in<strong>de</strong>pendência e, enfim, tinha esse ar <strong>de</strong> cavaleirogarbosamente escarranchado em cavalgadura mansa, tão próprio dos homensclassificados e prósperos.Mascava <strong>um</strong> toco <strong>de</strong> charuto, soltando baforadas na cara dos vizinhos, entreos quais havia senhoras <strong>de</strong> várias ida<strong>de</strong>s, formatos e cores. Não lhe ocorria sequera idéia <strong>de</strong> que pu<strong>de</strong>sse incomodar. Isso me irritou, e figurei-me logo esse mesmohomem, em mangas <strong>de</strong> camisa, por trás do balcão a <strong>de</strong>sfazer-se em mesuras comos habitues do parati e em gatimonhas gentis com as cozinheiras.Portanto, <strong>um</strong> abjeto ganhador <strong>de</strong> níqueis? Um tipo que se fazcalculadamente macio e untuoso quando lhe convém, altaneiro e maroto quandonão <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>? Não será bem isso. Para ele, ser paciente e obsequioso com afreguesia é <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>. Disto se ufana. Ensina essa virtu<strong>de</strong> ao caixeirinho,ensina-a aos filhos, e está candidamente plantado na convicção <strong>de</strong> que o Bem é<strong>um</strong>a coisa que logo se reflete na gaveta.No bon<strong>de</strong>, o Sr. Joaquim já não é <strong>um</strong> negociante, é <strong>um</strong> passageiro. Aí, jánão sente os limites que <strong>de</strong> ordinário lhe circunscrevem a personalida<strong>de</strong>, pungindolhea carne; dá liberda<strong>de</strong> ao corpo; reveste, como <strong>um</strong>a roupa larga, os gestos emodos comuns do passageiro.A este não lhe inc<strong>um</strong>bem senão três coisas: pagar a passagem, não f<strong>um</strong>arnos três primeiros bancos, e só ocupar o lugar <strong>de</strong> <strong>um</strong>a pessoa — o que não é difícil,a menos que tenha <strong>um</strong> vol<strong>um</strong>e incapaz <strong>de</strong> redução à unida<strong>de</strong>, na aritmética dosbon<strong>de</strong>s. De resto, todos iguais perante o condutor e o motorneiro. Todos po<strong>de</strong>m, serbrutos, <strong>de</strong>ntro das regras, bastante amplas, que presi<strong>de</strong>m a vaga polícia dos carros.— O Sr. Joaquim está igualmente compenetrado <strong>de</strong>ste princípio, que da mesmaforma já se lhe incorporou à maquinalida<strong>de</strong> dos reflexos.Ora, quem estiver isento <strong>de</strong> culpa, esse lhe atire a primeira pedra! Todos,nesta vida, cada <strong>um</strong> a seu modo, não fazem senão aquilo que faz o Sr. Joaquim.Todos, no fundo, ven<strong>de</strong>iros amabilíssimos com a freguesia, e passageiros quef<strong>um</strong>am nos bon<strong>de</strong>s da vida muito à sua vonta<strong>de</strong>.On<strong>de</strong> estão a originalida<strong>de</strong> do Sr. Joaquim? Eis o que não pu<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir,mas tenho a certeza <strong>de</strong> que lá está, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le, como <strong>um</strong>a pérola no ventre <strong>de</strong> <strong>um</strong>galo. Questão <strong>de</strong> tempo e <strong>de</strong> paciência. — Há criaturas difíceis <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifrar. Sãoenigmas que a Vida compõe para os propor a Deus, o gran<strong>de</strong> matador <strong>de</strong> todas ascharadas.RUFINAEsquisita vaga <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>! Ontem, anteontem, nada vi no bon<strong>de</strong>: nada visenão Rufina, a moça que salvei <strong>de</strong> <strong>um</strong> <strong>de</strong>sastre iminente.A princípio, entrei a duvidar se ficara preso ao feitiço da sua pessoa, quetinia <strong>de</strong> vida e mocida<strong>de</strong>, se lhe guardara afeição apenas pelo fato <strong>de</strong> a tersocorrido. — Há no fundo <strong>de</strong> nossa alma <strong>um</strong> veiozinho <strong>de</strong> sentimento que fica12


www.nead.unama.bragra<strong>de</strong>cido aos que nos <strong>de</strong>vem serviço. E quando quem <strong>de</strong>ve o serviço é <strong>um</strong>abonita mocetona, temos evi<strong>de</strong>ntemente <strong>um</strong>a complicação a mais.Ser útil a alguém no perigo ou na penúria, é o melhor caminho para vir aquerer-lhe bem: fica-nos pertencendo <strong>um</strong> pouco, já que nos custou alg<strong>um</strong>a coisa.Andam errados os moralistas filantropos quando pregam a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> amar aopróximo como condição e preparação para o ajudar e suportar. O primeiro passo éajudá-lo e suportá-lo: o amor vem <strong>de</strong>pois.Mas isto não tem nada que ver com o amor-amor, amor-<strong>de</strong>sejo, o amor-folia;e a perturbação que Rufina <strong>de</strong>ixou em mim veio muito menos do susto <strong>de</strong> que alivrei do que do filtro l<strong>um</strong>inoso que a furto se lhe escorreu <strong>de</strong> entre as pálpebrassemicerradas...................................... un long rayon d'étoile!Ah! Rufína, meteoro rutilante perpassaste pelo céu caliginoso <strong>de</strong> minha vida!Estarás a estas horas olvidada <strong>de</strong> mim. Nem por <strong>um</strong> momento esvoaçará tuacabecinha pequenina e redonda a idéia <strong>de</strong> que <strong>de</strong>ixaste <strong>um</strong> farpão enroscado nacarne <strong>de</strong> <strong>um</strong> pobre funcionário; <strong>de</strong> que esta pobre alma, jogada <strong>de</strong> cá para lá sobreos trilhos imutáveis, está a ver-te sempre no mesmo banco, ao lado do mesmoancião <strong>de</strong> rosto severo e pausada voz, como <strong>um</strong> avezita ao lado <strong>de</strong> <strong>um</strong>rinoceronte.— Perdoa-me, se é teu pai, ou teu avô, ou padrinho; mas não podias tercompanheiro que melhor fizesse realçar a tua brevida<strong>de</strong> graciosa e arrogante <strong>de</strong>galinha garnisé.Não te verei mais, Rufina?BRINQUEDOSNo bon<strong>de</strong> em que voltei da cida<strong>de</strong>, hoje à tardinha, vinham crianças combrinquedos.Perto <strong>de</strong> mim, <strong>um</strong> senhor idoso e barbeado fazia ver ao filho <strong>de</strong> seis anoscomo funcionava <strong>um</strong> galante volantim mecânico, que o pequeno, mais porcomprazer ao tipo velho, inutilmente lidava por acionar.Mais adiante, <strong>um</strong>a senhorita loura, sopesava <strong>um</strong>a bola nas pontas dos <strong>de</strong>doscompridos, fazendo-a girar velozmente, com prazer, como sentindo nas papilas, acarícia <strong>de</strong> <strong>um</strong>a tatilida<strong>de</strong> nova, e <strong>um</strong>a sensação ótica inédita na rotação dos gomosbancos, azuis, amarelos e escarlates. E essa dança <strong>de</strong> cores parecia emanar, pelamão translúcida e ágil, como <strong>um</strong> vago punhado <strong>de</strong> flores e <strong>de</strong> borboletas, <strong>de</strong> todaaquela pessoa que se diria a própria Primavera a viajar <strong>de</strong> bon<strong>de</strong>.Perto, <strong>um</strong>a menina embezerrada olhava esse exercício e essa bola com <strong>um</strong>ar <strong>de</strong> proprietária complacente, estéril <strong>de</strong> <strong>um</strong>a bola.Na cida<strong>de</strong>, quando lá perambulei à cata do bon<strong>de</strong>, havia azáfama nas lojas<strong>de</strong> brinquedos e novida<strong>de</strong>s. As crianças eram poucas, porque geralmente osgran<strong>de</strong>s não gostam <strong>de</strong> sair com crianças e porque, nestes dias <strong>de</strong> festas, preferemfazer-lhes a clássica surpresa. — Na verda<strong>de</strong>, os gran<strong>de</strong>s é que se divertem com ospresentes que fazem; e, não satisfeitos, ainda se reservam, no seu egoísmo, odireito <strong>de</strong> saborear a surpresa dos presenteados. É com <strong>de</strong>lícias que aproveitam,entre Natal e Reis, a concessão feita pelos cost<strong>um</strong>es para mergulhar a suainfantilida<strong>de</strong> envergonhada no mundo maravilhoso das coisas inúteis e bonitas.Outrora, mais ou menos até Rousseau, consi<strong>de</strong>rava-se a criança como <strong>um</strong>homem pequeno. Os próprios artistas as presentavam como adultos em escala13


www.nead.unama.brmenor. Muito custou reconhecer-se que o homem é que é <strong>um</strong>a criança crescida.Entretanto, dir-se-ia que isso entra pelos olhos.Para as crianças ainda não crescidas, tudo é brinquedo.O brinquedo especializado é <strong>um</strong>a invenção que os gran<strong>de</strong>s fizeram para sedivertirem com eles e com as crianças. Estas muitas vezes, se vêem reduzidas aopapel <strong>de</strong> usufrutuárias, ou menos ainda, ao <strong>de</strong> guardas e conservadoras dos bonitosobjetos. Para elas, coitadas, tudo é brinquedo. Uma toalha enrolada, que se revestiu<strong>de</strong> <strong>um</strong> casaco velho, faz o papel <strong>de</strong> <strong>um</strong>a boneca perfeita, ainda melhor do que aprópria boneca perfeita. Um cabo <strong>de</strong> vassoura po<strong>de</strong> ser <strong>um</strong> cavalo sem rival, comvantagem <strong>de</strong> não impor ao dono sua raça, nem os aci<strong>de</strong>ntes da sua forma ou do seucaráter, mas com a capacida<strong>de</strong> preciosa <strong>de</strong> ser árabe ou ponney pangaré ou ruano,fuá ou poleiro, à vonta<strong>de</strong>. Uma galinha, <strong>um</strong> ferro <strong>de</strong> engomar, <strong>um</strong> grilo ou <strong>um</strong>a caixa<strong>de</strong> fósforos são divertimentos mais interessantes e <strong>de</strong> mais durável prestigio <strong>de</strong> queo macaco <strong>de</strong> pau que sobe por <strong>um</strong> cor<strong>de</strong>l, do que o trenzinho <strong>de</strong> ferro com túneis eestações, do que o palhaço que gira sobre o calcanhar <strong>de</strong> pinho e tilinta soalhas eguizos <strong>de</strong> lata.— Estas observações não são originais, mas apesar disso são justas.É verda<strong>de</strong> que os petizes recebem com ânsias esses presentinhos <strong>de</strong>festas, e fazem a propósito <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong> r<strong>um</strong>or. É o atrativo da novida<strong>de</strong>. É a pressa<strong>de</strong> ver e experimentar. É o prazer <strong>de</strong> dizer "meu". É a tentação <strong>de</strong> fazer inveja aosoutros pequenos. É, sobretudo, a mímica do <strong>de</strong>sejo, do alvoroço, da cobiça, doegoísmo apropriador, que os gran<strong>de</strong>s lhes têm ensinado e que os pequenos vãoexecutando, n<strong>um</strong>a adaptação mecânica do sentimento confuso e alvorecente aosrecortes do gesto distinto e expressivo.As crianças amam acima <strong>de</strong> tudo a espontaneida<strong>de</strong> da sua própriaimaginação, que os brinquedos, quanto mais complicados e perfeitos, maisembaraçam. Ou então preferem a complicação extrema e sempre nova das coisasvivas. Se por natureza são assim, <strong>de</strong>via <strong>de</strong>ixar-se obrar a natureza. Mas os adultosquerem o artifício, todos os gêneros <strong>de</strong> artifício, e impõem-os às crianças,perturbando-lhes o viço da curiosida<strong>de</strong> espontânea e da livre investigação. Por issomesmo, a ciência é o último luxo da h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>, sendo o seu primeiro <strong>de</strong>sejo.A ROUPA E O GESTOGosto <strong>de</strong> viajar no último banco. Vai-se mais resguardado <strong>de</strong> maçantes.Po<strong>de</strong>-se inspecionar o carro inteiro, quase sem ser visto. Não se vêem caras.Evita-se o risco <strong>de</strong> pagar a passagem para os amigos que não o são, epo<strong>de</strong>-se fazer aos amigos que o são a surpresa <strong>de</strong> lha pagar, n<strong>um</strong>a traição <strong>de</strong>licada,pelas costas, — o que, como fineza, tem na sua in<strong>de</strong>pendência <strong>um</strong> especialíssimosabor. — Por fim, po<strong>de</strong>-se f<strong>um</strong>ar sem a preocupação <strong>de</strong> ser incômodo a senhoras,por que muito raramente vão senhoras no último banco e dá-se a coincidência <strong>de</strong>não haver outro <strong>de</strong>pois do último.Aliás, <strong>de</strong>ixo <strong>de</strong> f<strong>um</strong>ar perto <strong>de</strong> senhoras, não por <strong>um</strong>a particular <strong>de</strong>ferência,mas apenas para não me incomodar a mim mesmo. Saborear <strong>um</strong> cigarro é prazertão leve e tão fino, que o simples pensamento <strong>de</strong> que alguém no-lo possa estaramaldiçoando amarga os gorgomilos e embacia a transparência azulejante dasespirais.Apesar <strong>de</strong> preferir ordinariamente o último, fui hoje para o primeiro, e fiz todaa viagem voltado para o resto do carro. Não influiu nisto o fato <strong>de</strong> eu envergar o meunovo terno cinzento e <strong>de</strong> estrear <strong>um</strong>a comburente gravata <strong>de</strong> listras amarelas efiletes encarnados.14


www.nead.unama.brNão. Detesto exibições. E não distingo entre exibições, sejam <strong>de</strong> roupas,sejam <strong>de</strong> talentos ou virtu<strong>de</strong>s, sejam <strong>de</strong> vícios ou maroteiras. Propendo até aperdoar mais facilmente a exibição <strong>de</strong> roupas, que não é assim tão idiota comoinculcam os que não a po<strong>de</strong>m pagar.Ter vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong>a farpela bonita é geralmente <strong>um</strong>a falta venial e, porassim dizer, exterior, que não repercute nas regiões nobres da alma; ao passo que avaida<strong>de</strong> intelectual envenena e turba as próprias fontes do pensamento, e a vaida<strong>de</strong>da boa ação <strong>de</strong>strói exatamente essa misteriosa e fragílima levedura <strong>de</strong> heroísmo,que é o seu único valor, — o impon<strong>de</strong>rável que a análise não po<strong>de</strong> reduzir e ante oqual o escalpelo se <strong>de</strong>tém, enquanto faísca no olho implacável do operador <strong>um</strong>acentelha <strong>de</strong> h<strong>um</strong>ana emoção.É a vaida<strong>de</strong> exterior que tem preservado na mulher o seu secreto manancial<strong>de</strong> pieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> energias profundas. Aparentemente frívola, ela é na realida<strong>de</strong> maisforte e melhor. Os seus tecidos aéreos, as suas rendas e fitas, as suas exteriorida<strong>de</strong>sesp<strong>um</strong>osas e florais <strong>de</strong> criatura espetacular, são na realida<strong>de</strong> <strong>um</strong>as couraças, unsadarves, <strong>um</strong>as muralhas, — são tranqueiras e circunvalações <strong>de</strong>fensivas que amulher esten<strong>de</strong> em redor <strong>de</strong> si, para ir entretendo o inimigo enquanto ela conserva lá<strong>de</strong>ntro, na intimida<strong>de</strong> da cida<strong>de</strong>la sacra, o seu tesouro e o seu altar.Não, a ind<strong>um</strong>entária (termo suntuoso, que eu sentia envolver-me,luxuosamente, como a coisa <strong>de</strong>signada) a ind<strong>um</strong>entária não me influiu na resolução<strong>de</strong> ir para o primeiro banco. Predispôs-me bem, quando muito <strong>de</strong>u-me <strong>um</strong> calorzinho<strong>de</strong> otimismo e <strong>de</strong> simpatia difusa. Isto, sim. — De on<strong>de</strong> infiro que <strong>de</strong>víamos usar maisfreqüentemente <strong>de</strong> roupa nova, revezando-a talvez com as mais velhas, para acentuaro efeito pelo contraste, mas enfim usar mais freqüentemente <strong>de</strong> roupa nova.Se todos vivêssemos enfiados em estojos <strong>de</strong> boa fazenda e bom corte, <strong>de</strong>certo lucraria a disciplina interna das almas e com ela a facilida<strong>de</strong> e o concerto dasrelações entre os homens. — Um indivíduo ru<strong>de</strong>mente estrafegado pela vida, massempre cingido em ternos corretos e confortáveis, suporta com outra filosofia e outraelegância os baldões da fortuna. Principalmente, é claro, quando a roupa está paga.Homens há que são relembórios por teima, por <strong>de</strong>scaso, por sistematizaçãoinconsciente das sugestões da preguiça, da somiticaria ou da falta <strong>de</strong> gosto. Queremfazer crer que são assim por vonta<strong>de</strong> e que vão executando <strong>um</strong> programa bemmeditado. Dão-se ares <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezar profundamente essas materialida<strong>de</strong>s ineptas. Ea verda<strong>de</strong> é que são às vezes sinceros. Mas como se ilu<strong>de</strong>m!O indivíduo mais sinceramente lavado <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>corativas não po<strong>de</strong>,quando menos, quando menos, <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> sentir a cada instante a discrepância emque se encontra nos meios que freqüenta. Então, para manter a sua atitu<strong>de</strong> interior<strong>de</strong> dissidência, não po<strong>de</strong> evitar a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar nisso, <strong>de</strong> fazer reflexõesque <strong>de</strong>ixam forçosamente <strong>um</strong> sedimento amargo, sobretudo quando reagem contraatitu<strong>de</strong>s e atos <strong>de</strong>preciativos com que esbarrou. Sendo assim, on<strong>de</strong> está a liberda<strong>de</strong>interior que ele preten<strong>de</strong> prezar acima <strong>de</strong> tudo? A liberda<strong>de</strong> perfeita e bela seria aque implicasse no mesmo <strong>de</strong>sprezo profundo e sereno as materialida<strong>de</strong>s exteriorese todas as suas conseqüências — a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Diógenes ou <strong>de</strong> Francisco <strong>de</strong>Assis. Sem isso não é liberda<strong>de</strong>: é <strong>um</strong> simulacro, <strong>um</strong> escamoteio, <strong>um</strong> sofisma emação, que traz consigo mesmo a sua pena perpétua, como a sua própria sombra.Um dos seguros efeitos da roupa nova e bem cortada é que ela cria emantém o hábito das posições perfiladas e dos movimentos harmoniosos. Vale por<strong>um</strong> esporte. Excelente esporte para o corpo, visto que o submete a <strong>um</strong>a disciplinaretificadora e a <strong>um</strong>a continuada economia <strong>de</strong> força. Excelente esporte para a alma,que se mo<strong>de</strong>la à feição do corpo. — As atitu<strong>de</strong>s e movimentos da alma são atitu<strong>de</strong>s15


www.nead.unama.bre movimentos corporais: a alma põe-se <strong>de</strong> pé, acocora-se, <strong>de</strong>sliza, <strong>de</strong>scai, ajoelhase,caminha direita e alegre, ou cambaleia, ou rasteja. A alma toma todas asposições <strong>de</strong> luta, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a <strong>de</strong> <strong>um</strong> calmo e melódico guerreiro <strong>de</strong> Fídias até à <strong>de</strong> <strong>um</strong>torpe moleque agachado e sinuoso, com a navalha empalmada e o pé igualmentepronto para a rasteira ou para a fuga.Nas aulas <strong>de</strong> educação moral e cívica <strong>de</strong>via-se ensinar, antes <strong>de</strong> mais, aselecionar e fixar posturas e gestos. Aquele que apren<strong>de</strong>u <strong>um</strong>a simples maneiranova <strong>de</strong> segurar o cigarro, <strong>de</strong> puxar e soltar a f<strong>um</strong>aça, <strong>de</strong> arremessar o coto, <strong>um</strong>acerta maneira vivaz, ritmada, incisiva e distinta <strong>de</strong> realizar todos esses pequenosmovimentos, adquiriu alg<strong>um</strong>a coisa que positivamente lhe modifica a personalida<strong>de</strong>,por via <strong>de</strong> ressonâncias que se vão convertendo em movimentos interiores habituais.— Inversamente, para convencer <strong>um</strong>a menina <strong>de</strong> que ela <strong>de</strong>ve ser boazinha, não hácomo convencê-la <strong>de</strong> que assim se torna mais bonita. Há muito menina gran<strong>de</strong> quefaz toda a força do seu domínio interior com a simples preocupação <strong>de</strong> não ter cara<strong>de</strong> espeloteada ou <strong>de</strong> evitar a inflamação das pálpebras. Chamfort conta <strong>de</strong> <strong>um</strong>adama que assim se justificava <strong>de</strong> assistir com olhos secos a <strong>um</strong>a comovedorarepresentação teatral: "Eu choraria; mas é que tenho <strong>de</strong> cear na cida<strong>de</strong>".Compreen<strong>de</strong>-se bem a confusão que <strong>de</strong> ordinário se faz entre o gestosignificativo e a coisa significada, entre o valor da virtu<strong>de</strong> e suas aparências externas.Este pratica <strong>um</strong>a ação honrada, não por esta ou aquela razão abstrata, mas parapo<strong>de</strong>r andar "<strong>de</strong> cabeça erguida"; aquele, para po<strong>de</strong>r "dar <strong>um</strong>a...", isto é, fazer <strong>um</strong>gesto violento e <strong>de</strong>saforado aos seus <strong>de</strong>tratores. Conheci <strong>um</strong> homem que, dando <strong>um</strong>agrossa esmola a <strong>um</strong>a igreja, dizia: "Não é lá tanto pela religião, porque enfim eu vivo afazer por ela o que posso; mas é cá por <strong>um</strong>a birra, — é <strong>um</strong> couce que eu prego aoAlvarenga, aquele idiota, que <strong>de</strong>u <strong>um</strong> conto <strong>de</strong> réis e disso se pavoneia."A metáfora é mais do que <strong>um</strong> artifício pitural, é a gesticulação das almas.Somos bonecos à procura <strong>de</strong> gestos. Estes preexistem e persistem fora <strong>de</strong>nós, e nós passamos por eles como a água passa pelos vasos e canais que acontêm e lhe dão forma, como a água passa pelos aci<strong>de</strong>ntes da própria correnteza edo próprio caminho, pelas suas rugas, pelas suas cintilações e sombras, pelas suasesp<strong>um</strong>as e cachões.Tomamo-los no lar, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o berço, e na escola; apanhamo-los no teatro, nocinema, nos livros, nos quadros, na escultura, na rua, nas salas, na própria música,que espontaneamente se resolve em <strong>de</strong>senhos cinéticos <strong>de</strong> <strong>um</strong>a aérea e fulmíneaexpressivida<strong>de</strong>.Os gestos <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> serena, <strong>de</strong> compostura discreta e elegante estão,em parte, incorporados às roupas distintas, como <strong>um</strong> forro invisível. O alfaiate cortapelo pano e, sem o saber, vai cortando ao mesmo tempo por <strong>um</strong>a tela espiritual,fabricada por duas tecelãs incansáveis, a H<strong>um</strong>anida<strong>de</strong> e a Natureza.Dizem que o hábito não faz o monge. Imagine-se o que seria <strong>um</strong> fra<strong>de</strong> <strong>de</strong>São Francisco sem o seu hábito! O hábito só não faz o monge quando esse está <strong>de</strong>tal maneira conformado pela vestimenta, que já po<strong>de</strong> impunemente <strong>de</strong>spi-la, sem <strong>de</strong>fato arrancá-la toda do corpo.A toga foi talvez a mais importante das invenções romanas. De certocontribuiu mais do que tudo para fortalecer e ritmar, para esculturizar o caráterdaquela gente estrepitosa e <strong>de</strong>rramada.Por <strong>um</strong>a razão semelhante, as estátuas clássicas (isto me parece que foidito por Alam) são formas imperecíveis <strong>de</strong> i<strong>de</strong>alida<strong>de</strong> ética, formas que prece<strong>de</strong>m esobrevivem ao conteúdo i<strong>de</strong>al que nelas vão sucessivamente vazando as gerações.16


www.nead.unama.brA roupa é muita coisa, porque a expressão é tudo. Tudo quanto em nósrepresenta idéia, pensamento, espirito, são expressões que se refletiram para <strong>de</strong>ntroe puseram <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong> luz e <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m no caos <strong>de</strong> que brotaram — como esses<strong>de</strong>uses barbáricos e frustes que nasceram da pedra informe, das águasin<strong>de</strong>terminadas, dos elementos brutos e confusos, para individuar as coisas eesboçar <strong>um</strong>a organização do mundo.RUFINAHoje <strong>de</strong> manhã, ao tomar o bon<strong>de</strong>, lobriguei lá <strong>de</strong>ntro <strong>um</strong> vulto <strong>de</strong> mulher e,com a instantaneida<strong>de</strong> do raio, enxerguei a imagem <strong>de</strong> Rufina. Trêmulo, sentei-me, everifiquei: o vulto era <strong>um</strong>a velha gorda e tostada. Fechei os olhos, procurei esquecermeda velha e <strong>de</strong> Rufina — ejus<strong>de</strong>m farínae, afinal <strong>de</strong> contas! — e comecei a resolvero seguinte problema: qual seria a renda bruta da companhia, supondo-se que tinhaem tráfego quatrocentos bon<strong>de</strong>s, cada bon<strong>de</strong> transportando em média vinte e cincopassageiros? A questão me interessava, porque estou tratando <strong>de</strong> redigir <strong>um</strong>areclamação para a imprensa contra certas irregularida<strong>de</strong>s do serviço.— Vejamos. 25 x 200 = vinte por duzentos, que são 4.000, mais... Ru-fi-na...cinco por duzentos, que são mil... Erre, <strong>um</strong> = Ru.... Quatro mil mais mil, cinco mil;cinco mil que? Ora, o diabo da velha! Cinco mil contos... — Desisti das contas. Amatemática é inconciliável com o coração. É inconciliável com a vida.Como é que Newton pô<strong>de</strong> ser pai <strong>de</strong> família, ter <strong>um</strong>a esposa, ter filhos, terafetos, preocupações, <strong>de</strong>sejos, e calcular continuamente? Eu, quando alg<strong>um</strong>a vespame pica, faço até as máquinas <strong>de</strong> cálculo errar <strong>um</strong>a adição. Tudo aquilo em queponho as mãos <strong>de</strong>sconcerta, extravaga. Até o Melquía<strong>de</strong>s, meu servente, que emmatéria <strong>de</strong> calma e paciência e <strong>um</strong> urso <strong>de</strong> bazar, fica esparavonado, entorta,arrebita e disparata!Preciso esforçar-me para me corrigir. Não tanto, porém, que me torne apto amaquinar friamente com a cabeça no meio das tormentas e das <strong>de</strong>lícias da vida.Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Eu prefiro sonhar com Rufina a cavar <strong>um</strong>acelebrida<strong>de</strong> em cálculo diferencial.O GATOSentei-me hoje ao pé <strong>de</strong> <strong>um</strong>a velhota embrulhada n<strong>um</strong> xale. Logo notei, semter nada investigado, que ela dissimulava qualquer coisa por baixo da manta. — Comofoi que cheguei a isso? Não o sei ao certo. Um movimento <strong>de</strong> suas mãos ocultas aarrepanharem o xale sobre o regaço... O seu ar <strong>de</strong>masiado "inocente"... Sei lá.Eu podia ter-me ufanado da minha perspicácia. Mas não. Nem houvepropriamente perspicácia alg<strong>um</strong>a; ou, se houve, foi toda inconsciente: pouco se medava daquela mulher, do seu xale, dos seus gestos. Ser Sherlock por vonta<strong>de</strong>, porestudo, por aplicação <strong>de</strong>terminada e metódica da inteligência, é <strong>um</strong> esporterazoável, embora não me seduza. Mas esta espécie <strong>de</strong> "suspicácia" inata e vulgar éaborrecível como todas as inclinações tolas e baixas.Senti-me <strong>de</strong>sgostoso <strong>de</strong> mim, e mal me consolei com a reflexão, que fiz emseguida, <strong>de</strong> que o dom não me era particular, nada tinha <strong>de</strong> diferencialmentepessoal, Pois que alheio a todo pensamento, a toda vonta<strong>de</strong> e a toda tendência<strong>de</strong>finida. É qualida<strong>de</strong> h<strong>um</strong>ana, com raízes fundas na camada mais funda da nossa17


www.nead.unama.brh<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>. Todos temos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós <strong>um</strong> bicho indiscreto e malévolo, emsimbiose com o nosso Eu distinto e consciente, que às vezes o ignora ou faz porignorá-lo, ou mesmo lhe dá largas.Arrastado pela curiosida<strong>de</strong>, antes que acabasse <strong>de</strong> refletir, não me custouperceber que <strong>de</strong> fato a mulher escondia qualquer coisa, e que essa coisa era <strong>um</strong>gato. Um gato branco, boquinha rósea, olhos muito gran<strong>de</strong>s estriados por <strong>um</strong>chuvisco <strong>de</strong> luz entre vegetações <strong>de</strong> esmeralda e ouro. Tinha <strong>um</strong> ar pouco amigável,meio enfezado, meio suplicante. — Percebi tudo isso n<strong>um</strong> ápice, porque tenho avista habituada a inspecionar gatos. É este o animal da minha predileção, o únicosemovente que me agrada sem reservas.Gostaria também bastante dos cavalos <strong>de</strong> raça <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o possante Brabançonaté o árabe naturalizado e aperfeiçoado nos haras <strong>de</strong> Inglaterra, por seu instinto daatitu<strong>de</strong> pictórica ou escultural, se tais cavalos fossem do tamanho <strong>de</strong> gatos e sepu<strong>de</strong>ssem ter <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa, pôr ao colo e <strong>de</strong>ixar correr por cima das mesas. — O<strong>de</strong>feito <strong>de</strong>sse animal é ser excessivamente gran<strong>de</strong>. Isto o reduziu ao papel poucodistinto <strong>de</strong> mero acessório do homem, e tornou-o <strong>um</strong> prosaico objeto <strong>de</strong> utilida<strong>de</strong> ou<strong>de</strong> ostentação.Dentre todos os caprichos da natureza, o mais estranho está nessa fantasiainutilíssima e zombeteira com que ela repartiu a força e a beleza pela escala dasdimensões, no reino animal.Os insetos, em regra, são feíssimos e fortíssimos; ao mesmo tempo,pequeninos e inaproveitáveis. Os cavalos e outros viventes gran<strong>de</strong>s e belos sãorelativamente fracalhões. Tudo se resolveria bem se houvesse gafanhotos dotamanho <strong>de</strong> girafas, besouros do vol<strong>um</strong>e <strong>de</strong> vacas holan<strong>de</strong>sas, pulgas das dimensões<strong>de</strong> bezerros; que motores formidáveis à disposição do homem! Entretanto, escusavaque os animais nobres e formosos ocupassem tanto espaço e, sendo na verda<strong>de</strong> osbibelots da natureza, fossem con<strong>de</strong>nados ao estábulo, à estrebaria, ao amanho daterra, à tração <strong>de</strong> veículos, ao trabalho bruto, à escravidão h<strong>um</strong>ilhante.Essa a justiça da gran<strong>de</strong> Mãe! E ainda se isso passasse exclusivamentecom os bichos! Mas, não. Toda beleza é escrava. Mulher, — é o alvo e a presa damatilha esfaimada dos instintos. Ven<strong>de</strong>-se nos mercados. Aprisiona-se. Con<strong>de</strong>na-sea ser <strong>um</strong>a forma vazia, ornada <strong>de</strong> vermelhão, <strong>de</strong> pó-<strong>de</strong>-arroz e <strong>de</strong> jóias, com a noite<strong>de</strong>ntro, como a cabaça mágica do bugre. Talento, gênio, bonda<strong>de</strong>, amor,— tudocapturado, amarrado, explorado, torturado, agadanhado, sangrado, e finalmentereduzido a cacos, a cisco, a lama, a cinza, a pó, a pó que se espalha ao vento, entreo <strong>de</strong>lírio e a confusão da mac<strong>um</strong>ba ret<strong>um</strong>bante e frenética.Ao cavalo, a certos respeitos, eu preferiria o elefante. Embora convivendo,em <strong>de</strong>terminadas regiões, com a espécie h<strong>um</strong>ana, esse, contudo, guarda adignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> escravo testarudo e resignado — obediente, fiel, mas inamoldável,sempre intransigentemente elefante. Não tem a elegância do nobre equus(elegância, aliás, já <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong>sacreditada, como a do estilo ciceroniano), mas látem a sua, que lhe é própria e, além <strong>de</strong> própria, intransferível, por mais que hajaindivíduos h<strong>um</strong>anos a quererem tomar-lha, na classe que compreen<strong>de</strong> os gran<strong>de</strong>sven<strong>de</strong>iros, os <strong>de</strong>sembargadores e os clérigos.A elegância do elefante, revelam-na bem certos artistas. Há bibelots <strong>de</strong> louça,marfim ou bronze, em que ela se manifesta com a evidência da luz. Hierática, cheia,pesada, a massa liga-se às proporções e aos contornos n<strong>um</strong>a sóbria unida<strong>de</strong> <strong>de</strong>concepção e <strong>de</strong> fantasia, e tudo é <strong>um</strong> só élan <strong>de</strong> inspiração enternecida e brincalhona.A gravida<strong>de</strong> unida ao peso, a paciência ao vol<strong>um</strong>e, a doçura à simplicida<strong>de</strong>, e <strong>um</strong> quê<strong>de</strong> majestoso, e <strong>um</strong> quê <strong>de</strong> ingênuo, e <strong>um</strong> quê <strong>de</strong> gaiato.— Apenas falta a essas18


www.nead.unama.brcomposições o in<strong>de</strong>finível encanto da vida, esse encanto que resulta da nossaperversa inclinação para só gostar completamente das coisas que sofrem.O certo é que, se eu pu<strong>de</strong>sse possuir <strong>um</strong> elefante em casa, aí com <strong>um</strong>as<strong>de</strong>z ou doze polegadas <strong>de</strong> altura, e que me viesse comer à mão, e brincasse com omeu bichano, às correrias por baixo <strong>de</strong> mesas e ca<strong>de</strong>iras, isto me seria <strong>um</strong>verda<strong>de</strong>iro enlevo na minha solidão povoada <strong>de</strong> imagens inertes. — O pior é que <strong>um</strong>dia... Tudo tem o seu fim neste mundo. Seria possível que o meu bibelot animado<strong>de</strong>volvesse antes <strong>de</strong> mim a sua porção <strong>de</strong> fluido vital ao laboratório do universo. Omeu bichano havia <strong>de</strong> andar miando tristemente pelos cantos. A minha cozinheiratalvez enxugaria lágrimas, às escondidas, ao ver-me acariciar o Romão, à hora dasrefeições, na ausência do outro.Gatos que miam e cozinheiras lacrimejantes estragam <strong>um</strong>a casa. Desisto doelefantinho.A verda<strong>de</strong> é que tenho <strong>um</strong> fraco pelos gatos, e fiquei a pensar no que amulher do bon<strong>de</strong> faria daquele. Iria <strong>de</strong>itá-lo fora? Iria dá-lo a alguém que lhe<strong>de</strong>stinasse o indigno emprego <strong>de</strong> caçador <strong>de</strong> ratos?Eu estou convencido <strong>de</strong> que os gatos não querem mal ao gênero mus.Procuram agarrar os roedores por simples prazer e necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> brincar. E sepreferem esses a quaisquer outros, é apenas porque o rato, <strong>de</strong> todos os bichosproporcionados ao felino doméstico, é, o que mais radicalmente difere <strong>de</strong>ste.O gato só po<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o rato como <strong>um</strong>a coisa sem afinida<strong>de</strong> alg<strong>um</strong>acom ele, mais ou menos como nós encaramos os peixes, aos quais não conce<strong>de</strong>mosnenh<strong>um</strong>a sobra <strong>de</strong> respeito, nem <strong>de</strong> simpatia, nem <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong>. São objetos <strong>de</strong> <strong>um</strong>outro mundo, criações <strong>de</strong> <strong>um</strong> outro plano, obras <strong>de</strong> <strong>um</strong>a outra série. A teoria queMalebranche sustentava com referência à sua triste ca<strong>de</strong>la — cujos latidos <strong>de</strong> doreram no seu enten<strong>de</strong>r simples passagem do ar pelo mecanismo da garganta — é portodo o mundo imemorialmente e inconscientemente aplicada aos peixes. O própriodilúvio, con<strong>de</strong>nação e aniquilamento <strong>de</strong> todos os viventes não embarcados, <strong>de</strong>ixou àmargem, isto é, <strong>de</strong>ntro da água, esses interessantes autômatos.O rato, roedor meticuloso, <strong>de</strong>struidor frio, amigo das sombras, dos recantosocultos, das gretas e frinchas secretas, dos buracos dissimulados e recônditos,gran<strong>de</strong> trabalhador sem horizonte, medroso, tenaz, esperto, estúpido, o rato é oantípoda psicológico e moral <strong>de</strong>ste príncipe dos quadrúpe<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>ste poeta <strong>de</strong> pelo,<strong>de</strong>ste artista <strong>de</strong> garras, <strong>de</strong>ste sonhador indolente e <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhoso, que compreen<strong>de</strong>u aimensa utilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> não fazer nada, amigo do sol, das noites <strong>de</strong> lua, dos jardinsfloridos, dos telhados altos e <strong>de</strong>sertos.Este, quando procura a pen<strong>um</strong>bra e o aconchego, é no borralho familiaron<strong>de</strong> o fogo <strong>de</strong>ixou <strong>um</strong> pouco da sua alma quente e errante, é entre cobertas molese cariciosas, é no regaço quieto das pessoas pensativas, ternas ou tristes.Acusam-no <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>samoroso e ingrato. Julgamento mesquinho. O mal dogato está unicamente em não ser nem servil nem serviçal. O homem só compreen<strong>de</strong>as afeições no seu tríplice aspecto <strong>de</strong> promessa, <strong>de</strong>sejo ou sauda<strong>de</strong> <strong>de</strong> serviços.(Triste <strong>de</strong> quem as concebeu alg<strong>um</strong> dia como <strong>um</strong> culto e <strong>um</strong> puro gozo interior,esquecendo-se <strong>de</strong> que a vida que vale é a que se processa e corre da periferia docorpo para fora!).O gato saboreia melhor do que os próprios donos a fina flor da h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>,aquilo que há em nós <strong>de</strong> mais seleto, e <strong>de</strong>spreza tranqüilamente o farelo. Por isso éque se apega mais à casa do que ao habitante, como alguém, <strong>de</strong> refinado olfato,que preferisse, n<strong>um</strong>a paisagem, o ar embalsamado por <strong>um</strong> resto <strong>de</strong> perf<strong>um</strong>e <strong>de</strong>flores ausentes.19


www.nead.unama.brO homem canta — Home, sweet home! E vai para a pân<strong>de</strong>ga, a dissipação, otráfico, as feiras dos negócios, dos vícios e das vaida<strong>de</strong>s: o gato fica, adorando comrecolhida finura o melhor produto do homem, o melhor retrato do homem melhor, aCasa, a Casa on<strong>de</strong> o fogo prisioneiro canta a ária encantatória das coisas perpétuas,verazes e substanciais, a mesa em torno da qual a família reparte o pão cotidiano empaz no meio da tormenta, as pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> on<strong>de</strong> pen<strong>de</strong>m alfaias e recordações, asportas em cuja tela <strong>de</strong> pen<strong>um</strong>bra se enquadraram vultos amigos que nunca maisvieram empurrá-las, mas parece às vezes que vão chegar a todo momento, queandam ali perto, ali. — A Casa! A Casa do Homem, em tudo superior ao habitante quepassa, ao hóspe<strong>de</strong> mofino <strong>de</strong> uns dias fugazes; ilha <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> composição,<strong>de</strong> recolhimento, <strong>de</strong> segurança e <strong>de</strong> amor, no meio da instabilida<strong>de</strong>, da precarieda<strong>de</strong>,da confusão, do <strong>de</strong>sperdício, da angústia e da loucura universal.O homem faz a sua casa e foge <strong>de</strong>la; ainda lá <strong>de</strong>ntro, foge em espírito; nãochega a compreen<strong>de</strong>r nem a sentir que fez <strong>um</strong> mundo, <strong>um</strong> mundo maravilhoso, parao qual todo o mundo gran<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> tempos imemoriais, vem ac<strong>um</strong>ulando infinitoselementos; <strong>um</strong> pequeno mundo sensível e supra-sensível on<strong>de</strong> a soma doselementos imateriais é incomparavelmente maior do que a dos outros, on<strong>de</strong> cadapedra ou tijolo, cada móvel, cada quadro, cada retrato, cada canto encerra <strong>um</strong>asaturação imensa <strong>de</strong> h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> vida vivida e vem a ser mais rica em po<strong>de</strong>rirradiante do que a mais carregada petchblenda...Mas eu estava em que os gatos não têm aversão aos ratos. E não têm. Oque há é que são antípodas uns dos outros. O bichano vê no rato <strong>um</strong> simplesmecanismo, bom para esporte e brinquedo.É verda<strong>de</strong> que das brinca<strong>de</strong>iras resulta muitas vezes o óbito da presa. Mas énatural que <strong>um</strong> gato não tenha idéias claras acerca dos sofrimentos e da morte.Nós, que somos gente, ou ten<strong>de</strong>mos a isso, apenas sentimos que há dor nomundo por experiência própria e individual, e nada nos custa como acreditar que aexperiência dos outros possa coincidir com a nossa.Por isso o rancor é <strong>de</strong>z mil vezes mais com<strong>um</strong> do que a pieda<strong>de</strong>; além <strong>de</strong>que a pieda<strong>de</strong> é freqüentemente <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> rancor fatigado.Quanto à morte, po<strong>de</strong>-se muita vez duvidar que seja motivo <strong>de</strong> mágoa paraalg<strong>um</strong> dos que ficam; ao passo que se tem a certeza <strong>de</strong> que é festa para osher<strong>de</strong>iros, pão para os gato-pingados, rócio para várias indústrias, e espetáculo paraos vizinhos do falecido.Tive ganas <strong>de</strong> ver se a dona quereria ven<strong>de</strong>r-me o gatinho, mas <strong>de</strong>teve-mea dificulda<strong>de</strong> do transporte. Se eu o levasse na mão até à secretaria, rir-se-iam <strong>de</strong>mim pelo caminho e na repartição. Carregá-lo no bolso, impossível. Mandá-lo levar acasa, <strong>de</strong>spesa. Eu neste ponto me pareço muito com toda a gente: sou comodista eeconômico em matéria <strong>de</strong> prazeres do coração.Desisti da compra e consolei-me com os poetas que amam damasimaginárias, sob o pretexto <strong>de</strong> que as <strong>de</strong> osso e carne são imperfeitas, mas narealida<strong>de</strong> por <strong>um</strong>a questão <strong>de</strong> economia: pus-me a pensar amorosamente n<strong>um</strong> gatoi<strong>de</strong>al. E <strong>de</strong>sfiei <strong>de</strong> memória aquilo <strong>de</strong> Beau<strong>de</strong>laire:Viens, mon bon chat, sur mon coeur amoureux,Retiens les griffes <strong>de</strong> ta patte.Logo o enxerguei junto <strong>de</strong> mim, gran<strong>de</strong>, perfeito, maravilhosamente gato,lambendo a mão com a língua rósea, o olhar tranqüilamente perdido no borborinhodas ruas, e como que a repetir aquela sentença grave <strong>de</strong> Eurípe<strong>de</strong>s: "Zeus aborreceos homens atarefados e os que se agitam <strong>de</strong>mais".20


www.nead.unama.brO gato é <strong>um</strong>a das mais completas expressões <strong>de</strong> beleza dadas ao mundo.Completas? Digo mal. Nem nós esgotamos todo o seu potencial, nem o próprioacabou <strong>de</strong> se realizar. Como os colibris, as rosas e os periquitos, é <strong>um</strong>a obra-prima,feita pela Natureza no caprichoso intento <strong>de</strong> mostrar como aquela que fazmontanhas e mares é também capaz <strong>de</strong> compor coisas <strong>de</strong> paciência, <strong>de</strong> fantasiagraciosa e <strong>de</strong> gosto quintessencial.Desconfio, porém, às vezes, que não foi a Natureza, mas o próprio Deus quemmo<strong>de</strong>lou esses objetos com os próprios <strong>de</strong>dos, para h<strong>um</strong>ilhar o homem e divertir osanjos. E que os anjos os <strong>de</strong>ixaram cair à terra por <strong>de</strong>scuido, ou para os <strong>de</strong>struir. — Étalvez por isso que os periquitos têm a cabeça achatada, e aquele arzinho <strong>de</strong> <strong>de</strong>votosirônicos, e aquele ânimo <strong>de</strong>sconfiado e áspero que faz com que se irritem eescancarem o bico recurvo quando os queremos acariciar. De certo, é pela mesmarazão que os gatos conservam essa aura <strong>de</strong> h<strong>um</strong>ana nostalgia que os distingue, essasatitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> insatisfação gemente e errabunda, esses enrodilhamentos imóveis esolitários, com os olhos estanhados, esfomeadamente arregalados para o ar, como na<strong>de</strong>sesperada esperança <strong>de</strong> ver cair alg<strong>um</strong>a traga migalha do paraíso perdido!APÊNDICE DO GATOMeu Deus, como a arte <strong>de</strong> escrever é difícil e como eu faço bem <strong>de</strong> nãoescrever senão para mim mesmo! À medida que vou enchendo estas minhascostaneiras <strong>de</strong> almaço, trezentas coisas que eu dantes não suspeitava, se meapresentam, — pequenos e gran<strong>de</strong>s problemas <strong>de</strong> composição e <strong>de</strong> expressão, <strong>de</strong>lógica e <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> método e <strong>de</strong> maneira. Enxergando-os, palpando-os, sentindoosbulir sobre a lauda como insetos <strong>de</strong>scobertos e espicaçados pelo bico da pena,surpreendo-me <strong>de</strong> os ver tão n<strong>um</strong>erosos e tão estranhos; e gozo <strong>um</strong> in<strong>de</strong>finívelprazer: o prazer <strong>de</strong> não ser obrigado por coisa nenh<strong>um</strong>a, a atormentar-me com eles.Um exemplo <strong>de</strong> inadvertência galucha: falando <strong>de</strong> animais bonitos e nobres,<strong>de</strong>i a minha preferência, precipitadamente, <strong>de</strong>pois do gato, ao cavalo e ao elefante.Entretanto, seria tão natural que tivesse refletido em que os vertebrados,geralmente, são belos e que os há tão encantadores como aqueles! Tanto maisquanto Remy <strong>de</strong> Gourmont, nas suas Dissociações, já o fizera notar.Na verda<strong>de</strong>, só há <strong>um</strong> animal feio, é o homem. O Esporte, que se aplica emfomentar a beleza física da espécie, tem nesse ponto fracassado, uniformemente,em toda a parte do mundo. Só apresenta indivíduos bonitos quando os colheu danatureza. Belos, sempre muito raros, ele não os revela em maior número do que osimples Acaso. O aspecto ordinário das suas legiões é <strong>de</strong>sencorajante. — Osesportes particulares <strong>de</strong>formam, dando excessivo <strong>de</strong>senvolvimento a certasaglomerações musculares. Pensou-se em remediar, doutrinando o atletismocompleto: vão-se com isso criando <strong>de</strong>formações generalizadas.Veja-se entretanto <strong>um</strong> coelho, <strong>um</strong> veado, <strong>um</strong>a onça, <strong>um</strong> porco-do-mato emcondições normais <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e saú<strong>de</strong>: cada qual, <strong>de</strong>ntro dos princípios dasua construção respectiva, é <strong>um</strong>a obra <strong>de</strong>liciosa <strong>de</strong> acerto, <strong>de</strong> rêussite, <strong>de</strong> precisãosem sobras e sem falhas. Surge-nos sem traços <strong>de</strong> esforço nem <strong>de</strong> intenção, com acorrente naturalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> <strong>de</strong>scuido! — Conformação e movimento permanecem<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> <strong>um</strong>a lógica infrangível, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a unida<strong>de</strong> perfeita, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a economianecessária, on<strong>de</strong> cada coisa tem <strong>um</strong> valor e entretanto, se engolfa e se dissimula natotalida<strong>de</strong>. Nada que estale, bambeie, <strong>de</strong>scaia, <strong>de</strong>scole, <strong>de</strong>scontinue; <strong>um</strong> admirávelconcerto <strong>de</strong> transições e transformações simultâneas e sucessivas. O jogo dasmassas e dos contornos per<strong>de</strong>-se fluidicamente em si mesmo. Cada imagem21


www.nead.unama.bremerge da prece<strong>de</strong>nte como n<strong>um</strong>a espiral <strong>de</strong> f<strong>um</strong>o, dissolve-se na seguinte comon<strong>um</strong> caleidoscópio sem recortes e sem chocalho. Tudo facilida<strong>de</strong>, afinação, fusão,correnteza, equilíbrio, tudo aquela suprema simplicida<strong>de</strong> que é o nome familiar dacomplexida<strong>de</strong> infinita na perfeição.Bem, mas porque foi que eu cometi esse erro? Porque estava possesso <strong>de</strong>Rufina. A imagem da moça do bon<strong>de</strong> se interpunha entre mim e os bichos, o som dasua voz golpeava cada momento a membrana fragílima das minhas idéias, os seusgestos rápidos rebentavam a todo instante o meu colar <strong>de</strong> miçangas. Embal<strong>de</strong> euprotestava que ela era mais feia do que o elefante, menos perfeita do que <strong>um</strong>aleitoa. Embal<strong>de</strong> eu procurava esquecer, embrenhar-me no meu produto como aaranha no seu, embriagar-me com esses pensamentos <strong>de</strong> luxo, suspen<strong>de</strong>r-me aessas teias, atar as minhas arrobas ao vôo <strong>de</strong>ssas borboletas extraterrenas. E, naverda<strong>de</strong>, nem agora consigo exconjurar aquele <strong>de</strong>mônio.UM ROMANCEEntre os passageiros com os quais freqüentemente me encontro, pela manhã,há <strong>um</strong>a bonita mulata, não <strong>de</strong> olhar azougado, mas calmo e <strong>um</strong> pouco triste. Ocondutor c<strong>um</strong>primenta-a com respeito, e trocam notícias <strong>de</strong> família. Veste-se com<strong>de</strong>cência e modéstia. Sobe e salta sem ruído, instala-se no seu canto e não se mexe.Tem as mãos lisas e mórbidas, os <strong>de</strong>dos compridos e afusados; as unhas ogivaisparecem recortadas em porcelana. Usa saias pouco acima dos tornozelos. Os pés,pequenos e arqueados, comprimidos em botins <strong>de</strong> couro, sob a massa movediça dassaias, têm <strong>um</strong>a graça hesitante <strong>de</strong> pássaros timoratos. Será o pudor dos botins?Essa criatura acabou por me interessar. A freqüência das suas viagens, aconstância dos seus modos, a sua beleza <strong>um</strong> tanto fanada, o seu donaireinvoluntário <strong>de</strong> juriti meio <strong>de</strong>spl<strong>um</strong>ada e taciturna, a sua familiarida<strong>de</strong> familiar com ocondutor, enfim o contraste entre o abafado concerto da sua pessoa e as mulheresbrancas e chiques <strong>de</strong> braços e pernas ao léu, tudo me intrigava. A custo obtive <strong>um</strong>asinformações vagas. Ontem, finalmente, encontrando-me com o prático <strong>de</strong> farmácia,o homem do Infinito, ouvi <strong>de</strong>le a informação cabal."Pois não a conhece? Não conhece, <strong>de</strong>veras, a Florinda?" — Contou-metoda a história <strong>de</strong> Florinda, a mesma história <strong>de</strong> tantas outras, tantas outrasFlorindas, e finalizou: "Hoje, <strong>um</strong>a senhora. E ainda bonita, não viu? Costura fora <strong>de</strong>casa. É companheira <strong>de</strong> <strong>um</strong> empregado aposentado dos correios, <strong>um</strong> casca, velho,re<strong>um</strong>ático, bravo como <strong>um</strong> gato sarnento. Serve-lhe <strong>de</strong> irmã <strong>de</strong> carida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>cozinheira, <strong>de</strong> mãe e <strong>de</strong> filha. E até <strong>de</strong> armazém <strong>de</strong> pancadas."É aquilo <strong>de</strong> Amiel: Pas <strong>um</strong> brin d'herbe qui n'ait une histoire à raconter, pasun coeur qui n'ait son roman..., que é aquilo mesmo <strong>de</strong> Emerson: "Todo indivíduotem <strong>um</strong>a história que valeria a pena conhecer, se ele pu<strong>de</strong>sse contá-la, ou se nóslha pudéssemos arrancar". — Cada <strong>um</strong> carrega em si <strong>um</strong> epítome do dramah<strong>um</strong>anal, tecido <strong>de</strong> trevas e <strong>de</strong> l<strong>um</strong>es. E cada <strong>um</strong> nos dá <strong>um</strong>a sensação <strong>de</strong>h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong> imensa, como cada onda po<strong>de</strong> dar a vertigem do abismo.LENÇO PERDIDOQuando eu acabava <strong>de</strong> saltar do bon<strong>de</strong>, esta manhã, ouvi atrás <strong>de</strong> mim <strong>um</strong>pchiu! Voltei-me, e <strong>um</strong> passageiro, homem do povo, esticando o braço até no meioda rua, me apresentou <strong>um</strong> lenço que ficara no banco. Apalpei os bolsos, não mefaltava lenço nenh<strong>um</strong>. Tive pena <strong>de</strong> que o objeto não me pertencesse, porque22


www.nead.unama.brpareceu-me que sem isso o meu agra<strong>de</strong>cimento não encaixaria perfeitamente com aamabilida<strong>de</strong> do homem. Por <strong>um</strong> instante, pensei em aceitar o lenço, mas prevaleceuo austero <strong>de</strong>ver, tirei o chapéu, agra<strong>de</strong>ci, e fui-me. O homem ainda me pediu<strong>de</strong>sculpa e ficou a olhar em redor, a ver se aparecia o legítimo dono.Segui o meu caminho a fruir esta agradável impressão — que ainda hámuito sentimento sadio e cordial por este mundo! A honestida<strong>de</strong> do ato, valha averda<strong>de</strong>, não era gran<strong>de</strong>. Os objetos transviados são quase sempre restituídos,quando <strong>de</strong> pouco importância. Mas a galantaria do gesto! Linda coisa, a galantaria.A honestida<strong>de</strong>, afinal, é <strong>um</strong>a obrigação. Tem <strong>um</strong> princípio passivo. É <strong>um</strong>a astúcia doegoísmo socializado, que evolveu para virtu<strong>de</strong>, como o réptil se fez pato. Mas agalantaria é soberana: impulso livre, ação <strong>de</strong> luxo e primor, dom incompulsório,fantasia espontânea do coração, scherzzo garboso e supérfluo da vonta<strong>de</strong> senhora<strong>de</strong> si mesma. — O excesso da medida justa vale a medida inteira.Ia eu a pensar estas coisas aprazíveis, n<strong>um</strong> passo vagaroso <strong>de</strong> quem vê quecarrega borboletas no ombro ou no chapéu e não quer afugentá-las. Ao entrar n<strong>um</strong>café, <strong>de</strong>i com o homem do lenço na minha frente. Notei que tinha o nariz vermelho.Sorriu-se, <strong>de</strong>scobriu-se e, inclinando a cabeça para <strong>um</strong> lado: — "Seu doutor, não temaí uns nicolaus que lhe sobrem, para eu tomar <strong>um</strong> pingado?" Dei-lhe os nicolaus.CANUDO-DE-PITOA manhã, hoje, era <strong>um</strong>a festa, e o meu bairro, todo em manchas aéreas efrescas <strong>de</strong> pare<strong>de</strong>s claras, telhados vermelhos, jardins ver<strong>de</strong>s, morros azulegos evioláceos a <strong>de</strong>rreterem-se na distância como caramelos, me divertia como <strong>um</strong>apaisagem refletida n<strong>um</strong>a bola <strong>de</strong> cristal. Eu não tinha senão olhos, enquanto obon<strong>de</strong> corria. "Corre mais <strong>de</strong>vagar, bon<strong>de</strong> do diabo! Que assim como vais se meatrapalha tudo. — Corre mais <strong>de</strong>pressa, bon<strong>de</strong> do inferno! Que assim lentamente a<strong>de</strong>sfilada das coisas mal se liberta da rigi<strong>de</strong>z e do peso."De repente, do meio da gran<strong>de</strong> nuvem escura <strong>de</strong> <strong>um</strong> velho bosque, saltoucomo <strong>de</strong> <strong>um</strong> capulho, <strong>um</strong>a nuvem amarela, a fron<strong>de</strong> arredondada <strong>de</strong> <strong>um</strong>a árvore <strong>de</strong>ouro. "Olhe, que lindo! "(disse eu ao meu vizinho mais chegado, o Sr. João Cesárioda Costa, capitalista, quarenta e oito anos). "Veja aquele ipê!" O meu vizinho <strong>de</strong>u<strong>um</strong>a olha<strong>de</strong>la e informou friamente: "Canudo-<strong>de</strong>-pito".O fato <strong>de</strong> se tratar <strong>de</strong> <strong>um</strong> canudo-<strong>de</strong>-pito, e não <strong>de</strong> ipê, ma<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> lei, influía<strong>de</strong>cisivamente na reação da sua sensibilida<strong>de</strong> ante aquele quadro fugente ealucinatório. O mundo, para ele, reduziu-se a <strong>um</strong>a coleção <strong>de</strong> conceitos, ou a <strong>um</strong>dicionário ilustrado. Costa não foi composto para comunicar diretamente com ascoisas, no absoluto momentâneo e original da sensação, nesse largo esurpreen<strong>de</strong>nte aquém da idéia e do pensamento, mais maravilhoso e menos tristedo que o Além por on<strong>de</strong> vagam os Fabianos.A civilização cada vez mais afasta os homens do contato imediato eregenerativo das coisas sensíveis. Só as enxergam <strong>de</strong> longe e <strong>de</strong> viés, através dostipos, mo<strong>de</strong>los, noções, <strong>de</strong>finições, poeira br<strong>um</strong>osa <strong>de</strong> abstração, sob a qual aintimida<strong>de</strong> fluente e jovial do mundo se <strong>de</strong>svanece, e a alma encantada da criaçãofoge como <strong>um</strong> Ariel zombeteiro. Diante <strong>de</strong> <strong>um</strong>a paisagem, não vêem a paisagem, mas<strong>um</strong>a coleção <strong>de</strong> objetos e <strong>de</strong> efeitos conhecidos e explicados, formando <strong>um</strong> conjuntovisual <strong>de</strong> acordo com meia dúzia <strong>de</strong> normas laboriosas. Diante <strong>de</strong> <strong>um</strong> ser vivo,<strong>de</strong>sarticulam as partes, (como se <strong>um</strong> ser vivo, como se as coisas tivessem narealida<strong>de</strong> partes) examinam, me<strong>de</strong>m, subdivi<strong>de</strong>m, espedaçam, e cada ato <strong>de</strong>sses<strong>de</strong>corre <strong>de</strong> <strong>um</strong>a idéia feita, <strong>de</strong> <strong>um</strong> critério preconcebido, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a prefiguração23


www.nead.unama.brnormativa, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a série <strong>de</strong> operações mentais anteriores ou presentes. A gran<strong>de</strong><strong>de</strong>scoberta instantânea tornou-se impossível. O <strong>de</strong>licioso milagre só se revela a quemconfia, franciscanamente, na l<strong>um</strong>inosa estupi<strong>de</strong>z do seu instinto e dos seus sentidos,e ingenuamente se lhes abandona, como o pássaro se <strong>de</strong>ixa librar nas suas asas.Por isso, <strong>um</strong> imenso repositório <strong>de</strong> beleza jaz inexplorado e ignorado nomundo e na vida. Quanta mulher feia por <strong>de</strong>finição não é por natureza <strong>um</strong>a coisaformosa! Quanto rosto irregular, escabroso, macilento, não guarda, <strong>um</strong> poucochinhomais além <strong>de</strong>sses aci<strong>de</strong>ntes, dissimulado como <strong>um</strong> seixo branco no fundo <strong>de</strong> <strong>um</strong> rio,<strong>um</strong>a harmoniosa, surpreen<strong>de</strong>nte disposição fundamental <strong>de</strong> linhas, <strong>de</strong> relevos e <strong>de</strong>contornos! E a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> beleza que não se vê porque o objeto em si mesmo é<strong>de</strong>sprezível ou repugnante! Um charco é <strong>um</strong>a imagem intelectual e oratória <strong>de</strong>dissolução, <strong>de</strong> paralisia, <strong>de</strong> morte, <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência; é <strong>um</strong> foco pestilento, <strong>um</strong>a chagaaberta na terra, tapada <strong>de</strong> moscas, <strong>de</strong> vermes, <strong>de</strong> batráquios: <strong>um</strong> horror "porconseqüência". Uma cobra — puh! Medonha! Entretanto, olhemos para isso tudocomo <strong>um</strong>a criança, com a atenção e a curiosida<strong>de</strong> nuas <strong>de</strong> <strong>um</strong>a criança que nãoconhece nada, não sabe nada, não teme nada. O charco talvez nos apareça, cheio <strong>de</strong>azul, como <strong>um</strong> buraco da terra sobre <strong>um</strong> abismo sem fundo, todo lavado <strong>de</strong> clarida<strong>de</strong>e povoado <strong>de</strong> n<strong>um</strong>es joviais. A superfície da água, aqui lisa, ali borbulhante, além complacas e refegos <strong>de</strong> nateiro grosso, ora arrepiada pelo vento, ora quebrada por <strong>um</strong>bicho que se mexeu, toda betada <strong>de</strong> sombras movediças e <strong>de</strong> reflexos morrentes,golpeantes, explosivos, filiformes, maculares, difusos, — como se andasse ali adissolver-se <strong>um</strong>a taxada <strong>de</strong> l<strong>um</strong>inosida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> negruras e <strong>de</strong> cores, po<strong>de</strong> ser <strong>um</strong>retalho fresco e maravilhoso <strong>de</strong> beleza arrancado ao monturo da realida<strong>de</strong> intelectiva.A cobra, essa é positivamente <strong>um</strong> objeto encantador. Vê-la enrodilhar-se éapreen<strong>de</strong>r a niti<strong>de</strong>z perfeita da imagem, aliada quase paradoxalmente à cambiantecontínua. Vê-la caminhar é ter a impressão <strong>de</strong> <strong>um</strong> liquido que se solidificouconservando a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> escorrer.Vai tão sutil e estreitamente adaptada aos altos e baixos do terreno, que sediria que a cobra não existe, é <strong>um</strong> simples movimento ondulatório do solo, <strong>um</strong>fragmento uniforme <strong>de</strong> sismo, <strong>um</strong>a estilha perdida e <strong>de</strong>slizante <strong>de</strong> terremoto. Essecorpo sem membros parece também não ter ossos, e apenas se percebe que éformado <strong>de</strong> anéis ou forma anéis à medida que se move, e que esses anéis se<strong>de</strong>smancham, mal se <strong>de</strong>senharam em outros que vão <strong>de</strong>svanecer-se <strong>de</strong> igualmaneira: <strong>um</strong> <strong>de</strong>vaneio maluco objetivado.É <strong>um</strong> pau que se fez cipó e <strong>um</strong> cipó que parece querer voltar aos enlaces eaos balanços com as ramas. Irritado, arroja o bote com a fulminante rapi<strong>de</strong>z e afatalida<strong>de</strong> mecânica <strong>de</strong> <strong>um</strong> galho seco atirado pela raiva súbita da rajada. Como setivesse barbatanas e asas invisíveis, bóia, nada, voa pela superfície da terra, e,quando se diria que lhe vai fugir, mergulha por ela <strong>de</strong>ntro.Vejamo-la em repouso: é <strong>um</strong>a obra esquisita <strong>de</strong> tapeçaria, com <strong>de</strong>senhostão bem arabescados e cores tão bem distribuídas, que os nossos olhos seespreguiçam como ela e, como ela o nosso prazer se enrodilha e se esquece nassuas próprias roscas, e sonha.Disse Boileau, sentenciosamente, como sempre:Il n'est pas <strong>de</strong> serpent ni <strong>de</strong> monstre odjeur,Qui, par l'art imité, ne puísse plaire aux yeux,— mas quais são os monstros odiosos para os meus olhos? Não têm ódios nemamores. Tudo é natureza, tudo é espetáculo, tudo é necessário, tudo é expressão damultiplicida<strong>de</strong> sem fim na unida<strong>de</strong> substancial do infinito mistério e da infinita beleza.24


www.nead.unama.brNo meio <strong>de</strong>sse infinito, que nos cerca, nos trespassa, nos convida, vivemos<strong>um</strong> tanto à maneira daqueles dormentes estatelados nas ruas, nos palácios, nospátios, nos jardins, nos mercados, nos templos e nos bosques do conto oriental.Príncipes, vizires, xeques, mercadores, ganhões, — todos alheios à magia doespetáculo colorido e móbil do mundo, eles próprios mero espetáculo para os olhos<strong>de</strong> <strong>um</strong> triste fugitivo e da sua amorosa e assustada companheira.RUFINASe eu fosse Rufina, hoje recostado no banco do bon<strong>de</strong>, enquanto <strong>um</strong> cé<strong>um</strong>uito lavado se arqueava sobre todas as coisas, e <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> amor eventura abrolhava nas almas, que teria feito? Teria pensado naquele passageiro<strong>de</strong>sconhecido que me arrancara aos braços da morte; ter-me-ia lembrado cominfinito carinho daquele homem tão corajoso e tão tímido, e teria refletido que porforça ele <strong>de</strong>via ter <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> coração e <strong>um</strong>a alma adolescente.Pensaria, outrossim, que ele provavelmente era solteirão, pois os homenscasados não são assim tão solícitos, ou pelo menos tão tímidos com as damas.Pensaria que ele <strong>de</strong>via viver só e melancólico, habitando <strong>um</strong>a pensão inóspita, ou<strong>um</strong>a casa <strong>de</strong> família on<strong>de</strong> ansiasse ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong>s e ternuras que não erampara ele. E tanta coisa mais!Entretanto, quem sabe lá o que Rufina àquela hora pensaria! Pensarianalg<strong>um</strong> namorado vulgar, suavemente grosseiro e agradavelmente chato. Ou talvezestivesse com ele, mãos nas mãos, olhos nos olhos. Esta idéia me perturba e me<strong>de</strong>salenta. Aquela mão rósea e mole ficaria tão bem na minha, ossuda e pilosa!Aquele braço torneado encaixaria tão <strong>de</strong>liciosamente ao redor do meu pescoço! Eeu me sentiria tão ufano e pacificado, como <strong>um</strong> gato no borralho, ao calor do seucorpo e do seu coração! Po<strong>de</strong>ríamos estar aqui juntos, ela bordando tranqüilamente<strong>um</strong> pano <strong>de</strong> mesa, <strong>um</strong>a almofada, ou lá o que lhe <strong>de</strong>sse, e eu, quieto, a estasecretária, bordando as notas felizes <strong>de</strong> <strong>um</strong> memorial <strong>de</strong> venturas brandas, ainterrompê-lo <strong>de</strong> quando em quando para dar <strong>um</strong> ósculo à minha gata.Mas aquela pestinha é lá capaz <strong>de</strong> sonhar por esta mesma partitura!LOUVA-A-DEUSTivemos hoje, à ida, <strong>um</strong> inesperado companheiro <strong>de</strong> viagem. Não seiquando nem como se aboletou no carro; só foi notado ao levantar o vôo do chapéu<strong>de</strong> <strong>um</strong> cavalheiro velho para ir pousar no seio <strong>de</strong> <strong>um</strong>a senhora gorda, copiando aabelha da pequena o<strong>de</strong> <strong>de</strong> Anacreonte. A senhora gorda enxotou-o, n<strong>um</strong> gesto <strong>de</strong>susto muito gracioso, como convinha ao sexo. O bicharoco, executando <strong>um</strong> rápidovôo plané, foi aterrar no ombro <strong>de</strong> <strong>um</strong> rapaz elegante. Este se apresentava para lhe<strong>de</strong>sfechar <strong>um</strong> tiro com o <strong>de</strong>do médio armado em aríete, quando ele se passou paraas costas <strong>de</strong> <strong>um</strong> homem distraído, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ixou e o <strong>de</strong>ixaram ficar.Uma vaga <strong>de</strong> hilarida<strong>de</strong> <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou-se no bon<strong>de</strong> ao toque das asasdaquele forasteiro. Todos lhe acompanhavam as evoluções com sorrisos. E algunsmanifestavam na cara <strong>um</strong>a curiosida<strong>de</strong> lorpa, como se estivessem diante <strong>de</strong> <strong>um</strong>invento completamente novo. Porque essa hilarida<strong>de</strong>? Problema complicado eescuro. Lembro-me <strong>de</strong> Bergson, mas não vejo como aplicar ao caso a sua teoria.Até nova or<strong>de</strong>m, penso que o riso proveio apenas <strong>de</strong> que o bon<strong>de</strong> não é veículopara passageiros <strong>de</strong>ssa classe; <strong>de</strong> que o lugar habitual on<strong>de</strong> imaginamos o louva-a<strong>de</strong>usnão é o bon<strong>de</strong>, não as ruas la<strong>de</strong>adas <strong>de</strong> prédios, calçadas <strong>de</strong> pedras,25


www.nead.unama.bratravancadas <strong>de</strong> carruagem e caminhões, riscadas <strong>de</strong> fios <strong>de</strong> metal e pontas <strong>de</strong>cimento, — e <strong>de</strong> que os passageiros sentiam, ou melhor, não sentiam, mas tinhamnecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar ver uns aos outros a impressão <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconcerto ou<strong>de</strong>sconveniência que o transviado lhes produzia.De fato, a mecânica do riso assenta no irreprimível instinto <strong>de</strong> comunicaçãopróprio do homem. Como o pranto, o riso é <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> linguagem, em gran<strong>de</strong>parte inconsciente, <strong>de</strong>stinada a comunicar o incomunicável, a exprimir oinexprimível, o que não se po<strong>de</strong>, não se sabe, não se quer ou não se pensa exprimirpor palavras ou por gestos que lhes eqüivalham. (Se é certo que rimos e choramos asós, também é certo que falamos conosco mesmos — e todo pensamento é diálogointerior — sem que por isso possa negar-se o caráter eminentemente, social dalinguagem articulada, cujas origens supõem fatalmente troca, relação entreindivíduos, fixação coletiva <strong>de</strong> sinais sonoros). A mímica do pranto e do riso nasceuprovavelmente da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se solidarizarem e coligarem os ânimos, na hordaprimeva diante do perigo, da contrarieda<strong>de</strong> ou do benefício com<strong>um</strong> que iamencontrando pela frente. Seria <strong>um</strong> elemento <strong>de</strong> coesão sublimável. Uma circulaçãorápida <strong>de</strong> psiquismo coletivo. Com o tempo, isso se teria refletido e entranhado noindivíduo, até ass<strong>um</strong>ir <strong>um</strong>a sorte <strong>de</strong> vida inferior, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Mas a inconsciênciado seu mecanismo interindividual aí está para lhe atestar as origens gregárias.—Somos ovelhas que se vão apenas <strong>de</strong>stacando do rebanho por ligeiras diferenças<strong>de</strong> pêlo, <strong>de</strong> dimensões ou <strong>de</strong> andadura; mas a alma da ovelha pertence mais aorebanho do que a ela própria.E se tudo isto estiver errado? Não importa. Para <strong>um</strong> simples passageiro <strong>de</strong>bon<strong>de</strong>, as idéias são como os bilhetes <strong>de</strong> loterias: é preciso jogar em muitas, parater probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acertar em alg<strong>um</strong>a. E ainda o melhor é não acertar. Criar fama<strong>de</strong> rico é <strong>um</strong>a das mais graves maçadas que possam cair sobre quem não necessite<strong>de</strong> tanto n<strong>um</strong>erário. Responsabilida<strong>de</strong> social muito pesada. Admiradores.Compromissos. Facadas, amabilida<strong>de</strong>s, invejas, intrigas, amofinações... Que bomtravesseiro, a pobreza!A mim, o que me fez sorrir diante do louva-a-<strong>de</strong>us foi o riso dos outros, tãosaudavelmente natural e estúpido. E foi também o próprio louva-a-<strong>de</strong>us, natural ebobo como esse riso.O louva-a-<strong>de</strong>us é talvez <strong>um</strong> simples broto que <strong>de</strong> repente se animou, mexeuas suas folhazinhas tenras mal transformadas em asas, saltou, olhou o mundo emtorno com os dois olhitos esbugalhados que se lhe acabavam <strong>de</strong> pôr — e esqueceusedo papel que vinha representar. Todo trangalhadanças e todo in<strong>de</strong>ciso, na suairrepreensível casaquinha ver<strong>de</strong>, é como <strong>um</strong> mascarado tanto que não tem coragem<strong>de</strong> ir ao baile nem sabe se há <strong>de</strong> voltar para casa, e fica a estatelar-se macambúziopelas esquinas.Desconfio agora que o louva-a-<strong>de</strong>us talvez fosse <strong>um</strong> broche que <strong>um</strong> artistaprimitivo, das cavernas ou das palafitas, mo<strong>de</strong>lasse, — no barro ver<strong>de</strong>ngo <strong>de</strong> alg<strong>um</strong>açu<strong>de</strong>, dando-lhe, por inabilida<strong>de</strong> e por fantasia, <strong>um</strong>a feição <strong>de</strong> monstro quimérico egrotesco. Um dia, a senhora Natureza, n<strong>um</strong> momento <strong>de</strong> nervos, confundindo-o comos seus mo<strong>de</strong>los infelizes e inacabáveis ter-lhe-ia comunicado o sopro da vida,lançando-o fora; "Enfim! S<strong>um</strong>e-te, diabo!"Outra hipótese. Esse e, com esse, muitos bicharocos parecem ter sidoproduzidos pela artífice quando ela ainda não podia <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r a imaginação dosliames do concreto. A minhoca teria sido tirada <strong>de</strong> <strong>um</strong>a raiz <strong>de</strong> tubérculo. A serpente,<strong>de</strong> <strong>um</strong>a haste <strong>de</strong> foraminífera. O besouro foi talvez copiado <strong>de</strong> <strong>um</strong> caroço <strong>de</strong>mamona. O elefante originar-se-ia <strong>de</strong> <strong>um</strong>a pedra viajada, do período glaciário, quer26


www.nead.unama.brpor acaso se tivesse vindo suster em cima <strong>de</strong> outras pedras menores e espaçadas.O lagarto, <strong>de</strong> <strong>um</strong> estilhaço <strong>de</strong> pau nodoso rachado pelo raio. Os peixes não teriamvindo da sugestão <strong>de</strong> <strong>um</strong> card<strong>um</strong>e <strong>de</strong> folhas polpudas caídas <strong>de</strong> grossas plantasaquáticas? E o morcego? O morcego foi <strong>de</strong> certo imitado <strong>de</strong> <strong>um</strong> pequeno guardachuvaesfrangalhado pelo vento. (Contudo, não estou seguro da existência préhistóricado guarda-chuva).Só <strong>de</strong>pois, muito <strong>de</strong>pois, a Artista se libertou das formas anteriores para asinventar novas e mais perfeitas — o galo, esse objeto <strong>de</strong> luxo, o cisne, esse sonho<strong>de</strong> paz e perfeição, o gato, essa pequena mistura <strong>de</strong> inocência e <strong>de</strong> malignida<strong>de</strong>, amulher... Ai, a mulher! Complexa obra <strong>de</strong> fantasia terna, cruel e h<strong>um</strong>orística: cisne,galinhola e gata. Rufina, meu amor, eu adivinho que tu és isso tudo!Tive também <strong>um</strong> acesso <strong>de</strong> ternura pelo coitado do meu louva-a-<strong>de</strong>us,perdido entre paralelepípedos e almas, na cida<strong>de</strong> poeirenta e dura, longe do fluidoverdor fresco das moitas e dos aguaçais. E lembrei-me do meu tempo <strong>de</strong> menino, lámuito longe (muito longe, muito longe, n<strong>um</strong> outro mundo que já nem sei se existe!),on<strong>de</strong> o louva-a-<strong>de</strong>us se conhecia por cavalinho <strong>de</strong> Nosso Senhor e on<strong>de</strong> me divertiacom outros pequenos a caçá-lo, para o ver fazer a sua oração <strong>de</strong> mãos postas epara lhe amarrar <strong>um</strong> cor<strong>de</strong>linho a <strong>um</strong>a das patas traseiras.Vi os agros lavrados, gran<strong>de</strong>s remendos postos ao manto das lombas, comestrias roxas <strong>de</strong> terra e bordados ver<strong>de</strong>s <strong>de</strong> planta nova. Vi a vegetação mole e tufadados grotões por on<strong>de</strong> a água corria e ofegava, como rapariga surpreendida nua. Vi oempastamento violáceo-azul-f<strong>um</strong>aça dos morros distantes. Vi o risco sangrento docaminho velho através da solidão virgiliana dos pastios. Senti o cheiro salubre dasmacegas. Ouvi ranger a velha porteira pesada e pensa, ao pé do valo esboroado,entupido <strong>de</strong> gravatás, à sombra do pau-d'alho fechado e baixo como <strong>um</strong>a cabanatriste. Ouvi ecos errantes <strong>de</strong> vozes grossas a chamarem pelo gado, <strong>de</strong> cantigas <strong>de</strong>lava<strong>de</strong>iras no córrego, do jorro da bica a referver no esqueleto negro da roda <strong>de</strong> água.E havia no meio <strong>de</strong> tudo isso, ainda mais distante, mais real e mais irreal, mais vivo emais sonhado, <strong>um</strong> toque fremente e forte <strong>de</strong> buzina <strong>de</strong> caça, lá pelas barrocas e peloscerrados <strong>de</strong>sertos, <strong>um</strong> toque ululante; ansioso, resoluto, que estraçalhava o silênciocom ímpetos heróicos e melancólicos, <strong>de</strong> <strong>de</strong>safio e <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>.Traspassou-me a alma hereditária <strong>de</strong> lavrador <strong>de</strong>senraizado <strong>um</strong> sentimentoagudo <strong>de</strong> solidão e <strong>de</strong> incomunicabilida<strong>de</strong>, e fiquei a olhar para o louva-a-<strong>de</strong>us naânsia com que alguém, perdido em terra estrangeira, se poria a amar <strong>de</strong> longe <strong>um</strong>compatriota com quem houvesse topado por acaso. (Assim as nossas ternuras vêmsempre acabar em nós mesmos. Aí, senhor duque <strong>de</strong> la Rochefoucauld!)Viajava a meu lado <strong>um</strong> moço atochado <strong>de</strong> conhecimentos exatos. Disse-me,com certa indignação, que o louva-a-<strong>de</strong>us, mante réligieuse, é <strong>um</strong> dos seres maissinistros da criação viva: a fêmea tem o in<strong>de</strong>licado cost<strong>um</strong>e <strong>de</strong> <strong>de</strong>vorar o incautoesposo logo no festim <strong>de</strong> bodas (ao contrário portanto <strong>de</strong> outras que comem os seusaos bocadinhos, a vida inteira).Eu já sabia disso pelos Souvenirs do Fabre; mas o moço tinha prazer em meinstruir, e eu não lhe quis aguar essa satisfação não <strong>de</strong> todo inocente, mas tolerável.Não lha tolerei por generosida<strong>de</strong>, mas porque não queria jogar com ele a cena dosdois pedantes que se travam <strong>de</strong> sabenças.Tenho pavor a essa espécie <strong>de</strong> gente, (aliás estimável, posto que daninha) aessa espécie <strong>de</strong> gente que vive a verter sabi<strong>de</strong>las <strong>de</strong>coradas por todas as juntas,como pipotes <strong>de</strong> melado em que não se po<strong>de</strong> pôr o <strong>de</strong>do sem sentir o pegajoso dasescorrências. São sucursais vivas da tipografia. São jornais parlantes, cheios <strong>de</strong>reportagens, <strong>de</strong> ciência feita, mas sem artigos <strong>de</strong> fundo e sem rodapés literários. A27


www.nead.unama.brciência, para eles, é o refugi<strong>um</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se reconheceram anêmicos <strong>de</strong> bomsenso, <strong>de</strong> imaginação, <strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong> e privados <strong>de</strong>ssa divina capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>simpatia cósmica, que faz as almas verdad.... Mas não vale a pena repetir Nietzsche.SANFONATivemos hoje concerto <strong>de</strong> sanfona durante a viagem da tar<strong>de</strong>. O homemtocava bem, e tocava <strong>de</strong> tudo.Amo <strong>de</strong> coração estes artistas h<strong>um</strong>il<strong>de</strong>s, que têm a paixão da arte, com omínimo possível <strong>de</strong> cálculo, ou sem nenh<strong>um</strong>. São, na sua imperfeição, mais artistasdo que muitos outros mais hábeis, mais cultos, mais refinados: não procuram na artesenão o seu prazer— sem pensar em proveitos; e exercem-na com a simplicida<strong>de</strong> ea inocência <strong>de</strong> quem pratica os atos mais ordinários da vida. Dão generosamente eanonimamente o que têm, o bom e o mau, o certo e o errado, sem presunção e semtorturas, e vão seguindo o seu caminho. Quem gostar, goste à vonta<strong>de</strong>; quem nãogostar, perdoe; e, se não quiser perdoar, é o mesmo. Que boa, alegre e higiênicamaneira <strong>de</strong> ser artista! Durante vinte minutos, o homenzinho da sanfona foi o únicoque veio <strong>de</strong>itar <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong> alegria purificadora na alma fechada e amarrotada <strong>de</strong>quarenta e tantos passageiros.Pela minha parte, Deus lhe pague, frater <strong>de</strong>sconhecido!EMBRIAGUEZViajou hoje no bon<strong>de</strong> <strong>um</strong> homem embriagado, meio dormindo. Quandochegamos ao ponto, no centro, todos <strong>de</strong>scemos, e ele ficou. O condutor foi interrogálo,ver porque não <strong>de</strong>scia. Sacudiu-o. "Ó amigo, já chegamos! Ó amigo..." O bêbedoabriu <strong>um</strong> olho, ergueu a cabeça, e <strong>de</strong>ixou-a tombar <strong>de</strong> novo sobre o peito. "Ó amigo!Então não <strong>de</strong>sce? Ó amigo..." O ébrio tornou a abrir <strong>um</strong> olho, fixou-o no condutor, emurmurou: "Toca o bon<strong>de</strong>." — "Mas olhe que tem <strong>de</strong> pagar outra passagem! Ócidadão! Está ouvindo? Tem <strong>de</strong> pagar outra passagem!" — "Sim!" berrou o homem."Sim! Eu pago outra passagem! Toque essa porcaria! Siga! Eu pago quanto vocêquiser. Olhe, tome!" E esten<strong>de</strong>u ao condutor <strong>um</strong>a prata <strong>de</strong> <strong>de</strong>z tostões.Quando o condutor lhe restituía o troco, o beberrão, já manso, fez <strong>um</strong> gestotrêmulo <strong>de</strong> repulsa amigável. "Guar<strong>de</strong> para você, guar<strong>de</strong> lá... Ouviu? Mas olhe aqui,condutor, man<strong>de</strong> tocar mais <strong>de</strong>vagar nas curvas... Sim? É só o que eu lhe peço.Mais <strong>de</strong>vagarinho nas curvas!" E o ébrio recostou-se, acomodou-se, cruzou as mãossobre os joelhos e fechou os olhos, como se estivesse na mais fofa poltrona,<strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> <strong>um</strong> teto amigo.Explicou então o condutor porque é que ele queria menos rapi<strong>de</strong>z nascurvas: é que já havia levado <strong>um</strong> meio trambolhão do bon<strong>de</strong> abaixo, n<strong>um</strong>a <strong>de</strong>las.Assistiam à cena <strong>de</strong>z ou doze curiosos, que muito se divertiram. Nunca há maiordivertimento do que ver <strong>um</strong> homem em situação <strong>de</strong>gradante, e "risível", que por via<strong>de</strong> regra é risível porque seria própria para entristecer.E porque o estado <strong>de</strong> bebe<strong>de</strong>ira é <strong>de</strong>gradante? Já sei: é pela mesma razãopor que é risível, é que diminui o homem ex abrupto, o reduz à condição <strong>de</strong>autômato, <strong>de</strong> <strong>um</strong> autômato e amarfanhado. Mas há tanto outro gênero <strong>de</strong>embriaguez que passa como se não fosse <strong>de</strong>gradante nem ridículo! Por que?Os efeitos são os mesmos: <strong>um</strong> homem sem a posse completa <strong>de</strong> si próprio,sem sequer essa espécie <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> animal que consiste na harmoniaespontânea dos movimentos com as "finalida<strong>de</strong>s" naturais, da estrutura; <strong>um</strong> homem28


www.nead.unama.brque se torna inconveniente ou se torna perigoso, que tem <strong>de</strong> ser aturado nas suasimportunações, ou carregado como <strong>um</strong>a coisa, ou conduzido como <strong>um</strong> animal, ouque extravasa, dá escândalo e faz <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m.Há a bebe<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> morfina, éter e similares, e das paixões políticas,profissionais e confessionais, a da ambição doentia, a do exibicionismo patológico;há a embriaguez mo<strong>de</strong>rna da ativida<strong>de</strong> exacerbada, que, como todas, enfuria,<strong>de</strong>sfalca, mecaniza e <strong>de</strong>forma a natureza do homem. E há a embriaguez dasensualida<strong>de</strong> que se <strong>de</strong>sdobra nesta epi<strong>de</strong>mia universal <strong>de</strong> ostentação, <strong>de</strong> festas e<strong>de</strong> fantochismo dançante. E há a embriaguez do automóvel, embriaguez típica.O paciente começa por tomá-lo aos poucos, e às vezes arrenega, às vezesduvida entre si se é bom ou se não será. Mas volta, e prova mais <strong>um</strong>a vez, maisoutra, e mais outra, a<strong>um</strong>entando as doses. Para encurtar, não tarda que seja <strong>um</strong>viciado. Torna-se <strong>um</strong> automobilimaníaco. Anda quase constantementeautomobiliagado, com períodos lúcidos <strong>de</strong> mais em mais breves, em que trata <strong>de</strong>seus negócios e participa da vida íntima <strong>de</strong> sua família.Quando está em crise, empali<strong>de</strong>ce, enrija-se, tem os olhos parados, o lábio<strong>de</strong>scaído e branco. A pequena velocida<strong>de</strong> é a fase alegre e brincalhona: elepirueteia, ziguezagueia, faz gracinhas com a máquina, assusta o transeunte pacífico,dirige pilhérias aos guardas. A velocida<strong>de</strong> média é a fase da provocação e do "leve odiabo". A velocida<strong>de</strong> máxima média é o estado <strong>de</strong>lirante: a consciência acaba <strong>de</strong><strong>de</strong>saparecer, <strong>de</strong>saparece tudo, ou tudo se reduz a <strong>um</strong> sonho agônico, em que apersonalida<strong>de</strong> tem a abafada impressão <strong>de</strong> se libertar das prisões materiais e voarno vento e na luz.Embriaguez <strong>de</strong>testável como qualquer outra. Mais do que qualquer outraproduz vítimas, que não são unicamente os enfermos, conforme todos os diasrevelam as crônicas. E, como muitas outras, <strong>de</strong>ixa suas heranças à <strong>de</strong>scendência.Entretanto, não se cogita <strong>de</strong> <strong>um</strong>a lei seca para esse flagelo.A verda<strong>de</strong> é que o homem é <strong>um</strong> ser que se embriaga. Não importa a maneira:o essencial é embriagar-se. Morfina, éter, coca, ópio, vinho, grappa, whisky, gin,vodca, cerveja, automóvel, jogo, esporte, dança, negócios, arte, política, notorieda<strong>de</strong>,glória, ódio, tudo lhe serve, contanto que lhe permita, conforme os temperamentos,sentir a falsa plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> <strong>de</strong>saforo interior, embora à custa do <strong>de</strong>sbarate e daquebra do rico, vário e harmônico plano natural da construção h<strong>um</strong>ana.Dizia Tolstói que o homem procura no álcool e no tabaco o entorpecimentodo Eu consciente. E é verda<strong>de</strong>. Mas o álcool e o tabaco não são os únicosmananciais <strong>de</strong>ssa felicida<strong>de</strong> mutilante. Há-os em barda por aí, todos produzindoefeitos exteriores análogos, todos proporcionando o mesmo resultado interior, querse trate <strong>de</strong> <strong>um</strong> cigarro ou <strong>de</strong> <strong>um</strong> trago, quer <strong>de</strong> <strong>um</strong> veículo atirado como <strong>um</strong> buscapéou <strong>de</strong> <strong>um</strong>a paixão ou preconceito absorvente, que se cultiva: reduzir o campo doscuidados, abafar <strong>um</strong>a porção <strong>de</strong> vozes que balbuciam <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós, prevenir <strong>um</strong>mundo <strong>de</strong> preocupações e <strong>de</strong> angústias possíveis, apequenar a nossa h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>,pôr entre nós e o cariz oceânico da vida <strong>um</strong> véu que o esf<strong>um</strong>e e nos tranqüilize.Não nos ríamos do bêbedo, ríamo-nos <strong>de</strong> nós. Todos temos o nosso copo, etodos parecemos obe<strong>de</strong>cer ao conselho <strong>de</strong> Omar Kayyám: Sonha que já não és, esê feliz.És que? Homem, cá para o nosso caso.BOA PROSA29


www.nead.unama.brBoa prosa, o Antônio Palhares. É curioso como há indivíduos inteligentes,perspícuos e engraçados, perdidos na multidão que não aparecem nas crônicasimpressas, nem nas volantes e sonantes da gente que se conhece. De repente,sur<strong>de</strong>-nos <strong>um</strong> da obscurida<strong>de</strong> e da in<strong>de</strong>terminação do vasto mundo que<strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhamos e ignoramos, — e é <strong>um</strong> bicho <strong>de</strong> compreensivida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> senso, <strong>de</strong>espírito! Palhares é assim.Conversei com ele hoje pela manhã, e nem sei dizer como me divertiu.Valeu por <strong>um</strong> livro novo que eu abrisse e folheasse, vendo as gravuras, o índice, ostítulos <strong>de</strong> alguns capítulos, alguns relances <strong>de</strong> páginas. Quanta novida<strong>de</strong>, quantafrescura, quanto inesperado, e também quanto sabor <strong>de</strong> sincerida<strong>de</strong> libérrima e<strong>de</strong>spreocupada, nos seus dizeres <strong>de</strong> homem sem galeria presente nem futura!Queixei-me a Palhares dos inconvenientes da notorieda<strong>de</strong>. Não por mim,que sou <strong>um</strong> obscuro chapado e contente, mas por <strong>um</strong> amigo meu, que é <strong>um</strong>aespécie <strong>de</strong> terça parte minha, o qual muito tem sofrido por via <strong>de</strong>sse flagelo. O rapaznão po<strong>de</strong> mais isolar-se, meter-se consigo, per<strong>de</strong>r-se na fecunda anonímiamultitudinária que lhe permitiria o <strong>de</strong>scanso, o recolhimento, a respiração livre, aremo<strong>de</strong>lação dos hábitos, a cura das feridas sempre abertas pela esfregaçãomundana: é <strong>um</strong> escravo aflito e amarfanhado das relações, das amiza<strong>de</strong>s, doscompromissos, das idéias que outros formaram a seu respeito, das solicitações edos estímulos que por isso lhe vêm <strong>de</strong> todos os lados; e então pa<strong>de</strong>ce, e geme, e<strong>de</strong>sespera, porque <strong>de</strong>sejaria romper com o seu passado, <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser o homemfrívolo, o homem vento, o homem-inundação que tem sido, para ser <strong>um</strong> homemconcêntrico e dono <strong>de</strong> si.Palhares ouviu-me, ouviu-me, e, afinal, perguntou:— "Mas esse moço é <strong>de</strong>veras <strong>um</strong>a inteligência sagaz, ou é <strong>um</strong>a <strong>de</strong>ssasgran<strong>de</strong>s inteligências bobas que há por esse mundo?"— "Sagacíssima."— "Pois não parece. Seria tão fácil libertar-se, isolar-se!"— "É o que se afigura à primeira vista."— "Precisa dos outros, efetivamente, para viver?"— "Não; isso, não; tem a sua in<strong>de</strong>pendência material bem segura."— "Então, não compreendo. Por que não se retira?"— "Impossível. Relacionadíssimo. Cheio <strong>de</strong> laços, que não se dissolvemsenão quando novos laços os submergem: <strong>um</strong> homem que se procura, se aprecia,se quer, se disputa, se admira. Encantador. Como romper? Como ter a energia <strong>de</strong>quebrar brutalmente esses laços? Como repelir, quando se tem <strong>um</strong> coração brando,<strong>um</strong>a revoada <strong>de</strong> carinhos e solicitu<strong>de</strong>s que nos cerca e nos assalta?"— "Não compreendo. Para <strong>um</strong> homem se isolar, não há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>movimentos bruscos, nem <strong>de</strong> fuga. Para fazer o vácuo em redor <strong>de</strong> si,gradualmente, docemente, não há senão isto: ser bom."— "Mas ele o é. E <strong>de</strong>pois, ser bom é mais <strong>um</strong> motivo para criar afetos e<strong>de</strong>dicações em redor <strong>de</strong> si."— "Espere. Distingo. Ser bom, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a bonda<strong>de</strong> pe<strong>de</strong>stre e regular, <strong>de</strong> fato,é <strong>um</strong> meio <strong>de</strong> criar afetos e <strong>de</strong>dicações em redor <strong>de</strong> si. Não é <strong>de</strong>ssa bonda<strong>de</strong> práticae hábil que eu falo. Eu falo da bonda<strong>de</strong> íntima, profunda, plena e sossegada, queprocura o bem nas próprias raízes do pensamento e da vonta<strong>de</strong>, <strong>de</strong> forma que opensamento e a vonta<strong>de</strong>, quando se manifestam, já se manifestam comoconseqüências exteriores, mortiças, frias, aguadas e, dir-se-ia, indiferentes <strong>de</strong> <strong>um</strong>agran<strong>de</strong> realida<strong>de</strong> latente e central que não cura <strong>de</strong> exteriorida<strong>de</strong>s. Compreen<strong>de</strong>u?"30


www.nead.unama.br— "Mais ou menos. Quer dizer <strong>um</strong>a bonda<strong>de</strong> sentida, consciente, feita <strong>de</strong>compreensão e <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong>, mas que não tenta esforços por se mostrar e por atuarcá fora. Porque sabe talvez que toda exteriorização é espetáculo e todo espetáculoperverte."— "Mais ou menos isso!"— "Mas por que pensa que aí estaria o meio <strong>de</strong> libertação?"— "Ora, essa! Meu amigo! Pelo que vejo, não conhece os homens. Oshomens só nos avaliam, nos pesam, nos apreçam pelas nossas projeçõesexteriores. E essas projeções, para terem valor, se hão <strong>de</strong> articular com asnecessida<strong>de</strong>s, os <strong>de</strong>sejos, as conveniências, as aspirações dos que nos ro<strong>de</strong>iam.Valem pela soma <strong>de</strong> utilida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> c<strong>um</strong>plicida<strong>de</strong> que levam consigo.Mas <strong>um</strong> indivíduo realmente e simplesmente bom é o mais <strong>de</strong>svalioso doshomens. É talvez <strong>um</strong>a árvore frutífera, mas que produz frutos quando é sazão, e foradisso não produz mais nada; ali está, no seu lugar, quieta, sem movimento, seminiciativa, sem préstimo, sem solicitu<strong>de</strong>s, sem graça.Apenas dá sombra. Uma sombra igual para todos. Mas que importa aoshomens <strong>um</strong>a árvore que dá sombra! A sombra aproveita-se, quando a<strong>de</strong>rga, gozase,saboreia-se, mas não se tem nenh<strong>um</strong>a gratidão para a planta equânime que nãono-la reservou para nós, que a dará ao primeiro vagabundo que a procure. Assim, aárvore <strong>de</strong> boa sombra vive realmente isolada, cercada por <strong>um</strong>a <strong>de</strong>nsa muralha <strong>de</strong>impenetrabilida<strong>de</strong> própria e <strong>de</strong> alheia indiferença.""Diga ao seu amigo que faça isso."Palhares sorriu, pôs <strong>um</strong> confeito na língua e, a remexê-lo na boca, perguntou:— "Quer jantar comigo?"— "Obrigado."— "Sem cerimônia. Temos hoje lá em casa <strong>um</strong> peixe que me mandaram dolitoral, <strong>um</strong> esplêndido robalo. Presente <strong>de</strong> <strong>um</strong> amigo."— "Tem amigos amáveis."— "Mas, naturalmente. Prestei a esse <strong>um</strong> serviço <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância,que só eu estava em condições <strong>de</strong> prestar."— "Gratidão, nesse caso."— "Qual!"— "Esperança <strong>de</strong> novo serviço..."— "Talvez"— "Afeto h<strong>um</strong>ano!"— "Afetos verda<strong>de</strong>iros e sólidos! Passam <strong>de</strong>pressa, nada mais fugitivo, não hádúvida; mas verda<strong>de</strong>iros e sólidos porque se firmam na realida<strong>de</strong> viva das relaçõesúteis. Não há outra. Dentro da vida, da vida efetiva, da vida que se vive, não há outra. Éisso. É assim. Mas quer ou não quer comer o bom peixe do meu amigo?"RUFINATornei a ver a minha Rufina, afinal.Corria eu os olhos pelos passageiros, com essa curiosida<strong>de</strong> vaga, sem garranem asa, que nos resta nas horas <strong>de</strong> fadiga. Vi n<strong>um</strong> banco <strong>de</strong> trás o prático <strong>de</strong>farmácia, com <strong>um</strong> livro <strong>de</strong> Allan Kar<strong>de</strong>c sobre os joelhos e a fazer gracinhas a <strong>um</strong>acriança, cuja mãe era <strong>um</strong>a guapa mocetona. Vi o simpático Berredo, inimigo daMedicina, médico amador. Benzi-me em espírito com a canhota, e <strong>de</strong>sviei os olhos:31


www.nead.unama.br<strong>de</strong>i com eles n<strong>um</strong> banco todo ocupado por mulheres idosas e feias, não sei se maisidosas do que feias, e tinham os cabelos entre o grisalho e o branco amarelado. Masa velhice é <strong>um</strong>a coisa venerável. Contemplei aquelas caras a ver se conseguiaextrair <strong>de</strong> alg<strong>um</strong>a <strong>de</strong>las a imagem reconstituída <strong>de</strong> <strong>um</strong>a beleza <strong>de</strong>composta. Não oconsegui. Teriam talvez <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> beleza interior. Mas por que então não serevelava cá fora ao menos como o l<strong>um</strong>e vermelho e mortiço <strong>de</strong> <strong>um</strong> forno velho?Pus-me a passear os olhos pelo tejadilho, pela rua, pelas pontas <strong>de</strong> meus<strong>de</strong>dos. De repente, quem havia <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir! Lá no fundo, sentadinha entre <strong>um</strong>apreta gorda e <strong>um</strong> bigodudo ven<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> loterias, Rufina! A própria, a autêntica, aúnica, a olhar para mim, sorrindo como antiga conhecida — a boa criatura! Toda elaera <strong>um</strong>a só imagem <strong>de</strong> lin<strong>de</strong>za una e vibrante como <strong>um</strong>a interjeição.Trajava <strong>de</strong> branco e tinha <strong>um</strong>a gola alta que lhe dava ao pescoço, ao ombroe à cabecinha redonda <strong>um</strong> quê <strong>de</strong>ssa graça aconchegada e sólida, que se encontranas frutas perfeitas e nos leg<strong>um</strong>es viçosos. Mergulhei-me na figura <strong>de</strong> Rufina.Nisto, veio <strong>de</strong> lá o prático <strong>de</strong> farmácia, marinhando pelo estribo. Alegou queme queria c<strong>um</strong>primentar, e <strong>de</strong> fato realizou esse rito com a mais intempestivalentidão. Relanceava os olhos para Rufina, uns olhos <strong>de</strong> emplastro, sob cujasapalpa<strong>de</strong>las a moça baixava os seus. Depois, saltou. — Lamentei sinceramente quenão tivesse caído. Senti ganas <strong>de</strong> lhe saltar no rasto como <strong>um</strong>a onça atrás <strong>de</strong> <strong>um</strong>quati, e meter-lhe a garra pelo gasnete, e batê-lo pelo chão e pelas pare<strong>de</strong>s.Quando o bon<strong>de</strong> chegava à primeira esquina, o condutor subiu ao meubanco, que era o da frente, para repor em zero o relógio <strong>de</strong> marcação daspassagens. Incomodado pelo intruso, passei provisoriamente para o banco imediato,dando costas à linda criatura. Tão <strong>de</strong>pressa o condutor se retirou, voltei para o meuprimitivo posto. Mas a moça tinha <strong>de</strong>saparecido. Saltara na esquina, que já ia longe.Precipitei-me para a rua, corri para trás, inspecionei tudo, barafustei; nada.Sacudiu-me então <strong>um</strong>a tal intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero e <strong>de</strong> cólera, que me pus a rir ea rilhar os <strong>de</strong>ntes.Foi este o dia mais negro dos meus últimos <strong>de</strong>z anos. Dei ponto narepartição, e fui fazer <strong>um</strong> passeio <strong>de</strong> bêbedo por bairros distantes e ignorados.DELICADEZATestemunhei <strong>um</strong>a cena <strong>de</strong>sagradável, que infelizmente não teve pioresconseqüências.Ia perto <strong>de</strong> mim <strong>um</strong> cidadão muito gordo. Luxuosamente gordo. Pareciacarregar as banhas com a recolhida empáfia <strong>de</strong> <strong>um</strong> grão-sacerdote afogado em<strong>de</strong>sl<strong>um</strong>brantes vestes talares. Refestelava-se no banco, firmado nas enxúndias dasná<strong>de</strong>gas, como <strong>um</strong>a pesada bóia flutuante indiferente ao balanço das ondas. Exibiao ventre, que lembrava o hemisfério <strong>de</strong> <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> globo, como se <strong>de</strong> propósito<strong>de</strong>sejasse que toda a gente lhe pu<strong>de</strong>sse admirar aquela prenda. Aquilo era o seuprecioso berloque <strong>de</strong> novo rico.A certo ponto da viagem, surgiu do outro lado do hemisfério <strong>um</strong> moço magroe sutil, que procurava passar pela frente do obeso, mas hesitava ante aimpassibilida<strong>de</strong> ou distração <strong>de</strong>ste. Afinal, tocando no chapéu, perguntou-lhe, alto,com verr<strong>um</strong>ante <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za: — "Cavalheiro, não lhe seria muito incômodo ce<strong>de</strong>r-me<strong>um</strong> corredorzinho para eu passar?" O gordo zangou-se. Encolheu como pô<strong>de</strong> ofardo abdominal e, sacudindo a papada, os olhos arregalados: "Passe!"O moço magro, atônito por <strong>um</strong> momento, <strong>de</strong>pois inclinado a reagir, sorriu-seafinal, e disse entre <strong>de</strong>ntes, relanceando <strong>um</strong> olho escarninho pela venerável barriga:32


www.nead.unama.br— "Bolas! Não estou disposto a brigar com meio mundo." E o gordo a resmungar: "Ocalcinhas! Esta sucia..."A princípio não compreendi por que seria que o pançudo tanto se irritara. Éque sou por natureza tardo <strong>de</strong> compreensão. Nada mais fácil <strong>de</strong> ver que o homemsentira espicaçado justamente por aquele excesso <strong>de</strong> <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za. Se o moço,passando, lhe tivesse empurrado <strong>de</strong> leve os joelhos, dizendo <strong>um</strong> seco e rápido "comlicença!", e fosse tocando para diante, nada teria acontecido. O gordo levaria isso àconta <strong>de</strong> <strong>um</strong>a pequenina e <strong>de</strong>sculpável grosseria sem en<strong>de</strong>reço especial. Não já,assim a frase e o gesto do mancebo, que lhe bateram no toutiço como farpazinhaparticularmente preparada para sua pessoa. Ninguém gosta <strong>de</strong> se ver assimpessoalmente visado e distinguido nos seus pequenos tortos, que são mais o<strong>um</strong>enos os <strong>de</strong> toda a gente e <strong>de</strong>vem passar sem exame e sem reparo.Há <strong>um</strong>a causa mais geral, e é que o excesso <strong>de</strong> <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za leva <strong>um</strong>a dose <strong>de</strong>ironia, e a ironia ofen<strong>de</strong> e revolta mais do que a ru<strong>de</strong>za. Não, como geralmente sejulga, por penetrar mais fundo na <strong>de</strong>rme do alvejado, mas pela <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong>armas. O homem <strong>de</strong>sprevenido e "natural" não tem, nos seus encontros e lidascotidianas, mais do que as armas <strong>de</strong> ataque e <strong>de</strong>fesa que a natureza lhe <strong>de</strong>u, e <strong>de</strong>lasse socorre como po<strong>de</strong>. O irônico é <strong>um</strong> mal intencionado, que carrega armas artificiaisno meio <strong>de</strong> <strong>um</strong>a população policiada e pacífica. Viola a convenção em que ageneralida<strong>de</strong> repousa. Quebra a regra consuetudinária do jogo da convivência. On<strong>de</strong>outros se limitariam a usar das mãos e dos cotovelos, ele saca <strong>de</strong> <strong>um</strong> pequeninopunhal e põe-se a esgrimi-lo com a <strong>de</strong>streza <strong>de</strong> <strong>um</strong> especialista <strong>de</strong> má-fé e <strong>de</strong> mausbofes. O adversário sente-se apanhado à traição, exaspera-se e, às vezes explo<strong>de</strong>.O sujeito extremamente <strong>de</strong>licado é, no fundo, <strong>um</strong> indivíduo que faz o pior juízoacerca dos seus dissemelhantes, e os trata com infinitos cuidados, como se lidassecom cavalos passarinheiros ou cachorros agressivos. Ou isso, ou então é que gosta <strong>de</strong>lançar engodos às almas incautas, para que se lhes abram e se lhes ofereçam emespetáculo. Todos os seus gestos estão impregnados <strong>de</strong> ironia, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a ironia que nadatem com a dos homens compreensivos e sensíveis que já viveram muito, mas <strong>um</strong>aironia feita <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> caborteirice e <strong>de</strong> secura <strong>de</strong> coração. Ele é o "homem <strong>de</strong>escol", "a criatura <strong>de</strong> exceção", fina, distinta, lixada, repolida, cheia <strong>de</strong> bicos e rendas,<strong>de</strong>sgraçadamente obrigada a viver no meio <strong>de</strong> <strong>um</strong>a canalha tosca e molesta!A antipatia instintiva que provoca é <strong>um</strong>a reação da vis medicatie social.O que mostra mais <strong>um</strong>a vez como os movimentos instintivos po<strong>de</strong>meqüivaler a longas reflexões, e como a mentalida<strong>de</strong> coletiva po<strong>de</strong> chegar, semraciocínio, aos mesmos resultados das lentas análises do psicólogo e do moralista.,— De on<strong>de</strong>, também, o erro dos paradoxófilos, quando partem do pressuposto <strong>de</strong>que, para bem pensar, é preciso pensar contra os sentimentos do maior número.O SONETOSe eu tivesse <strong>de</strong> fazer perante o vigário <strong>um</strong>a confissão minuciosa, raspandoas voltas mais fundas do meu ser, não encontraria <strong>de</strong> certo explicação para o fato <strong>de</strong>o soneto <strong>de</strong> Gabriela me haver tornado, hoje, ao espírito- não à lembrança apenas,ao espírito, à alma. Só posso dizer que, ao vir-me o condutor cobrar a passagem,nem o senti chegar, estava absorvido na segunda quadra.A vida é <strong>um</strong> céu que <strong>um</strong>a só vez se estrela; toda estrelada e rutilante a viste...Não me satisfizeram estes versos, nem como idéia nem como forma.Chamar céu à vida é sempre extravagância; <strong>de</strong>mais, <strong>um</strong> céu que só se estrela <strong>um</strong>a33


www.nead.unama.brvez, não po<strong>de</strong> ser senão <strong>um</strong> céu <strong>de</strong> papel pintado. A construção "a viste" eraambígua para o ouvido. Por fim, o período não dava liga. Modifiquei-o:Contudo, a vida forte boa e bela: sorriu-te, tanto quanto lhe sorriste.Podia servir. O diabo era a continuação. Eu não tinha, na verda<strong>de</strong>, a mínimaidéia assentada acerca do caso psicológico <strong>de</strong> Gabriela, nem sequer sabia queforma e que alma teria essa emanação possível do meu cérebro. Ao contrário <strong>de</strong>Minerva ao sair da cabeça <strong>de</strong> Júpiter, estava completamente <strong>de</strong>sarmada. E nemmesmo queria acabar <strong>de</strong> sair. As casualida<strong>de</strong>s da versificação é que me diriamafinal o que eu houvesse <strong>de</strong> pensar a respeito. Gran<strong>de</strong> coisa, a versificação.Contudo, a vida foi-te boa e bela: a vida te sorriu, tu lhe sorriste...Dados estes dois versos, o campo <strong>de</strong> exploração restringia-se. O problemafixava-se em três incógnitas: x) dois <strong>de</strong>cassílabos, em ela e iste; y) que<strong>de</strong>senvolvessem o pensamento começado; z) tornando possíveis os tercetos com<strong>um</strong> fecho reluzente e forte.Hoje, ela te maltrata, e tu caíste.Aqui, o verbo caíste (le mont est créateur) sugeriu-me espontaneamenteeste quarto verso:Caíste, pobre moça, na esperança!Não estaria mal, se eu quisesse fazer h<strong>um</strong>orismo. Bastava modificar <strong>de</strong> leveos versos antece<strong>de</strong>ntes:Outrora, a vida aparece-te bela;acenou-te, sorriu. Tu lhe sorriste.E a seus braços voaste. E enfim caíste,caíste, pobre moça! Na esparrela.O mais engraçado <strong>de</strong>sse h<strong>um</strong>orismo é que a idéia em si é perfeitamente justa emuito séria. A vida, <strong>de</strong> fato, esten<strong>de</strong> às almas jovens e sequiosas <strong>um</strong>as fatais urupucas,tentadoras e terríveis, on<strong>de</strong> elas se <strong>de</strong>batem e se magoam. Mas o "cair na esparrela"tornou-se cômico pela vulgarida<strong>de</strong>, e a vulgarida<strong>de</strong> é o sentido moral figurado. Sentidosprofundamente imorais, estes sentidos morais, que apagam tudo quanto há <strong>de</strong> emoçãopoética e <strong>de</strong> pungente verda<strong>de</strong> h<strong>um</strong>ana em tantas metáforas enérgicas e felizes. —Como quer que seja, eu agora já queria bem à moça, como as mães já amam os filhosainda no ventre, e <strong>de</strong>testei a idéia <strong>de</strong> impor à minha criatura <strong>um</strong> ind<strong>um</strong>ento grotesco.Nem que ela fosse real! Não, o soneto havia <strong>de</strong> ser afetuoso e nobre.Outrora, a vida apareceu-te bela;acenou-te, sorriu. Tu lhe sorriste.E a seus braços voaste; e assim te vistepresa das graças lacerantes <strong>de</strong>la.Ora, bem. Faltavam os tercetos. Estava a ensaiar-me para pescar ostercetos no vasto mundo das possibilida<strong>de</strong>s i<strong>de</strong>ais, quando o condutor me chamouao mundo estreito das impossibilida<strong>de</strong>s ordinárias:"O senhor volta para trás?"O bon<strong>de</strong> tinha chegado ao ponto final e ia recomeçar o giro. Saltei <strong>de</strong>le e dosonho (assim chamam os poetas a estes exercícios, que são os mais conscientes eespertos <strong>de</strong> quantos se possam imaginar) e corri à repartição. — Talvez que distofique <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo a inexistência <strong>de</strong> mais <strong>um</strong>a obra-prima na literatura nacional. Mas,quem sabe? Ego dormio et cor me<strong>um</strong> vigilat.UM BORRACHO34


www.nead.unama.brO bon<strong>de</strong> vinha tão silencioso, ontem à tar<strong>de</strong>, como se por ele tivessepassado <strong>um</strong> sopro <strong>de</strong> solenida<strong>de</strong> histórica. Os passageiros, alinhados, taciturnos,pareciam compenetrados <strong>de</strong> representar alg<strong>um</strong> papel <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>. Ou dirse-iaque iam jogar a própria vida n<strong>um</strong>a linha <strong>de</strong> fogo, logo ali adiante.A certo momento, entrou <strong>um</strong> bêbedo, que mal se sustinha nas pernas, como<strong>um</strong> fardo que trepasse a custo arrastado por <strong>um</strong>a corda invisível. Mas falava semparar e ria-se n<strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> jovialida<strong>de</strong> enternecida e patusca. Tudo lhe ria, a barbacrespa e grisalha, repartida em duas pontas, os olhos pequenos e azuis, como doisbotões <strong>de</strong> esmalte, o chapéu amolgado e caído sobre a orelha, os longos caracóis<strong>de</strong> cabelo bamboleantes sobre a testa como gavinhas <strong>de</strong> aboboreira, e que sehaviam <strong>de</strong>spregado da pastinha rala, transversalmente colada por cima da calva. Riaa próprio casaco <strong>de</strong> pano encorpado, cujos bolsos atafulhados se arredondavamcomo bolsas, e ria ainda mais o lenço vermelho amarrado ao pescoço, com aspontas a esvoaçar como ban<strong>de</strong>irolas.Falando e rindo, o homem caiu sentado em cima <strong>de</strong> duas mulheres, querecuaram espavoridas "Scusate, signore!" E tirou largamente o chapéu com a mãoque segurava o cachimbo, cujas cinzas se espalharam por cima das cabeçasvizinhas. "Scusate, io sono un pó allegro, Oggi ê festa!" E disparou a cantar.O condutor veio lá do fundo como <strong>um</strong>a flecha e, com o sobrecenho maisautoritário que pô<strong>de</strong> compor:"Ó aquele, aqui não se canta!"— "Non si può. Bene, bene. Non si può. È giusto. Si. Stà benissimo... Eh!Condutore, mi dà un fiammífero?"E, enquanto acamava com o polegar o f<strong>um</strong>o negro contido no pipo, cantou,n<strong>um</strong>a voz que podia bem ser a <strong>de</strong> <strong>um</strong> ex-barítono:— "Io voglio un fiammifero!"O condutor voltou a ele e, com redobrada energia no cenho e na voz:— "Já lhe disse que não po<strong>de</strong> cantar!"— "Eh!... io già sabia che non si può cantare. Domandavo a lei unfiammifero."— "Não tem fiammifero. Você vai é já para baixo, se não fica quieto."— "Pra basso, io?! Dio b...! E che ho fatto io, conduttore... O conduttore! cheho fatto io per esser messo giu... in mezzo alla strada?"O homem largou o cachimbo em cima do banco, remexeu os bolsos com asmãos bambas, remexeu, e não encontrava o dinheiro. Tirou <strong>um</strong> lenço, <strong>um</strong>a laranja,duas meta<strong>de</strong>s <strong>de</strong> charuto toscano, <strong>um</strong> pedaço <strong>de</strong> barbante, uns restos <strong>de</strong>amendoim, <strong>um</strong>a medalha, <strong>um</strong> jornal; e resmungava: — "Come no! Io tenho dinero.Si! Anche <strong>de</strong>lla carta moneta... Vucê truca cinque milla, conduttore? Ebbene, aspetti.Si, ió tenho... eh! Un pó <strong>de</strong> pazienza, caro."A muito custo, <strong>de</strong>u com a nota n<strong>um</strong> dos bolsos do colete, junto do relógio <strong>de</strong>prata, enorme, que previamente sacou e auscultou. Ao retirar a cédula, fê-lo n<strong>um</strong>gesto <strong>de</strong> triunfo; ergueu senhorilmente a cabeça e, esten<strong>de</strong>ndo a mão com odinheiro ao condutor irritado, esboçou <strong>um</strong> canto jacundo e nobre como <strong>um</strong> ofertório,em voz ret<strong>um</strong>bante: "Ecco, o signor, pren<strong>de</strong>tela!"35


www.nead.unama.brO condutor não lhe cobrou a passagem, mas fez parar o carro e obrigou ocantor a <strong>de</strong>scer, com tácita aprovação dos <strong>de</strong>mais passageiros. Quando se viu narua, o expulso abriu os braços para protestar, mas cambaleou e sentou-se no chão,gritando sonoramente, à maneira <strong>de</strong> insulto e <strong>de</strong> ameaça: "Portoghese! Vado dalpresi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>llo Stato!"Mas o bon<strong>de</strong> já ia longe. E os passageiros riam-se. E ria-se o condutor.Precisamente nesse momento, eu ficava sério, e aquele homem alegre e inofensivo,posto do veículo abaixo como <strong>um</strong>a lata velha, me começava a interessar. Era avítima simpática <strong>de</strong> <strong>um</strong> lote <strong>de</strong> imbecis. E eu no meio <strong>de</strong>stes.Um homem alegre, fosse qual fosse o combustível da sua alegria, <strong>de</strong>veraser olhado como em certas civilizações primitivas se olhavam os doidos, criaturassagradas, ou como os gregos consi<strong>de</strong>ravam os <strong>de</strong>votos <strong>de</strong>lirantes <strong>de</strong> Dionísios,con<strong>de</strong>nsadores momentâneos <strong>de</strong>sse mistério <strong>de</strong> jovialida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> exaltação que emcertas épocas circula através das coisas, e preme os úberes da terra, e <strong>de</strong>sata asofertas do céu.Minha alma ficara lá para trás, junto daquele homem assoado para a ruapela austera comunida<strong>de</strong> do bon<strong>de</strong>. E minha alma lhe dizia:Ri, ri, ri, minha vitima, meu irmão. Brinca, tagarela, traquina à tua vonta<strong>de</strong>.Frui sem vergonha e sem cuidado este parêntese divino <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> loucuraalegre que se abre na miséria soturna da tua vida. Ri, ri, meu irmão, minha vítima.A tua risada não me alivia, mas vinga <strong>um</strong> pouco a minha ânsia recolhida <strong>de</strong>libertação impossível, pobre, torturado escravo que sou, mesquinho escravo dasRegras, dos Horários, dos Regulamentos, dos Códigos e das Necessida<strong>de</strong>s criadas.Ri, folga, berra, cabriola, papagueia, pragueje, insulta! E canta! Canta, nessaefusão <strong>de</strong> lirismo obscuro que sobe do mais fundo da nossa alma bruta, expressãosem palavra <strong>de</strong> alegria vital, inconsciente, expansiva, cósmica, alegria do gafanhotoque salta e voeja, da maritaca grita<strong>de</strong>ira e gloriosa, da água que foge às guinadasfervendo e brilhando, do fogo que dança o bailado da labareda, <strong>de</strong> tudo que não éesta nossa <strong>de</strong>sgraçada alma superficial <strong>de</strong> bicho domesticado e diminuído.Ri, ri, ri, com todo o teu ser, todo o teu sangue, a tua carne, para além ouaquém do Bem e do Mal, Homem! Pobre Homem, bom Homem, meu irmão.Ri, ri, ri, até que estoures <strong>de</strong> repente com o riso, como a cigarra a cantar, eacabes assim na mais bela das mortes, fulminado por <strong>um</strong>a explosão <strong>de</strong> vida!"Agora, ao rememorar esta minha o<strong>de</strong>, com a pena entre os <strong>de</strong>dos, já não meparece que tenha justificado bem a embriaguez, que afinal é <strong>um</strong> vício <strong>de</strong>testável.Embriaguez por embriaguez, é preferível <strong>um</strong>a consciência clara e <strong>um</strong> sentimentoprofundo e sutil das realida<strong>de</strong>s. Também isto é <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> bebe<strong>de</strong>ira; maslúcida, infinitamente matizada; e tem todo, o atrativo <strong>de</strong> <strong>um</strong> vício artificial."Se<strong>de</strong> duros, meus irmãos!" pregava Zaratustra, "e a verda<strong>de</strong> é que a durezaé <strong>um</strong> ingrediente da vida e <strong>um</strong>a condição <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m."Nada mais saboroso do que o diálogo <strong>de</strong> Tolstói com a sentinela doCremlim. Esta enxotava <strong>um</strong> mendigo <strong>de</strong> certo lugar on<strong>de</strong> não se permitia apermanência <strong>de</strong> estranhos. Tolstói aproxima-se, vê, sofre, e aborda o soldado,perguntando-lhe se não conhecia os versículos do Novo Testamento em que serecomenda tratar o próximo como a <strong>um</strong> irmão. Retruca o militar: "E o senhor nãoconhece o regulamento da praça? Pois eu o conheço."Palavra profunda! A primeira necessida<strong>de</strong> é c<strong>um</strong>prir cada <strong>um</strong> o seu <strong>de</strong>verparticular, o seu <strong>de</strong>ver concreto, positivo, limitado, pequenino.O <strong>de</strong>ver particular às vezes é duro, como pedra, como prego, duro comopau, mas é <strong>de</strong>le que se faz a or<strong>de</strong>m, a or<strong>de</strong>m que é edificação, que é obra, que é36


www.nead.unama.brabrigo e <strong>de</strong>sfrute, oficina e palácio, lavoura e escola, a or<strong>de</strong>m que é civilização. Os<strong>de</strong>veres mais gerais são também mais flutuantes: discutem-se; oscilam com atemperatura do sentimento, com as marés da i<strong>de</strong>alida<strong>de</strong>. Mas o <strong>de</strong>ver imediato ecotidiano é fixo e indiscutível: não há senão obe<strong>de</strong>cer-lhe. E a obediência é asegurança e o alimento <strong>de</strong> cada <strong>um</strong> e <strong>de</strong> todos. Coisa insignificante, <strong>um</strong> homem queregularmente c<strong>um</strong>pre os seus <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> cada dia: coisa majestosa, <strong>um</strong>a nação emque todos proce<strong>de</strong>m assim!O i<strong>de</strong>al é talvez juntar ao livro <strong>de</strong> Tolstói a espada do soldado. Em todocaso, eu daria ao soldado <strong>um</strong>a fria aprovação, e a Tolstói <strong>um</strong> abraço.MANUAL DE COZINHAArranjei hoje com <strong>um</strong> contínuo <strong>um</strong> Manual do Perito Cozinheiro, para lerdurante a viagem, à falta <strong>de</strong> outra leitura edificante, instrutiva ou <strong>de</strong>leitável.Trago a cabeça cheia <strong>de</strong> leituras <strong>de</strong> jornal, e já não me diverte nada, pelocontrário, a sarabanda cotidiana das crônicas, estudos, fantasias, comentários,bisbilhotices e <strong>de</strong>scomposturas. Tenho a impressão <strong>de</strong> já haver lido isso tudo não seiquantas vezes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a minha vida anterior, nos remotos pródromos do jornalismocom Mr. Théophraste Renandot. É incrível como as coisas atuais caducam <strong>de</strong>pressa,como as novida<strong>de</strong>s são velhas, como os fatos extraordinários são vulgares.É verda<strong>de</strong> que a impressão <strong>de</strong> perpétua velhice só se prova agudamentequando se vai <strong>de</strong>scambando la<strong>de</strong>ira abaixo dos anos em enta. Mas isso apenas<strong>de</strong>monstra que o espetáculo é comprido e só se po<strong>de</strong> bem apreciar <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> lhe tervisto <strong>um</strong> bom pedaço.O fato é que estou fazendo quaresma a respeito <strong>de</strong>ssa carne-<strong>de</strong>-vaca dosprelos. Ontem, li no bon<strong>de</strong> o Livro <strong>de</strong> são Cipriano, conhecimento que me entretevecomo <strong>um</strong> fruto proibido, e que valeu ao dono do vol<strong>um</strong>e, servente da repartição, <strong>um</strong>pacote <strong>de</strong> f<strong>um</strong>o Veado. Hoje, <strong>um</strong> dos meus colegas <strong>de</strong>via emprestar-me as Noitesda Virgem, mas afinal parece que teve receio <strong>de</strong> que eu lhe extraviasse essa"mimosa jóia", e <strong>de</strong>clarou-me que a não havia encontrado; mentira, pois é o seu livro<strong>de</strong> cabeceira.Arranjei-me, porém com o contínuo, que fora da repartição é cozinheiropraticante, em ocasião <strong>de</strong> festa e regabofe, e <strong>de</strong>ntro da repartição apren<strong>de</strong> a arte,<strong>de</strong>cora receitas e dá consultas. Seja registado em sua honra, que não preencheapenas assim o seu horário oficial: também serve o café e faz o jogo do bicho.O Manual fez-me o efeito refrescante <strong>de</strong> <strong>um</strong> bastão <strong>de</strong> cristal japonêspassado pelas têmporas em hora <strong>de</strong> dor <strong>de</strong> cabeça. Nunca eu havia provado a talponto a maravilhosa utilida<strong>de</strong> das leituras inúteis. A parte referente ao preparo do perucom farofa e <strong>de</strong> outras aves domésticas e selváticas parecia escrita por <strong>um</strong> estômagoinspirado, tanto garbo havia na varieda<strong>de</strong> dos termos técnicos, na escolha daspalavras mais precisas e sugestivas, no emprego dos adjetivos mais emanteigados eolorosos, enfim na composição <strong>de</strong> <strong>um</strong> estilo todo suavemente tostado e pururuca.Li tudo, mas com absoluto <strong>de</strong>sinteresse; por <strong>um</strong> puro ato <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong>, semque nada me obrigasse ou seduzisse, ou me prometesse o mais remoto benefício.Singular prazer, cujo valor só <strong>de</strong>pois completamente reconheci. Nem sequer me eradado pensar no aproveitamento <strong>de</strong> alg<strong>um</strong>a receita, porque todos os pratos <strong>de</strong> queeu gosto já são perfeitamente executados e são <strong>de</strong> sobra para <strong>um</strong>a rotaçãoconveniente dos menus; a tal ponto que ao saborear o frango assado no domingo, jáeu sinto <strong>um</strong> pouquinho <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong> da torta <strong>de</strong> palmito da quinta-feira, e vice-versa,e assim por diante.37


www.nead.unama.brO que havia <strong>de</strong> bom nessa leitura era o emprego tenaz da vonta<strong>de</strong> n<strong>um</strong>objeto indiferente, ótimo exercício; era, <strong>de</strong>pois, o esquecimento <strong>de</strong> <strong>um</strong>asamofinações, porque é impossível conciliar-se a leitura atenta <strong>de</strong> <strong>um</strong>a série <strong>de</strong>receitas <strong>de</strong> assados e cabi<strong>de</strong>las com o remeximento <strong>de</strong> espinhos espirituais.Era, finalmente, a entrevisão liminar <strong>de</strong> <strong>um</strong> vasto mundo <strong>de</strong>sconhecido, omundo da Copa e da Cozinha, da pastelaria e das Artes afins; <strong>um</strong> mundo <strong>de</strong> ocupaçõese preocupações, <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>alida<strong>de</strong>s, com sua história, seu tesourotradicional, sua literatura, sua arte, sua ética, sua ciência; <strong>um</strong> mundo que aí fervilha tãoperto do meu e ao qual eu andava alheio como se ele fosse Marte ou Saturno!Esta percepção da impermeabilida<strong>de</strong> dos diferentes planos da vida me caloufundo na alma, e eu me senti ainda mais pequenino.Se eu amanhã fizesse (mera hipótese) <strong>um</strong> poema forte, ou construísse <strong>um</strong>ateoria <strong>de</strong> mecânica, ou propusesse <strong>um</strong>a nova e fecunda maneira <strong>de</strong> interpretar ahistória, nada disso teria a mínima repercussão no mundo da Cozinha e da Copa;nem <strong>um</strong> eco sequer do meu nome chegaria até lá. A preparação do peru com farofacontinuaria a mesma; ou, se modificasse, havia <strong>de</strong> ser por ação <strong>de</strong> <strong>um</strong> dos íncolas,inovador <strong>de</strong> talento; e a alma do artista viveria em todo esse mundo largo mais vivae mais venerada do que a Divina Comédia ou o Discours <strong>de</strong> la Métho<strong>de</strong> ou o Nov<strong>um</strong>Organ<strong>um</strong> cá pelo nosso. E a sua glória não sofreria contestações nem eclipses,proclamada cada dia, através <strong>de</strong> tempos sem conta, por milhares <strong>de</strong> bocas verídicase gratas!E o nosso pobre mundo com<strong>um</strong> é todo assim, feito <strong>de</strong> mundinhosconcêntricos, que se articulam sem se confundir E nós, ai <strong>de</strong> nós! Preten<strong>de</strong>mos viver"cosmicamente!"RUFINAEncontrei-me hoje com o boticário, a quem não via <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a última vez quevira Rufina."Quem é aquela moça", lhe perguntei, "que, há coisa <strong>de</strong> duas semanas,viajou conosco neste bon<strong>de</strong>? Aquela morenota <strong>de</strong> olhos gran<strong>de</strong>s e úmidos? Aquela<strong>de</strong> bonitos <strong>de</strong>ntes? Aquela espigadinha, <strong>de</strong> branco, a quem você, saltando do carro,<strong>de</strong>itou <strong>um</strong>a olha<strong>de</strong>la xaroposa?"Fabiano custava-lhe recordar-se. Vincou a testa, cravou os olhos notejadilho, levou a unha do indicador para entre os incisivos, com a boca aberta.— "Uma gorda, <strong>de</strong> cabelo ondado?"— "Nada. Não ofenda."— "Não me lembro... Espere. Uma alta, <strong>de</strong> nariz gran<strong>de</strong>?"— "Já lhe disse que era morena, pequena, engraçada."Fabiano agitou-se, como que para sacolejar a caixa das lembranças, atirou<strong>um</strong>a perna para cima da outra, curvou o busto, agarrou o queixo, carregou o cenho."Diabo!" De repente, riu-se, <strong>de</strong>u-me <strong>um</strong>a tapona no joelho e exclamou:— "Já sei! Uma cabrochinha, não é isso?"Conservei-me calado, mandando em espírito, o idiota do boticário a todos osmil <strong>de</strong>mônios. Aliviado, voltei-me para ele, frio:38


www.nead.unama.br— "Desistamos, oh amigo Fabiano José <strong>de</strong> Figueiredo Alves."— "Figueiredo, não; Azevedo."— "Ou isso."Eu estava convencido <strong>de</strong> que Fabiano não queria era lembrar-se <strong>de</strong> Rufina.Impossível que se tivesse realmente esquecido <strong>de</strong>ssa criatura maviosa e rara.Conhecia mulheres como <strong>um</strong> recenseador: <strong>um</strong>a gorda, <strong>um</strong>a alta, <strong>um</strong>a parda, foramuitas outras que não referiu; e não se recordava da única que valia a pena! Gran<strong>de</strong>ordinário.Percorremos <strong>um</strong>as quatro ou cinco quadras em silêncio. Eu nem sequerolhava para a cara <strong>de</strong> Fabiano. A certa altura, perguntou-me se sabia o nome damoça.— "Rufina."— "Hein?!"— "Rufina."Fabiano olhou para mim e disparou a rir.— "Já sei, meu caro, já sei!"— "Mas porque essa risada?"— "Ah! Já sei, meu amigo, já sei. .. Olhe, ela nunca se chamou Rufina. QualRufina, nem meia Rufina!... É boa! Ela é Augusta, meu caro amigo. Augusta,enten<strong>de</strong>u? Rufina... É boa! Quiá, quiá, quiá...""Mas... Então, conhece-a?..."— "Pchê! Há muito tempo. Uma rapariga magra, moreno-mate, com o narizlevemente rebitado, o queixo saliente, não é isso? Conheço muito. Chama-seAugusta, mora ali para as bandas do cemitério. Boa fazenda coitada!"Desmoronei. Só ao cabo <strong>de</strong> longos e dolorosos minutos pu<strong>de</strong> reconstruir-me<strong>um</strong> pouco, firmar-me <strong>um</strong> pouco em cima <strong>de</strong> mim mesmo, e perguntar com voz s<strong>um</strong>ida:— "Mas, então, esse nome <strong>de</strong> Rufina?"— "Muito simples. Bestice do coronel Ferrão, <strong>um</strong> velho meio pancada— bempancada, aliás — que tinha a mania <strong>de</strong> lhe dar esse nome."— "E por que?"— "Por nada, burragem <strong>de</strong>le. Gostava <strong>de</strong> trocar os nomes, fazia isso comtoda a gente. Tinha <strong>um</strong> sobrinho, o Bentoca, Bento Felizardo Ferrão, homemrespeitável, atacadista ali no centro: chamava-lhe Esmeraldino, até diante dosempregados, na loja. O Viana, era para ele Pascoal, <strong>um</strong> dia; outro dia, era Bonifácio.A mim, quis-me <strong>um</strong>a vez batizar por Crispiniano, mas eu, pan! Barrei-o logo: Às suasor<strong>de</strong>ns, seu Januário. Danou-se — ora, imagine: danou-se, o bestiaga! — e nãofalou mais comigo."Emu<strong>de</strong>ci. Fabiano continuava, mas já não o entendi daí por diante. A versátilindiferença do boticário chocava-me como <strong>um</strong>a sem-vergonhice irritante, <strong>de</strong> sujeitosem alma, sem o senso piedoso e comovido da miséria h<strong>um</strong>ana. Mas Fabiano afinalera <strong>um</strong> bom homem: isto é, <strong>um</strong> tipo fútil e feroz como soem ser os homens <strong>de</strong> juízo.Oh! N'insultez jamais une femme qui tombe!39


www.nead.unama.brMas não é isso, oh poeta, não é isso o pior. O horrendo é esta indiferença,esta sorri<strong>de</strong>nte indiferença, esta familiar e brincalhona ferocida<strong>de</strong>, aérea, difusa,impalpável, com que se consi<strong>de</strong>ra <strong>um</strong> ser h<strong>um</strong>ano, com que se fala <strong>de</strong> <strong>um</strong>a pobremulher — logo <strong>de</strong> <strong>um</strong>a mulher! De <strong>um</strong>a triste mulher e do seu <strong>de</strong>stino, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a mulherbela, graciosa e miseranda; <strong>de</strong> <strong>um</strong>a mulher que tem toda a massa <strong>de</strong> que se fazem asmães e os anjos da terra, — e com uns olhos tão gran<strong>de</strong>s, tão úmidos, tão l<strong>um</strong>inosos!— "Mas porque é que queria saber" indagou o boticário, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>um</strong>a pausa.— "À-toa, Fabiano."— "Pois olhe, é fácil."Encarei-o <strong>de</strong> <strong>um</strong> modo que <strong>de</strong>via ter-lhe parecido esquisito, pois calou-se eficou sério. E não se falou mais nisto.JUSTIÇAÍamos hoje para a cida<strong>de</strong> na marcha habitual, nem muito rápida, nempropriamente vagarosa. Circunstância notável, se bem que ordinária— o bon<strong>de</strong> nãocorreu nem por <strong>um</strong> instante fora dos trilhos. Entretanto, chocou <strong>de</strong> repente com <strong>um</strong>automóvel, e surgiu <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> discussão a respeito <strong>de</strong> se saber a quem tocava aculpa, se ao motorista, se ao chauffeur.Entrou em função o juiz que há <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> cada indivíduo, e as sentençasdivergiam.— "Foi esse negrinho estúpido," dizia <strong>um</strong>, indigitando o chauffeur.— "O culpado é esse louco <strong>de</strong>sse portuga," asseverava outro, referindo-seao motorista.— "Ca<strong>de</strong>ia com eles, é o que eu vivo a dizer."— "Qual! Só a pau."— "Por milagre não houve coisa muito pior: olhe como ficou a máquina."— "Foi pena que não ficasse ainda mais escangalhada, era menos <strong>um</strong>a."— "Mas o bon<strong>de</strong> podia bem ter parado a tempo."— "Não podia, aqui é <strong>um</strong> <strong>de</strong>clive."— "Seu guarda, o culpado é o chauffeur."— "Não, seu guarda, o culpado é o motorneiro."E cada juiz era também <strong>um</strong> partidário, ou do lado do homem do bon<strong>de</strong>, oudo lado do homem do automóvel. Por simpatia física, por espírito <strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong>ou <strong>de</strong> raça, por disposição mais favorável a <strong>um</strong>a das classes <strong>de</strong> automedontes, porter ou não automóvel, por ter ou não ter <strong>um</strong> parente chauffeur ou automobilista, pormero palpite, cada <strong>um</strong> propen<strong>de</strong>u imediatamente para <strong>um</strong>a das bandas.Mas, valha a verda<strong>de</strong>, havia também homens imparciais, por exceção. Um<strong>de</strong>stes, abanando a cabeça, e afastando-se do burburinho, me pon<strong>de</strong>rou tranqüilamente:— "Ora, ora! Quem foi, quem não foi... Eu o que fazia era pegar nos dois esocá-los no xilindró: é aí, seus danados! Esta corja..."MODÉSTIA40


www.nead.unama.brFranklin Penha <strong>de</strong>ra-me hoje a impressão <strong>de</strong> <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> fátuo. Viu-me nobon<strong>de</strong> e c<strong>um</strong>primentou-me com excessiva amabilida<strong>de</strong>, com regozijada surpresa,como se tivesse <strong>de</strong>scoberto em mim, <strong>de</strong> repente, alg<strong>um</strong> encanto inédito. E eu nemsequer tinha a barba feita. O motivo não tardou a aparecer. O que Franklin pretendiaera capturar a minha atenção e boa vonta<strong>de</strong> para <strong>um</strong>a notícia <strong>de</strong> jornal que traziarecortada, no bolso, e lhe pesava como <strong>um</strong>a barra <strong>de</strong> ouro. A notícia era mais o<strong>um</strong>enos a seguinte:"O Senhor Doutor Franklin da Costa Penha, conceituado advogado do nossoforo e futuroso cultor do nosso passado, acaba <strong>de</strong> ser nomeado sóciocorrespon<strong>de</strong>nte do Instituto Histórico e Geográfico do Estado <strong>de</strong>..., por indicação,unanimemente aprovada, do eminente historiógrafo brasileiro Sr...."— "Parabéns, bichão."— "Oh!"Apesar <strong>de</strong>sse oh! Franklin estava realmente satisfeito, mais talvez do que oseu venerando xará <strong>de</strong>pois que eripuit fulminen, etc. Guardou o retalho na carteira,quase a afagá-lo com as pontas dos <strong>de</strong>dos, como se fosse <strong>um</strong> aéreo tecido <strong>de</strong> seda;arr<strong>um</strong>ou a carteira no bolso e, confi<strong>de</strong>ncial e grave:— "Não; eu, <strong>de</strong> fato, para ser franco, fiquei muito contente. Eu sou assim.Tenho ainda alg<strong>um</strong>a coisa do menino <strong>de</strong> colégio, que se ufana dos prêmiosrecebidos. Puerilida<strong>de</strong>. Pura, insofismável puerilida<strong>de</strong>. Eu podia contar-lhe esta novaassim com <strong>um</strong> arzinho <strong>de</strong> quem não ligava, negligentemente, como por <strong>um</strong>alembrança <strong>de</strong> acaso. Podia ter-lhe dito que o fato me agradava por este ou poraquele motivo nobre; pelo prazer que teriam lá em casa, pela recomendação queestas distinções representam no seio <strong>de</strong> <strong>um</strong>a burguesia bobalhona... Enfim qualquercoisa por esse gosto. Mas tudo isso não seria senão hipocrisia. A verda<strong>de</strong> pura éque fiquei contente por mim mesmo, pela própria distinção em si; contente <strong>de</strong>veras,cheio <strong>de</strong> contentamento como <strong>um</strong> balãozinho <strong>de</strong> goma elástica cheio <strong>de</strong> ar. Eu souassim. "Mas também, amanhã ou <strong>de</strong>pois, já estarei resfriado; nem me lembrareimais <strong>de</strong> que fui eleito sócio correspon<strong>de</strong>nte. Depen<strong>de</strong> <strong>de</strong> eu querer alcançar <strong>um</strong>aoutra tetéia que no momento me seduza."Franklin dizia-me estas coisas com tanta simplicida<strong>de</strong> e com <strong>um</strong> l<strong>um</strong>e tãosincero nos olhos, que tudo lhe aceitei como vera confissão. E absolvi-o. Não, elenão é fátuo. É talvez mesmo o oposto do fátuo, <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>sto.Modéstia, afinal, não é isso? A verda<strong>de</strong>ira não é aquela que se proíbe amínima expansão <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>. Os indivíduos que se proíbem a menor <strong>de</strong>monstração<strong>de</strong> vaida<strong>de</strong> são quase sempre os mais vaidosos dos vaidosos. Preten<strong>de</strong>m, sonham,invejam, sofrem e gozam tanto quanto os outros, com a única diferença <strong>de</strong> quepõem abafos a isso tudo e, além <strong>de</strong> tudo, ainda querem fruir a reputação <strong>de</strong> serextraordinariamente mo<strong>de</strong>stos. Há mesmo cidadãos que <strong>de</strong>vem a maior parte doseu renome à sua modéstia ou à sua preguiça. O pouco que dão <strong>de</strong> si, dão comopassatempo, como capricho ou brinco <strong>de</strong> <strong>um</strong> momento, como efeito <strong>de</strong> imposiçõesalheias, como necessida<strong>de</strong> ocasional. Por si mesmos, não, não querem nada,querem sossego! Mas o seu maior gozo é quando os admiradores exclamam: "Ah!Se este safado se resolvesse a trabalhar!" Vaidosos dobrados, têm várias vaida<strong>de</strong>slá <strong>de</strong>ntro, presas e gordas como perus <strong>de</strong> galinheiro, e ainda por cima se <strong>de</strong>liciam,epicuristicamente, com a vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong> não ter nenh<strong>um</strong>a vaida<strong>de</strong>, que é a mais vá, amais falsa, a mais loucamente ambiciosa <strong>de</strong> todas.41


www.nead.unama.brO mo<strong>de</strong>sto verda<strong>de</strong>iro não é o que se envergonha das suas vaida<strong>de</strong>s, éaquele que lhes dá expansão, reconhecendo-as, porém com bonomia como tais,sem lhes emprestar outros nomes, nem estar com ro<strong>de</strong>ios e mentirolas. Somente,possuir a clara consciência <strong>de</strong>las é automaticamente reduzi-las. Dar-lhes expansão,assim, é rarefazê-las. É torná-las exteriores, superficiais e passageiras, como <strong>um</strong>suor, como escamazinhas eruptivas da pele, como secreções, coisas que aeconomia orgânica <strong>de</strong> <strong>um</strong> corpo são, normalmente engendra e rejeita. Uma limpeza,<strong>um</strong>a "catársis", <strong>um</strong> arejamento, <strong>um</strong> alívio.Gozar as próprias vaida<strong>de</strong>s com sincera e inocente imprudência é o melhormeio <strong>de</strong> lhes sentir a vacuida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> as tornar inócuas, <strong>de</strong> acabar por <strong>de</strong>sprezá-las eperdê-las. Permitir-lhes que levantem o vôo é <strong>de</strong>ixar que se vão embora.Alegrar-se alguém abertamente com os seus pequenos triunfos é <strong>um</strong> modoamável <strong>de</strong> se confessar bem gratificado. Saudável fusão <strong>de</strong> bonomia, conformida<strong>de</strong>e <strong>de</strong>sprendimento: modéstia, enfim; a boa, a legítima, a pura. A única.Todo o mal da vaida<strong>de</strong> está nos sentimentos e nos cálculos que se lheajuntam, que a mascaram, a pervertem, a envenenam, a entranham na alma,hipertrofiando-a, dando-lhe por vezes a figura hidrópica <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>s austeras, <strong>de</strong>ssasque merecem lápi<strong>de</strong>s em latim. — É assim que se formam esses veneráveiscavalheiros amargos que santamente o<strong>de</strong>iam todas as manifestações brilhantes ealadas da vida, esses gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sambiciosos que se vingam em todo o mundo <strong>de</strong>não po<strong>de</strong>rem confessar ambições, esses perpétuos caluniadores que enxameiam ez<strong>um</strong>bem, como varejeiras pesadas e tontas <strong>de</strong> sânie, em redor <strong>de</strong> cada <strong>de</strong>sgraçadocujo nome não ficou soterrado como o <strong>de</strong>les na própria impotência.Nietzsche teve razão — o que alg<strong>um</strong>as vezes lhe acontece por maneirafulmínea — quando disse que as paixões, em seu estado puro, são boas. Apenashaverá nisso exagero. São boas porque são naturais, porque são o próprio homem.O que as torna más, corrompendo-as envilecendo-as, é a hipocrisia, que asdissimula intensificando-as no entanto; que as enfeita por fora, como serpentes, masdá-lhes o veneno e a insídia; que as oculta e as <strong>de</strong>svia <strong>de</strong> seus fins imediatos, clarose geralmente saudáveis, para as pôr ao serviço <strong>de</strong> afetos nobres e <strong>de</strong> longos,tenazes e engenhosos ressentimentos.Menos ousado, Augusto Comte apenas reconhece à vaida<strong>de</strong> — <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>aprovação — direitos <strong>de</strong> cida<strong>de</strong> na sua moral sociocrática; mas...... Mas que Nietzsche! Que Comte! Que Fulano ou Beltrano! Antes <strong>de</strong> todoseles, o Eclesiastes havia proclamado, para todo o tempo, que tudo é vaida<strong>de</strong> nestemundo.Dessa e <strong>de</strong> outras afirmações se tirou apressadamente a ilação <strong>de</strong> que ocristianismo nascente votava <strong>um</strong> ódio entranhando à vida. Mas ele não fazia senãopôr o <strong>de</strong>do na latejante verda<strong>de</strong>, na dolorosa e re<strong>de</strong>ntora verda<strong>de</strong>. Era <strong>um</strong>alibertação e <strong>um</strong> alívio que ele trazia: tornaram-no <strong>um</strong> torvo con<strong>de</strong>nador da vida. Era<strong>um</strong>a reação contra o formalismo, a pedantaria, a artificiosida<strong>de</strong> hipócrita do judaísmoliteralizante e manhoso, <strong>um</strong>a revolta do espírito, <strong>um</strong>a insurreição <strong>de</strong> veracida<strong>de</strong>heróica, alegre triunfal da nossa miséria".Sim, tudo é vaida<strong>de</strong>; sim, o homem é mau; sim, somos o verme da terra.Pois, sejamos vaidosos, sejamos maus, sejamos vermes, francamente, <strong>de</strong> cara<strong>de</strong>scoberta, <strong>de</strong> alma leve, com a lavada e impu<strong>de</strong>nte sincerida<strong>de</strong> da flor e da fera, àluz do Sol e à face <strong>de</strong> Deus, na perpétua h<strong>um</strong>ilda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong>a confissão total etranqüila! Não queiramos converter velhacamente a larga realida<strong>de</strong> com<strong>um</strong> da nossapobreza em falsas opulências <strong>de</strong> exceção. Quem se abaixa é que será exaltado: sóquem se reconhece tal qual é, ou tal qual somos, achará em si mesmo a verda<strong>de</strong>ira42


www.nead.unama.brforça purificadora e ascensional, que não mente nem quebra. Confessemo-nossinceramente a Deus, e Deus a todos os h<strong>um</strong>il<strong>de</strong>s perdoa e sustém.Como é que a tola perversida<strong>de</strong> h<strong>um</strong>ana pô<strong>de</strong> converter a clara e benéficafonte <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> alegria, que há no fundo <strong>de</strong>ssa viril visualização cristã davida, nesta coisa sombria e horrenda, nesta mascarada <strong>de</strong> mistificações, nestepesa<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> atrozes artifícios, neste abominável Santo Ofício <strong>de</strong> i<strong>de</strong>alismoshipócritas e peçonhentos e <strong>de</strong> mútua espionagem, que a socieda<strong>de</strong> instituiu <strong>de</strong>ntro<strong>de</strong> si mesma e carrega no seio como <strong>um</strong> rolo esfervilhante <strong>de</strong> víboras?Jesus claro, natural e harmonioso como a Verda<strong>de</strong>, até fabricou vinho emCaná para a jovialida<strong>de</strong> simples dos homens...A modéstia é <strong>um</strong>a virtu<strong>de</strong> imensuramente prezada pelo gran<strong>de</strong> número.Todos a veneram. Todos a exigem dos outros. Por que? Mas, evi<strong>de</strong>ntemente, porciúme e inveja. Não há ninguém mais mo<strong>de</strong>sto do que as velha chupadas,arrependidas... De não haverem pecado. — Não po<strong>de</strong>ndo suprimir os méritos <strong>de</strong>quem os tem, quer-se que ao menos o possuidor não os reconheça, ou finja não osreconhecer; quer-se diabolicamente aguar, estragar, atormentar com dúvidas, comacanhamentos, com terrores e com escrúpulos o prazer natural, irreprimível ecapitoso que ele possa provar. Assim, mais ou menos, falou Zaratustra.A moral social é <strong>um</strong>a formidável conspiração <strong>de</strong> todos contra cada <strong>um</strong>, parao triturar, perverter, o <strong>de</strong>svirilizar, o reduzir a <strong>um</strong> ser lamentoso e tortuoso, <strong>um</strong>aleijado sofredor, grotesco e malfazejo. O pátio dos Milagres!O envai<strong>de</strong>cido enrosca-se e enclavinha-se em si mesmo. Em vez <strong>de</strong> lançarao vento as suas pequenas fatuida<strong>de</strong>s e libertar-se <strong>de</strong>las, ele as recolhe, asac<strong>um</strong>ula, as afunda lá <strong>de</strong>ntro, e as recoze, e as cultiva em sigilo, como <strong>um</strong> fabricante<strong>de</strong> venenos, com toda a sorte <strong>de</strong> cautelas, <strong>de</strong> temores, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sculpas, <strong>de</strong> artifícios,<strong>de</strong> equívocos, <strong>de</strong> dissimulações, e aí temos <strong>um</strong>a franqueza quase inocenteconvertida, pelo farisaísmo da virtu<strong>de</strong>, n<strong>um</strong>a podriqueira secreta!Só o indivíduo que experimenta prazeres <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>, sem se enganar sobrea natureza <strong>de</strong>les, assistindo a essas experiências do sentimento como <strong>um</strong> lúcidoespectador <strong>de</strong> si mesmo, só este é capaz <strong>de</strong> modéstia. Se alg<strong>um</strong> há que não osconheça, esse não é propriamente <strong>um</strong> mo<strong>de</strong>sto, é <strong>um</strong> que nasceu com <strong>um</strong>a falhapsicológica, como outros nascem privados da vista ou com <strong>um</strong> pé atrofiado. Não temmérito alg<strong>um</strong>. Tem <strong>um</strong> <strong>de</strong>feito <strong>de</strong> nascença.A modéstia é a vaida<strong>de</strong> que sorri <strong>de</strong> si mesma. E nesse sorriso vai oquant<strong>um</strong> satis <strong>de</strong> contra-veneno.A boa modéstia é a vaida<strong>de</strong> que sorri <strong>de</strong> si mesma para não se rir dasoutras, e que às vezes ar<strong>de</strong> e se sublima na chama do sorriso — como <strong>um</strong> balão <strong>de</strong>papel se <strong>de</strong>strói e <strong>de</strong>saparece na própria chama que o eleva.A vaida<strong>de</strong> paga regiamente as suas culpas. Quantos artistas crucificados nasua obra, vertendo sangue e clarões!A boa modéstia é aquela que doma as suas vaida<strong>de</strong>s e as subjuga aodomínio <strong>de</strong> <strong>um</strong>a paixão forte e bela, como os tigres que puxavam o carro <strong>de</strong> Dionísios.A serpente, às vezes, gasta o seu veneno em botes aos raminhos que bolemou às sombras que passam, e assim se torna inócua ao picar <strong>um</strong>a rês ou <strong>um</strong>homem. A vaida<strong>de</strong> é muitas vezes como a cobra.À vaida<strong>de</strong> parece <strong>de</strong>ver-se também <strong>um</strong>a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> horrores:assassínios, roubos, atrocida<strong>de</strong>s, suicídios. Na realida<strong>de</strong>, ela <strong>de</strong>sempenha apenas opapel <strong>de</strong> <strong>um</strong> purgante orgânico da comunida<strong>de</strong> social. Em muitos casos, se a <strong>um</strong>asó causa se po<strong>de</strong>m filiar coisas tão complexas, é a modéstia que <strong>de</strong>ve serresponsabilizada. Convertida em mandamento irretorquível, comprime e abate a43


www.nead.unama.brnatureza h<strong>um</strong>ana e a obriga a esses longos <strong>de</strong>svios e absurdas transferências dapaixão inextirpável, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> se afirmar. O excesso <strong>de</strong> modéstia po<strong>de</strong> prolongarseaté ao cinismo, e à <strong>de</strong>linqüência.UMA ROSAGanhei <strong>um</strong>a rosa e <strong>um</strong>a experiência. Deu-me aquela, no bon<strong>de</strong>, <strong>um</strong> homemvelho, ru<strong>de</strong> e chambão. Contraiu a afeição das flores já entrado em anos, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><strong>de</strong>senganado <strong>de</strong> feminilida<strong>de</strong>s há muitos. E eu tinha o amor das flores na conta <strong>de</strong> <strong>um</strong>puro reflexo <strong>de</strong> sentimentos sexuais, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a ondulação distante do culto da mulher.De fato o é; mas também po<strong>de</strong> ser outra coisa, como me prova este velhopuído e tristonho, que viu amanhecer em si o encanto das rosas quando já iam muitolonge as <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iras fagulhas do outro amor.Quem sabe se ele põe agora neste afeto <strong>um</strong> afã meio inconsciente <strong>de</strong>recuperar o tempo perdido para o coração? Como quer que seja, revelou-me como anatureza, contra toda lógica e toda expectativa, po<strong>de</strong> achar saídas novas eelegantes para as situações mais abatidas e ruinosas. Há nela <strong>um</strong>a capacida<strong>de</strong>virgem e in<strong>de</strong>finível <strong>de</strong> com que não cost<strong>um</strong>am contar os analisadores <strong>de</strong> almas,que pensam <strong>de</strong>smontar-lhes as peças como a mecanismos, e não fazem senãojogar com esquemas e conceptos.Tudo, neste homem, indicaria <strong>um</strong>a carreira fatal para o embrutecimeno e aprostração. Ida<strong>de</strong>, doenças, <strong>de</strong>cepções, rupturas, arrancamentos, sauda<strong>de</strong>s,rancores, <strong>de</strong>sesperança. Devia acabar no <strong>de</strong>sânimo e na tristeza aparvalhada doanimal que procura <strong>um</strong> recanto esquecido para morrer. Pois, nada disso. Viu aindaflorir em si, <strong>de</strong> repente, <strong>um</strong> novo amor e <strong>um</strong>a alegria, <strong>um</strong>a doçura e <strong>um</strong>a esperançanovas. Uma nova forma <strong>de</strong> ingenuida<strong>de</strong> fresca e gentil. Uma ressaca <strong>de</strong> mocida<strong>de</strong>.Dir-se-ia que todas as suas mágoas e misérias se haviam convertido n<strong>um</strong>aenergia clara e imprevista <strong>de</strong> nascente gorgolejante Que todo o cisco do seupassado, em montão, a cons<strong>um</strong>ir-se ao sol e à chuva, fecundara a terra e <strong>de</strong>ra-lhesombra e <strong>um</strong>ida<strong>de</strong> para que brotasse lá em baixo <strong>um</strong>a semente ignorada, e que asemente se fizera broto, e o broto crescera e atravessara os <strong>de</strong>stroços apodrecidospara vir oferecer à luz a flâmula ver<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong>a fron<strong>de</strong>zinha viçosa.A vida vive em nós! Ai, se nos convencêssemos bem <strong>de</strong> que é a Vida quevive em nós... A Vida, senhora eterna <strong>de</strong> todas as germinações.AINDA A ROSAA rosa que o meu amigo velho me <strong>de</strong>ra anteontem ainda estava hoje bempassável. Olhei-a, pela manhã, quando lavava o rosto, e achei-lhe <strong>um</strong> encantodorido <strong>de</strong> mulher bonita que, em pleno solstício <strong>de</strong> encantos, <strong>de</strong> repente se vêmarcada pelos primeiros gorgulhos do tempo.Esborrifei-lhe <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong> água, e disse-lhe: "Que será <strong>de</strong> si amanhã,minha rosa?" As rosas sabem falar, e para ouvir e enten<strong>de</strong>r o que elas dizem não épreciso amar alg<strong>um</strong>a senhora, como, segundo o poeta, se requer <strong>de</strong> quem <strong>de</strong>sejeouvir as estrelas. E a rosa, com soberba indiferença, respon<strong>de</strong>u: "Que será <strong>de</strong> mim?Olha esse grosseiro antropomorfismo, néscio animal! Então tu julgas que nós outrassomos feitas da tua massa? Para mim e minhas irmãs todas as voltas do mundo sãoas mesmas. Eu, amanhã, não serei nada que tu aprecies, mas aí ficam infinida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> rosas <strong>de</strong>sabrochadas e por <strong>de</strong>sabrochar. E todas elas são eu mesma, porque eusou todas, e não <strong>de</strong>sapareço, nem suc<strong>um</strong>bo".44


www.nead.unama.brMuito bem, muito bem. Em todo caso, como rosa individual, a minha duravabastante. Malherbe assinou a esta flor, como prazo fixo <strong>de</strong> vida l'espace d'un matin,e entretanto é geralmente sabido que ela po<strong>de</strong> durar dois ou três dias, e mais. Mastambém está geralmente convencionado que, para os efeitos poéticos, há <strong>de</strong> durar<strong>um</strong>a só manhã.Verda<strong>de</strong>s duplas, assim, há muitas, há tantas que o mundo está cheio <strong>de</strong>las.A borboleta, símbolo da volubilida<strong>de</strong> na poesia, é com efeito <strong>um</strong>a excelenteimagem da constância, porque só faz in<strong>de</strong>finidamente a mesma coisa.A abelha, essa dizem que é o tipo do ecletismo intelectual ou sentimentalque saqueia a corola <strong>de</strong> todas as flores; na verda<strong>de</strong>, é a representação mais fiel dainflexibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> princípios, pois que não visita senão as flores que lhe forneçammatéria-prima, e <strong>de</strong>las não quer senão a pequenina dose <strong>de</strong> matéria-prima quepossam dar.O gato consi<strong>de</strong>rado como <strong>um</strong> animal <strong>de</strong> caráter in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, vive <strong>de</strong> fatona estreita <strong>de</strong>pendência própria dos parasitas, não sabendo senão estar nascozinhas e nos telhados; gravitando em redor da paparoca preparada.À palmeira, chamam-lhe esbelta e soberba, ou altiva, ou senhoril. Não há oque se lhe oponha, porque, realmente, a gente po<strong>de</strong> dar às coisas os adjetivos quequiser, não havendo contrarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>clarada; mas é muito <strong>de</strong> notar que, assimcomo a palmeira é esbelta e senhoril, também po<strong>de</strong>ria ser senhoril e esbelto <strong>um</strong>espanador <strong>de</strong> cabo comprido, ou <strong>um</strong>a vassoura do tipo antigo, trastes estes havidoscomo s<strong>um</strong>amente prosaicos.O boi, símbolo da força, é <strong>um</strong> colosso tão frágil que passa da mocida<strong>de</strong> à<strong>de</strong>crepitu<strong>de</strong> em meia dúzia <strong>de</strong> anos, e possui muitíssimo menos energia ativa do que<strong>um</strong>a formiga ou <strong>um</strong>a pulga. E a águia, emblema do gênio, porque tem asas e vivenas alturas, é menos inteligente do que <strong>um</strong>a galinha e nem sofre comparação com ocastor, que passa a existência no fundo dos vales e no lamaçal dos rios.Enfim, não se contam as verda<strong>de</strong>s, duplas que todo o mundo enxerga, oupo<strong>de</strong>ria enxergar, mas <strong>de</strong>liberadamente separa e torna reciprocamente estanques. Enão só no que respeita ao mundo objetivo, mas também no que se refere ao própriodomínio subjetivo da experiência moral.A economia é <strong>um</strong>a virtu<strong>de</strong>, quando se põem sobre ela os óculos simpáticosda generalização poética; a economia, em seus casos concretos, é sempre <strong>um</strong>ain<strong>de</strong>cenciazinha <strong>de</strong> que nos envergonhamos e que satirizamos nos mais."O amor é a mais bela e a mais santa das coisas <strong>de</strong>sta vida": mas ninguémtorne esse conceito como preceito porque se arrisca a ser apedrejado na praça."A calúnia é o fel das almas ignóbeis": na realida<strong>de</strong>, a calúnia é <strong>um</strong> vício tãogeneralizado e tão familiar como o do cigarro; e quem não o cultivar está noperpétuo risco <strong>de</strong> passar por idiota ou por "jesuíta".Mas, afinal <strong>de</strong> contas, esses <strong>de</strong>sdobramentos da verda<strong>de</strong> são úteis, porquecorrespon<strong>de</strong>m a duas tendências fundamentais do espírito h<strong>um</strong>ano: a que visa aadaptação <strong>de</strong>ste à natureza, e a que procura a sua adaptação à socieda<strong>de</strong>.A primeira proce<strong>de</strong> por via <strong>de</strong> indagações meticulosas e serenas; a segundamarcha por meio <strong>de</strong> conceituações imediatas e sínteses arrojadas.A primeira é lenta, dificultosa e fatigante; a segunda é rápida, leve e encantadora.A primeira fornece exercício a <strong>um</strong>a minoria <strong>de</strong> cabeças, especializa e<strong>de</strong>smembra funções, e como que pulveriza a continuida<strong>de</strong> e a fluência do real n<strong>um</strong>ainfinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> corpúsculos gelados; a segunda comunica impulsos a toda a sorte <strong>de</strong>mentes, aproxima-as, harmoniza-as, estimula a imaginação e a simpatia, dando a45


www.nead.unama.brtodas a mesma concepção aproximativa das coisas, <strong>de</strong>formante masagradavelmente fácil, ampla e satisfatória.A primeira prepara o viveiro das verda<strong>de</strong>s exatas e necessárias <strong>de</strong> amanhã;a segunda alarga o domínio das verda<strong>de</strong>s agradáveis e convencionais provisóriaspara uns, perpétuas para a maior parte.Instinto <strong>de</strong> saber, instinto <strong>de</strong> poesia. Dois irmãos inimigos, que não po<strong>de</strong>mviver <strong>um</strong> sem o outro.Posta <strong>de</strong> parte essa parlenda, o fato é que a resposta da rosa mais meenamorou <strong>de</strong>la. Enfiei-a na botoeira, apesar <strong>de</strong> já meio fanada. — Precisei, paratanto, <strong>de</strong> <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão e atrevimento, pois nunca uso flores comigo, nemmesmo frescas. Audácia <strong>de</strong> carneiro. Atrevimento <strong>de</strong> cágado.Instalado no bon<strong>de</strong>, semicerrados os olhos, e sentindo na face a carícia <strong>de</strong><strong>um</strong>a pétala pen<strong>de</strong>nte, instiguei a minha interessante companheira a falar ainda,antes que alg<strong>um</strong> golpe <strong>de</strong> vento ou alg<strong>um</strong> encontrão a <strong>de</strong>spojasse da sua voz feita<strong>de</strong> cor e perf<strong>um</strong>e. Não se fez <strong>de</strong> rogada."Não sabes, amigo? Tal como aqui me vês, sou filho do conúbio do homeme da natureza... Tanto <strong>de</strong>vo o ser ao solo, ao sol, ao ar, como ao espírito, à arte e àmão h<strong>um</strong>ana.Sou <strong>um</strong> produto da terra e da civilização: duplamente flor <strong>de</strong> cultura.Sou ao mesmo tempo a glória <strong>de</strong> Flora e a mais perfeita das flores artificiais.Tendo o viço hereditário das rosas selváticas e a aura h<strong>um</strong>ana das rosas <strong>de</strong> papel e<strong>de</strong> tecido, armadas por magras mãos <strong>de</strong> operárias tristes, mãos febris <strong>de</strong> moçasnamoradas.O homem faz-me, cheio <strong>de</strong> suas vaida<strong>de</strong>s, seus <strong>de</strong>sejos, suas ambições,seus sobejos <strong>de</strong> carinhos, seu saber, seu gosto amável, paciente e caprichoso.Assim, <strong>um</strong>a infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> forças diversas vêm-se coor<strong>de</strong>nando e vêm colaborando,através dos séculos, na seleção das minhas formas, dos meus tons e dos meusolores— florindo e reflorindo em mim.De mim, pois, apren<strong>de</strong>, homem tolo e ingrato! A olhar a tua h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong> nãotanto na sombria confusão dos seus galhos e ramas, como na vária e fugitivapermanência das suas flores, ou no perpétuo esplendor das suas graças transitórias.Ama-a com todos os seus vícios e brutezas, com todos os seus primores epulcritu<strong>de</strong>s.Não há vícios, não há primores, há só o homem. O homem e nada mais. Ohomem in<strong>um</strong>erável, incomportável e in<strong>de</strong>finível. O homem que te ultrapassa noespaço e no tempo, e cujos últimos limites partem do centro da terra e vão per<strong>de</strong>r-senas constelações.Perdoa-lhe tudo, tudo. Perdoa-lhe simplesmente. Sem gestos e sem frases.Perdoa-lhe mesmo na cólera e na angústia. Reserva-lhe ao menos <strong>um</strong>a promessa<strong>de</strong> perdão no infinito, até para o que não possas, até para o que não <strong>de</strong>vas perdoar.Se tudo, nele, coopera na produção <strong>de</strong>stes milagres <strong>de</strong> melindroso eincorruptível prestigio!Milagres em que o fugitivo se confun<strong>de</strong> com o permanente, e o encanto <strong>de</strong><strong>um</strong>a hora é <strong>um</strong> sorriso dos séculos.Passam as catedrais, esfarelam-se os granitos e os bronzes, <strong>de</strong>sagregamseos impérios, e as nações dissolvem-se, mas eu permaneço na minha <strong>de</strong>liciosainsignificância, Como a última confidência <strong>de</strong> ternura e <strong>de</strong> beleza que as geraçõeslegam <strong>um</strong>as as outras através dos abismos do tempo.Sou a obra mais duradoura do homem. Não há ferrugem nem verme, nemguerras nem sinistros que me atinjam.46


www.nead.unama.brVê como <strong>um</strong>a coisa assim pequenina e branda vem a ser o único triunfocom<strong>um</strong> das energias contraditórias <strong>de</strong>rramadas pela face da terra!Eis-me aqui, doce como <strong>um</strong> afago, leve como <strong>um</strong>a asa, breve como <strong>um</strong>sonho, mas forte como o que permanece e perdura, imorredoura e essencial como alágrima e como o sorriso, esses dois res<strong>um</strong>os h<strong>um</strong>anos da infinita comédia, e dainfinita alegria do universo...Serve-me com os olhos, aspira-me, grava-me na alma. E sabe que nuncafaltarei ao pé <strong>de</strong> ti, se o quiseres.Busca-me, achar-me-ás. Eu só <strong>de</strong>sapareço <strong>de</strong> teus olhos para que em ti serenove a ânsia pela minha presença.Toda a perene agitação do mundo parece não ter outro fim que produzir <strong>um</strong>aesp<strong>um</strong>a <strong>de</strong> rosas. Nada tão ao alcance da tua mão.Colhe, beija e sorri.Nesse minuto estarás n<strong>um</strong> pináculo da vida e n<strong>um</strong> ponto l<strong>um</strong>inoso daeternida<strong>de</strong>.Eu sou a Rosa, eu sou a Rosa, a beleza e a graça fugentes, a doce filha daterra vil e do homem <strong>de</strong>sgraçado...UM FIO DE CABELOAquela moça espigada que entrou no bon<strong>de</strong> com o ímpeto ágil <strong>de</strong> <strong>um</strong>gafanhoto e ficou sentada ao meu lado, nunca imaginaria que fosse causa possível<strong>de</strong> <strong>um</strong>a pequena tragédia.Entrou, sentou-se, tão isenta, como diria o Camões, tão longe <strong>de</strong> mim quesentia a irradiação das suas calorias! Viçosa, inocente e jocunda como <strong>um</strong> cacho <strong>de</strong>flores <strong>de</strong> resedá arrancado ao galho pela manhã, tinha a afilada silhueta <strong>de</strong> <strong>um</strong>a girlesportiva e a <strong>de</strong>spachada simplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> rapaz. Tirou a espécie <strong>de</strong> boina quetrazia na cabeça, agitou o nevoeiro <strong>de</strong> fogo do cabelo, ajeitou-o com as mãos, <strong>de</strong>leve, como se lhas queimasse, e minutos <strong>de</strong>pois, repondo o gorro, partia, n<strong>um</strong> outrosalto <strong>de</strong> gafanhotinho brincalhão.Jeunesse <strong>de</strong> visage et jeunesse <strong>de</strong> coeur!Quando cheguei a casa, tinha no ombro <strong>um</strong> fio <strong>de</strong> cabelo, <strong>um</strong> fio <strong>de</strong> chama.Descobriu-o a criada, com <strong>um</strong> sorriso ingênuo e perverso. Pegou nele, <strong>de</strong>intrometida, examinou-o à luz da janela, e ia <strong>de</strong>ixá-lo cair quando eu, não mepo<strong>de</strong>ndo conter, exclamei: "Deus a faça careca, Manuela!" Manuela olhou-me comcara <strong>de</strong> surpresa e <strong>de</strong>sapontamento, como a pedir explicação. Não lha <strong>de</strong>i,limitando-me a assoviar uns compassos da Marcha <strong>de</strong> Cádis, para não lhe <strong>de</strong>ixar aimpressão <strong>de</strong> estar zangado, e retirei-me para o meu quarto.Na verda<strong>de</strong>, estava zangado. Aquele ato da pobre mulher apertara a molaao mecanismo das minhas melancolias. Pus-me a consi<strong>de</strong>rar os frutos <strong>de</strong>suspicácia, <strong>de</strong> bisbilhotice e <strong>de</strong> malignida<strong>de</strong> que a moral produz nas almas simples;e <strong>de</strong> reflexão em reflexão achei-me <strong>de</strong> repente imerso, mal sustendo a cabeça <strong>de</strong>fora, na imensurável e irremediável miséria da bicharia h<strong>um</strong>ana.E aí está como aquela menina, inocente como o é a Lua, dos raios que <strong>de</strong>ixacair, não esteve longe <strong>de</strong> ser causa <strong>de</strong> <strong>um</strong> <strong>de</strong>saguisado doméstico. Ao mesmotempo que alisava o cabelo, n<strong>um</strong> movimento <strong>de</strong> mãos e n<strong>um</strong>a dança <strong>de</strong> <strong>de</strong>dos levee aérea como <strong>um</strong> gorjeio, po<strong>de</strong>ria estar agitando a corrente <strong>de</strong> dois <strong>de</strong>stinosignorados e preparando <strong>um</strong>a pororoca longínqua.47


www.nead.unama.brAi! Por muito pobre que seja a imaginação dos malfazejos, os distúrbios queela consegue promover são pequena coisa diante do mal que todos fazemos unsaos outros pelo simples fato <strong>de</strong> existir.Não há pior aci<strong>de</strong>nte do que ocupar <strong>um</strong> lugar no espaço. Um simples fio <strong>de</strong>cabelo caindo <strong>de</strong> <strong>um</strong>a cabeça po<strong>de</strong> ser para alguém como o raio <strong>de</strong>struidor partindodo punho <strong>de</strong> Arimã. Vivemos assim <strong>um</strong>a eterna e terrível mitologia. Participamos danatureza dos <strong>de</strong>uses, ao menos para o mal. Só para o mal. A vida é a angústia doterror difuso e permanente.RETICÊNCIASEncontrei-me hoje no bon<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois do almoço, com o Nicolau Coelho.Como eu lhe dissesse, <strong>um</strong> dia, que lera com prazer a sua crônica sobre finados,<strong>de</strong>sse dia em diante se aproximou <strong>de</strong> mim, e não me vê sem que me venha apertara mão. Ainda hoje pagou a minha passagem.Conheço Nicolau <strong>de</strong>s<strong>de</strong> menino, fui amigo <strong>de</strong> seu pai, professor gratuito <strong>de</strong><strong>um</strong> dos seus irmãos, e nunca se julgara obrigado a usar <strong>de</strong> cortesias comigo. Passeia ser alguém para ele no dia em que lhe elogiei <strong>um</strong>a crônica, a ele que tantas e tãoaplaudidas tem escrito, a ele carregado <strong>de</strong> glórias.Nicolau, vendo-me no último banco, ergueu-se do seu e <strong>de</strong>sfechou-se <strong>de</strong> lá.Sacou <strong>de</strong> cinco tiras <strong>de</strong> papel e disse, com modéstia:— "Isto é curtinho... Gostaria que lesse, preciso da sua opinião."Fixei os meus olhos nos seus.— "Precisa da minha opinião?"— "Sim pois..."— "Mas isso é grave, meu amigo. Então a minha opinião vale?"— "Muito."— "Nesse caso, eu necessitaria ler com vagar, com toda a atenção."— "Mas, eu tenho <strong>de</strong> levar o original à folha. É curtinho. Lerá n<strong>um</strong> momento."Li. Li e não achei mal. Ao contrário. Certa harmonia agradável e constante,harmonia <strong>de</strong> forma, harmonia <strong>de</strong> fundo, feitas <strong>de</strong> pequenas audácias <strong>de</strong> pensamentoe <strong>de</strong> expressão, difíceis <strong>de</strong> orquestrar. Notei apenas <strong>um</strong> exagero <strong>de</strong> sinais sintáticos,travessões, virgulas, pontos-e-vírgulas, pontos finais, e sobretudo, reticências.O abuso das reticências me é particularmente enervante (a não ser quandoentram, n<strong>um</strong> sistema personalíssimo <strong>de</strong> notações, compreensível em certosindivíduos muito irregularmente "individuais".) Ponham quantas forem necessáriaspara indicar suspensão ou transição inesperada. Mas este cost<strong>um</strong>e <strong>de</strong> <strong>de</strong>rramar aopé <strong>de</strong> cada período <strong>um</strong>a série <strong>de</strong> pontinhos, para <strong>de</strong>notar que a frase é aguda, queali há coisa, que a passagem envolve malícia ou profundida<strong>de</strong> — não, não.O leitor (sempre inteligente) irrita-se por não se lhe <strong>de</strong>ixar o gosto <strong>de</strong><strong>de</strong>scobrir por si mesmo as sutilezas, as intenções, os valores velados. E <strong>de</strong>pois oautor acaba por botar reticências em tudo, porque é difícil que <strong>um</strong> autor não vejacoisas a realçar em cada <strong>um</strong> dos seus períodos. Afinal, a função dos pontinhos<strong>de</strong>saparece, e on<strong>de</strong> eles não estão é que a gente vai ver se <strong>de</strong>sentoca o melhor.48


www.nead.unama.brA mania das reticências não tarda em semeá-las no próprio pensamento.Recolhem, como as bexigas. E lá se vai o amor da clarida<strong>de</strong> e da justeza, lá vem oprazer vicioso do equívoco, do ambíguo, do flutuante.Os antigos não usavam reticências. Faltou-lhes, pois <strong>um</strong>a boa forma <strong>de</strong>notação, hoje indispensável. Mas o fato é que a estreiteza do sistema <strong>de</strong> suplementaresda palavra tinha as suas vantagens. Forçava-os a tudo exprimir e sugerir com osrecursos únicos da frase nua e dos seus ritmos naturais. Em vez <strong>de</strong> pôr <strong>um</strong> sinal <strong>de</strong>ironia tinham <strong>de</strong> açacalar a ironia através da re<strong>de</strong> dos períodos. Em vez <strong>de</strong> indicar comque óculos cinzentos ou vermelhos se havia <strong>de</strong> ler o capítulo ou a página, davam àpágina ou ao capitulo a tonalida<strong>de</strong> sentimental ou mental conveniente. Era o processodireto, que penetrava até às carnes e aos nervos do estilo.Podiam falecer-lhe a este as flexibilida<strong>de</strong>s e esf<strong>um</strong>aturas da sensibilida<strong>de</strong>mo<strong>de</strong>rna, mas ainda isso era <strong>um</strong>a vantagem, porque era <strong>um</strong>a disciplina. O escritorhavia <strong>de</strong> se resignar, por muito in<strong>de</strong>ciso e ondulante que tivesse o espírito, ao freio<strong>de</strong> <strong>um</strong> métier e havia <strong>de</strong> viver perpetuamente em busca do límpido, do incisivo, dol<strong>um</strong>inoso. Nunca se entregava senão a construções <strong>de</strong> pensamento com <strong>um</strong>aclassificação e <strong>um</strong> fim. Toda a sua aspiração era fabricar obras acabadas, portáteis,que representavam aquisições (como diz Emerson a propósito já não lembra <strong>de</strong> queautor) coisas que se po<strong>de</strong>riam sopesar, palpar, pôr no bolso e levar para casa—como <strong>um</strong> utensílio, como <strong>um</strong>a jóia, como <strong>um</strong>a fruta.Representei tudo isto por outras e mais breves palavras, a Nicolau, cujovalor não <strong>de</strong>ixei <strong>de</strong> tomar para estribilho. Guardou os originais, acen<strong>de</strong>u <strong>um</strong> cigarro eperguntou, com <strong>um</strong> sorriso reticente:— "Então, só <strong>um</strong> excesso <strong>de</strong>... Pontinhos?""Só, Nicolau, só. Mas isso mesmo, ó Artista, ó Imaginífico, ó Mistagogo! Étalvez mania ou sutileza do meu bestunto emperrado. Quando vejo <strong>um</strong> <strong>de</strong>ssesescritos retalhados em pequenos parágrafos cada parágrafo seguido <strong>de</strong> <strong>um</strong>asecreção <strong>de</strong> pontinhos, tenho logo a idéia <strong>de</strong> <strong>um</strong>a <strong>de</strong>sfilada <strong>de</strong> cabritos."Mas, pensando bem, penso que <strong>um</strong> escritor moço precisa <strong>de</strong> ter certa porção<strong>de</strong> cacoetes e singularida<strong>de</strong>s, até <strong>de</strong> erros, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> certo limite porque tudo istoserve exatamente <strong>de</strong> lhe dar <strong>um</strong> ar <strong>de</strong> viçoso verdor e <strong>de</strong> divinatória inexperiência, agraça do gênio ainda ignorante <strong>de</strong> si próprio, todo em flor e esperança.As pequenas carepas envolvem <strong>um</strong>a promessa festiva <strong>de</strong> aperfeiçoamentoao passo que a lixa insistente e minuciosa, tirando todas as titicas e asperida<strong>de</strong>s dasuperfície, <strong>de</strong>ixa ver melhor as imperfeições essenciais da matéria e da construção.Esses cacoetes, essas singularida<strong>de</strong>s, esses <strong>de</strong>scuidos constituem <strong>um</strong>agarantia para o escritor. Ninguém suspeita nele <strong>um</strong> gramático, <strong>um</strong> espírito peco emiúdo, preocupado com a língua e outras superfluída<strong>de</strong>s peróbicas. Perdoam-lhepor simpatia, n<strong>um</strong>a absolvição geral, as faltas cometidas, e ainda as que venha aperpetrar. Ao passo que os escritores corretos dão ganas a todo o mundo <strong>de</strong> lhes<strong>de</strong>scobrir trincas e manchas.E isto sempre se consegue: a correção é <strong>um</strong>a zona i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> equilíbrioinstável...Ia eu assim dissertando, alheio ao bon<strong>de</strong> e ao tempo, quando <strong>um</strong>a brecadainstantânea fez estralejar todo o arcabouço do carro. Gritos, borborinho. O bon<strong>de</strong>havia pegado <strong>um</strong>a carroça pela rabeira e arremessado esse veículo, com os seusdois animais, a três metros <strong>de</strong> distância.49


www.nead.unama.brA carroça a<strong>de</strong>rnara, com <strong>um</strong>a das rodas meio fora do eixo, e os burros,presos ao correame e aos varais abatidos, resfolegavam largamente, comestremeções espaçados <strong>de</strong> toda a courama.O pior é que o próprio carroceiro, cuspido para o chão, raspara a poeira e seestatelara ao lado, a verter sangue da cabeça, as mãos meio enclavinhadas, o peitoa arquejar sob a camisa aberta.Magotes <strong>de</strong> curiosos iam e vinham enquanto dois homens <strong>de</strong> maior iniciativatratavam <strong>de</strong> recolher a vítima a <strong>um</strong>a casa próxima e <strong>de</strong> levantar os animais.Válidos, prestantes bons homens! Surgiram <strong>de</strong> repente da massa amorfa,como os que sabem querer e mandar. E eu era da massa amorfa, imprestáveldistraída, hesitante. Ó céu, cada dia me reservas <strong>um</strong>a h<strong>um</strong>ilhação!Depois, que, vinda a polícia e o carro da assistência, o bon<strong>de</strong> pô<strong>de</strong> continuara viagem, os passageiros consternados ainda pormenorizavam o ocorrido,explicavam o <strong>de</strong>sastre, discutiam as culpas. Quanto a mim, conservava-me quieto,com a visão pasmada daquele homem caído no chão, a <strong>de</strong>rramar sangue na poeira,e do triste do motorista que parecia fulminado <strong>de</strong> estupor, na balorda prostração doanimal tocado <strong>de</strong> raio.Nicolau catucou-me <strong>de</strong> repente no braço. Voltei-me para ele como quem<strong>de</strong>spertava.— "Mas!... Quer que lhe diga?" (recomeçou) "não estou <strong>de</strong> acordo com osenhor."E tinha <strong>um</strong> arzinho entre provocador e mofento.— "Comigo?! Em que?!..."— "Nesse negócio <strong>de</strong> reticências. A mim me parecem indispensáveis. Aquestão está naquilo que se preten<strong>de</strong> dizer ou sugerir."E por aí foi, a traçar com o indicador o <strong>de</strong>senho dos arg<strong>um</strong>entos. Dei-lhesempre razão até o termo do discurso e da linha. "Sim. Claro. Sim! Pois não. Sim,sim!"Afinal, disse <strong>um</strong> a<strong>de</strong>us veloz a esse espírito gentil e corri a <strong>um</strong> café, on<strong>de</strong> fuitomar a minha xícara em silêncio e em penitência, e reatar os fios inacabáveis do meuperene diálogo comigo mesmo — com o único indivíduo que não se aborrece quandoo contrario, com o único indivíduo que me aborrece quando o não quero contrariar.RUÍDOS E RUMORESAs almas têm <strong>um</strong>as irradiações pouco observadas — sem nada <strong>de</strong> com<strong>um</strong>com a transmissão <strong>de</strong> pensamento, o magnetismo e análogas complicações etéreas,ódicas e místicas.Não há <strong>um</strong>a ciência (e ainda bem, arre!), mas há <strong>um</strong>a arte, <strong>um</strong>a pequenaarte sutil sobre a caça das irradiações da personalida<strong>de</strong>, através dos r<strong>um</strong>ores e dasvozes.Tenho uns vizinhos esquisitos, <strong>um</strong> casal velho que vive fechado em casa eraramente se <strong>de</strong>ixa ver. Trabalhando ou lendo no meu gabinete, ouço vozes,passos, tosses, assoa<strong>de</strong>las arrastamentos <strong>de</strong> móveis, bater <strong>de</strong> pregos, — tudoespaçado e abafado, passando através das pare<strong>de</strong>s como vagas mensagens <strong>de</strong> <strong>um</strong>mundo sigiloso.50


www.nead.unama.brPonho-me, às vezes, a escutar esses r<strong>um</strong>ores e, à força <strong>de</strong> os ouvir ecomparar, não só eduquei o ouvido para lhes perceber as menores variações, comoconsegui fixar o valor expressivo <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>les.Cheguei à conclusão <strong>de</strong> que o homem é gordo, ru<strong>de</strong>, voluntarioso, e talvezcom <strong>um</strong> <strong>de</strong>feito n<strong>um</strong>a das pernas. Pisa com força e peso, mas <strong>de</strong> <strong>um</strong> jeitoclaudicante; tosse <strong>de</strong> <strong>um</strong> modo rápido e sacudido; os ruídos que produz batendopregos ou fechando portas são sempre céleres e inteiriços, e sua voz é robusta eserena.Por que então não sai <strong>de</strong> casa? Provavelmente, alg<strong>um</strong> incômodo ou lesãolocalizada, que o impe<strong>de</strong> sem lhe afetar o estado geral.Quanto à mulher, <strong>de</strong>ve ser velhota, magra, tristonha a paciente. Seuspassos apenas chiam no soalho, sua voz mal se ouve, assemelha-se a <strong>um</strong> arrulhomonótono. De, quando em quando, escuto-lhe uns espirros longamente gemidos.Esses espirros por si sós ainda me fornecem <strong>um</strong>a indicação: a senhora é do interior<strong>de</strong> São Paulo, provavelmente <strong>de</strong> lugar pequeno, e talvez da zona sorocabana.Outro dia, tive <strong>um</strong> susto: o homem entrou a falar alto e ríspido, a darpassadas por toda a casa.Estaria a maltratar a pobre senhora? Apurei o ouvido. O vizinho andava,parava <strong>de</strong> quando em quando, falava falava, e <strong>de</strong>pois punha-se a andar <strong>de</strong> novo, para<strong>de</strong> novo estacar e falar: o ritmo característico <strong>de</strong> <strong>um</strong>a crise <strong>de</strong> raiva recriminante.Mas que po<strong>de</strong>ria ter-lhe feito a pobre velhota, tão calma e resignada?Ansioso, apurei ainda mais o ouvido, e só <strong>de</strong>scansei quando ouvi <strong>um</strong> espirroda vizinha: atchiii!... Esse espirro, longo, pacífico, modulado pela forma exata dohábito, garantia que a zanga não era com ela.Hoje, finalmente, viajei <strong>de</strong> bon<strong>de</strong> com o casal, que saiu conforme àsrevelações sonoras. O homem, alto, gordo e vermelho; ela, seca e s<strong>um</strong>ida. Aotratarem <strong>de</strong> <strong>de</strong>scer, ele puxou a corda da campainha n<strong>um</strong> golpe incisivo e forte.Desceram, e então vi que ele tinha <strong>um</strong> pé inchado em chinelo.Pus-me a traduzir, pelo resto da viagem, os sons da campainha.As vibrações indicam o sexo, a ida<strong>de</strong> aproximada e o temperamento <strong>de</strong>quem as faz retinir. Há campainhadas tímidas, in<strong>de</strong>cisas, distraídas, discretas,nervosas, indolentes, autoritárias, coléricas.Umas previnem, refletidas, o motorista, a quase <strong>um</strong>a quadra <strong>de</strong> distância,<strong>de</strong>clarando, calmas e incisivas: "Pare aí adiante; olhe que está avisado!"Outras exprimem certa dúvida: "Deverei saltar aqui?... Será aqui mesmo oponto que me convém?..."Outras enfim, após tantas, <strong>de</strong>ixam transparecer a surpresa <strong>de</strong> <strong>um</strong>apalermado que <strong>de</strong> repente se achou no ponto <strong>de</strong> parada sem ter dado por isso:"Oh, diabo, cá estou; pára aí!"A linguagem das campainhas po<strong>de</strong>, porém, exprimir coisas ainda menostriviais.Outro dia, vinha <strong>um</strong> passageiro novato no bairro, que mandou parar emcerto ponto, e não <strong>de</strong>sceu: tinha-se enganado. Ressoou surdamente a campainha,acionada pelo condutor, <strong>um</strong> português muito plantado em si mesmo: "Bom, vamosembora."Duas esquinas adiante, o homem dá nova or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> parada, e ainda não<strong>de</strong>sce: tinha-se enganado outra vez. Então, a correia da campainha fuzilou nosganchos como <strong>um</strong>a chicotada, e o metal retiniu com tal expressão, que se enten<strong>de</strong>uperfeitamente: "Roda!... Raios o parta!"51


www.nead.unama.brHá <strong>um</strong> conto <strong>de</strong> Gautier O Ninho <strong>de</strong> Rouxinol, on<strong>de</strong> figuram <strong>um</strong>as jovensestranhas, que unicamente comunicam com o mundo por meio dos sons. Todo ouniverso, para elas, se traduz em música, e só em música elas traduzem o quesentem e pensam.Realmente, não há nada que não se possa resolver em música, e é lícitoconceber-se <strong>um</strong> mundo em que fosse essa a linguagem universal das coisas e dasalmas. Sem irmos, porém, às alturas da imaginação, é fácil reconhecer que tudotrivialmente, em redor <strong>de</strong> nós, se manifesta por sonorida<strong>de</strong>s, ruídos e silêncios.Sabe disso toda a gente que dispõe da integrida<strong>de</strong> do seu aparelho auditivo.O que pouca gente sabe é como se po<strong>de</strong>m obter impressões novas, surpreen<strong>de</strong>ntese divertidas das coisas e das almas que nos ro<strong>de</strong>iam, — apenas aplicando o ouvidoà sondagem e interpretação dos sons.Nós vivemos pelos olhos. A estes confiamos quase exclusivamente a missão<strong>de</strong> observadores e testemunhas. O sentido auditivo reduzimo-lo quase a <strong>um</strong> simplespapel <strong>de</strong> serviçal obediente às <strong>de</strong>terminações da vonta<strong>de</strong>. Vemos tudo, mas sóouvimos o que queremos. É incrível a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que dispomos para eliminar asimpressões do ouvido, no meio do r<strong>um</strong>or infernal das ruas, do bruaá <strong>de</strong> <strong>um</strong> caféregurgitante <strong>de</strong> palradores.Ainda hei <strong>de</strong> escrever <strong>um</strong> artigo sério para <strong>um</strong> jornal sério, <strong>um</strong> artigocientífico, cheio <strong>de</strong> termos técnicos como <strong>um</strong> queijo cheio <strong>de</strong> saltões, a propugnar aeducação e a aplicação mais racionais das faculda<strong>de</strong>s auditivas. Quantos afluxos <strong>de</strong>sensações sistematicamente rejeitados, e que po<strong>de</strong>riam ser tão úteis á inteligência,e úteis à própria <strong>de</strong>fesa do indivíduo!E <strong>de</strong>pois, se a moda pegasse, se começássemos todos a fazer <strong>um</strong> uso maisconsciente, mais constante e mais largo <strong>de</strong>sse aparelho receptor, seria impossívelque <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> cidadãos não se insurgissem afinal, indignados,exigentes, furiosos, contra a pan<strong>de</strong>mônica, vertiginosa e martirizante barulheira dacida<strong>de</strong>, contra este caos sonoro que nos engole e nos aniquila.PALAVRAS CRUZADASVeio à minha frente, ontem à tar<strong>de</strong>, <strong>um</strong> passageiro engolfado n<strong>um</strong> sobretudoenorme e n<strong>um</strong> largo jogo <strong>de</strong> palavras cruzadas. Espiei <strong>um</strong> pouco por cima, o homempercebeu o meu movimento, voltou-se, reconheci-o: era o meu ex-vizinho EulálioPeixoto, professor <strong>de</strong> Matemática e <strong>de</strong> conformida<strong>de</strong>.— "Pois até você, Peixoto!"— "É para você ver, Felício. Mas quem po<strong>de</strong> resistir! Todo o mundo vive àsvoltas com isto. Ainda hoje vi <strong>um</strong>a senhora, com <strong>um</strong> livro aberto, no bon<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ntrodo livro ia <strong>um</strong> retalho <strong>de</strong> papel — era o jogo. Tenho <strong>um</strong> conhecido que traz o seu<strong>de</strong>ntro do chapéu. Outros o carregam na carteira e em qualquer momento <strong>de</strong><strong>de</strong>scanso, no bon<strong>de</strong>, no café, na esquina, lá se põem a <strong>de</strong>cifrar. Curioso! A que éque você atribui esta mania?"— "Gosto <strong>de</strong> quebrar a cabeça".— "Está enganado. Isso é o que menos influi no caso. Quantida<strong>de</strong><strong>de</strong>sprezível. A vida toda, toda, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as gran<strong>de</strong>s até às ínfimas coisas, é <strong>um</strong> tecido<strong>de</strong> quebra-cabeças.""Dirá você que são problemas repulsivos — uns tenebrosos, como a própriavida em si, outros atenazantes, como o do pão que se há <strong>de</strong> comer no mês que vem.52


www.nead.unama.brPerfeitamente! Mas, nesse caso, haveria <strong>um</strong>a infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> passatempos <strong>de</strong>stemesmo gênero à nossa disposição — os problemas <strong>de</strong> aritmética e álgebra, oxadrez, o soneto, as ações h<strong>um</strong>anas, o acróstico... veja você, o acróstico tãoaparentado com isto, e tão mais interessante!"Não, o prazer do entretenimento é o que menos influi nesta epi<strong>de</strong>mia. Eleexiste, sem dúvida, no fundo <strong>de</strong> todos estes exercícios, mas neutro, indiferente àoscilação e varieda<strong>de</strong> das aplicações."— "Mas, então, Peixoto, on<strong>de</strong> é que está o busílis?"— Eis aí o gran<strong>de</strong> problema das palavras cruzadas! Esse é que eu gostaria<strong>de</strong> ver discutido. Para mim, provisoriamente, o segredo só tem <strong>um</strong>a explicação, <strong>um</strong>asó: contágio mental.— "Mas como explicará você o contágio, por sua vez?"— É outra questão. O contágio existe, é evi<strong>de</strong>nte, manifesta-se por milformas. Sempre existiu. A moda nunca foi outra coisa que <strong>um</strong> nome diverso <strong>de</strong>ssefenômeno.O joguinho apareceu <strong>um</strong> dia, lá na América do Norte, como <strong>um</strong> <strong>de</strong>sses mildivertimentos com que os jornais engabelam o público. Ou porque tivesse <strong>um</strong>afeição mais atraente, ou porque o jornal que o inventou fosse <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> circulação,ou porque se anunciassem prêmios convidativos, a coisa teve êxito, <strong>de</strong>spertou osêmulos e os imitadores, — e eis a epi<strong>de</strong>mia armada, a alargar-se por toda <strong>um</strong>aregião, por todo <strong>um</strong> país, transpondo os mares, saltando em portos distantes,explodindo em todos gran<strong>de</strong>s centros, voando a todos os recantos do mundo."É a própria, a propriíssima curva <strong>de</strong> todas as epi<strong>de</strong>mias — explicou Peixotocontinuando. — Há <strong>um</strong> primeiro foco, lento, hesitante, dúbio. Repetem-se os casos,nas vizinhanças. E, à medida que se repetem, a intensida<strong>de</strong> sobe. Há <strong>um</strong> momento<strong>de</strong> máxima intensida<strong>de</strong> e máxima expansão. A epi<strong>de</strong>mia alastra-se."Depois, vão-se extinguindo aos poucos os mil focos espalhados, bambeia afúria do mal, os casos voltam a ser mais brandos, mais incertos, e tudo acaba como<strong>um</strong> incêndio rápido que lambesse e queimasse todas as folhas e gravetos secosdisseminados por <strong>um</strong> mato ver<strong>de</strong>, morrendo afinal aos pedaços, por falta <strong>de</strong>alimento e <strong>de</strong> vento."Peixoto fez-me ver em seguida como o contágio mental vai alargando, emtodas as suas formas, o seu campo <strong>de</strong> expansão.Em outros tempos que não vão tão longe, cada país era <strong>um</strong> campo restrito<strong>de</strong> ressonâncias, e <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> cada <strong>um</strong> <strong>de</strong>sses campos havia outros, igualmentequase fechados — as classes, as categorias sociais. Um sapateiro da Ida<strong>de</strong> Médiaestava muito mais longe <strong>de</strong> <strong>um</strong> magistrado, na mesma cida<strong>de</strong>, do que hoje <strong>um</strong>fazen<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> Mato Grosso se acha <strong>de</strong> <strong>um</strong> professor <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>lberg.As modas, outrora, levavam muito mais tempo a ir <strong>de</strong> Paris à província, doque, hoje, <strong>de</strong> Nova York ao Extremo Oriente. Demais, propagavam-se em linhahorizontal — <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> certas classes; hoje propagam-se tanto no sentido horizontalcomo no vertical — entre as gentes colocadas em posição semelhante e entre asque ocupam qualquer outra posição na escada ascen<strong>de</strong>nte ou <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte.O contágio, hoje, envolve tudo. Tudo po<strong>de</strong> transformar-se repentinamenteem mania coletiva. Outrora, havia epi<strong>de</strong>mias <strong>de</strong> misticismo, <strong>de</strong> guerra ou <strong>de</strong> suicídiolimitadas a certas regiões. Hoje, toda a vida universal ten<strong>de</strong> a ser <strong>um</strong>a sucessão <strong>de</strong>epi<strong>de</strong>mias. Há epi<strong>de</strong>mias universais <strong>de</strong> dança, epi<strong>de</strong>mias esportivas, epi<strong>de</strong>mias <strong>de</strong>53


www.nead.unama.brjogo, epi<strong>de</strong>mias políticas, epi<strong>de</strong>mias artísticas, literárias, epi<strong>de</strong>mias econômicas,epi<strong>de</strong>mias filantrópicas.Se alg<strong>um</strong> dia houve a ilusão do que os homens fossem capazes <strong>de</strong> se<strong>de</strong>ixar guiar pela razão, hoje o mundo inteiro é <strong>um</strong> só vasto campo <strong>de</strong> experiência aprovar todos os dias, que os homens agem sistematicamente à revelia da razão — oque não quer dizer que <strong>um</strong>a vez por outra, não possam encontrar-se com ela, poracaso. Quanto mais se civilizam, mais imitam e copiam. Quanto mais prezam aindividualida<strong>de</strong> mais a per<strong>de</strong>m. Quanto mais amam o novo e o original, mais feitos"em série" parecem.Os motivos <strong>de</strong> ação vão-se tornando, cada vez mais, efeitos <strong>de</strong> sugestãocoletiva.Os Estados Unidos, que se diriam a terra por excelência do individualismoviolento, são na verda<strong>de</strong> a terra por excelência da socialização absorvente. O quedá a aparência da liberda<strong>de</strong> é a franqueza exterior dos movimentos. Pura aparência.Não há nada que pareça tão "livre" como as peças ativas <strong>de</strong> <strong>um</strong> tear mo<strong>de</strong>rno, atrabalharem silenciosamente, como por si, como <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> alacrida<strong>de</strong> serenae <strong>de</strong> inabalável consciência do <strong>de</strong>ver.Na realida<strong>de</strong>, o homem por lá não tem a mínima liberda<strong>de</strong>, no sentidoclássico, estóico, <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> interior, fundamental, soberana; inviolável — aquelaque Emerson por lá mesmo exaltava. É sempre homem <strong>de</strong> <strong>um</strong> partido, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a igreja<strong>de</strong> <strong>um</strong> clube, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a corrente, — <strong>um</strong> dos caracteres <strong>de</strong> que se compõem aspalavras <strong>de</strong> <strong>um</strong> pensamento coletivo, para ele proveitoso mas in<strong>de</strong>cifrável.Formidáveis, naquela terra, o vol<strong>um</strong>e e a rapi<strong>de</strong>z dos movimentos <strong>de</strong> opiniãoou sensibilida<strong>de</strong>, isto é, <strong>de</strong> contágio mental. São turbilhões que passam levantandofi<strong>um</strong>anas <strong>de</strong> almas como folhas secas. Estes movimentos tanto po<strong>de</strong>m dar-se apropósito <strong>de</strong> bebidas, como <strong>de</strong> <strong>um</strong> match <strong>de</strong> box; <strong>de</strong> <strong>um</strong>a eleição, como <strong>de</strong> <strong>um</strong>anova dança <strong>de</strong> negros; <strong>de</strong> <strong>um</strong> escândalo teatral como <strong>de</strong> <strong>um</strong>a doutrina religiosaEnfim, o indivíduo vai sendo empastado na comunida<strong>de</strong> e arrastado nasconvulsões obscuras das forças elementares que a percorrem e remexem.Este o pendor contemporâneo da civilização. Este o seu perigo mais tétrico.Ela ten<strong>de</strong> cada vez mais a absorver as personalida<strong>de</strong>s, como <strong>um</strong> organismo emjej<strong>um</strong> forçado ten<strong>de</strong> a alimentar-se às suas próprias expensas, esgotando os seuselementos vitais, esgotando-se...Chegado a este ponto, Eulálio interrompeu-se por que me achou distraído.Na verda<strong>de</strong>, a minha aparente distração estava apenas em que eu lhe bebia aspalavras, e as memorizava.Mas ele tinha a sua razão <strong>de</strong> me estranhar o silêncio e a imobilida<strong>de</strong>; porquea boa educação manda que, nas conversas, se dêem todas as atenções à pessoaque fala, e nenh<strong>um</strong>a ao que ela fala.PASSEIO DOMINICALHoje, domingo, quando cheguei ao meu posto <strong>de</strong> espera, por volta <strong>de</strong> meiodia,lá estava, em fila, <strong>um</strong>a família pobre.Era visível que tinham <strong>de</strong>stinado o dia para passeio e que esse passeio erapara eles <strong>um</strong> acontecimento. Respiravam timidamente a frescura das impressõesnovas.O chefe, homem <strong>de</strong> meia-ida<strong>de</strong>, ia frouxamente embrulhado n<strong>um</strong> terno <strong>de</strong>brim pardo reluzente do ferro <strong>de</strong> engomar e on<strong>de</strong> mal se dissimulava <strong>um</strong>a cartatopográfica <strong>de</strong> remendos e serziduras. O chapéu mole, puído e bambo tinha sido54


www.nead.unama.brcuidadosamente armado sobre os cabelos crescidos, repuxados a pente para trásdas orelhas, on<strong>de</strong> formavam caracóis. A camisa era limpa, e <strong>um</strong> sorriso satisfeito,que se diria igualmente lavado com sabão <strong>de</strong> cinza, ao jorro da torneira sobre a tina,se lhe abria na cara tostada, como <strong>um</strong>a toalha a corar ao sol.Pois filhos buliçosos, entre os seis e os <strong>de</strong>z anos, enfarpelados à marinheira,com gran<strong>de</strong>s colarinhos <strong>de</strong>itados, por cuja abertura se estripavam altos laçarotes <strong>de</strong>fita escocesa. Tinham chapéus <strong>de</strong> palha amarela com cintas atuis, nos quais se liamnomes <strong>de</strong> navios <strong>de</strong> guerra: "Aquidabá", "Timbira", em letras douradas. Traziambengalinhas, <strong>de</strong>masiado compridas e pareciam mais atrapalhar-se do que divertir-secom esse luxo <strong>de</strong>sacost<strong>um</strong>ado.A mãe, maciça no seu largo vestido <strong>de</strong> lãzinha cor chocolate, os cabelosrepartidos em duas asas negras e lisas, apanhados n<strong>um</strong>a rodilha farta sobre a nucamorena. Estava alegre como os outros, mas <strong>de</strong> <strong>um</strong>a alegria meio assustada, —talvez acanhamento do vestido novo, dos sapatos novos, do penteado que lherepuxava a pele da testa.Quando o bon<strong>de</strong> chegou, os pequenos treparam <strong>de</strong>sajeitadamente,agarrando-se ao carro com as mãos ambas e foram colocar-se nas extremida<strong>de</strong>sfronteiras dos dois primeiros bancos, a garantir os postos <strong>de</strong> observação.A mãe entrou com eles, arrastando <strong>um</strong> pela blusa, empurrando outro pelotraseiro e sentou-se ao pé dos dois, ralhando em voz baixa, como se estivessemn<strong>um</strong> lugar <strong>de</strong> respeito.O pai mais senhor <strong>de</strong> si, aboletou-se a pouca distância, inspecionando tudocom <strong>um</strong> semblante meio severo meio con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte.Depois, todos entraram a rir e palrar. Todos se viravam para <strong>um</strong> e outrolado, a olhar os prédios, as perspectivas das ruas, as massas retangulares dosedifícios alteados ao longe, os automóveis que passavam. Divertiu-os muito <strong>um</strong>caminhão cheio <strong>de</strong> futebolistas seminus e gritadores. Também acharam bastantegraça n<strong>um</strong> velho <strong>de</strong> barbas bíblicas, que trazia na mão <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> árvore, <strong>de</strong>folhagem toda florida <strong>de</strong> papaventos vermelhos, amarelos e azuis. E os papaventosgiravam e z<strong>um</strong>biam como <strong>um</strong> enxame assanhado.O estridor das rodas do bon<strong>de</strong> nas curvas mal engraxadas foi ponto <strong>de</strong>partida <strong>de</strong> <strong>um</strong>a rivalida<strong>de</strong> entre os dois pequenos, cada qual mais empenhado emimitá-lo com a boca. A mãe ria-se, tapando os <strong>de</strong>ntes com a mão, relanceando osolhos <strong>de</strong>sconfiados pela circunvizinhança.Quando o condutor marcava as passagens, os peque-nos queriam sabercomo era aquilo, porque era, e o pai dava-lhes explicações fantasiosas que eramocasião <strong>de</strong> teimas e risos.Enfim, como aquela família se divertia!Ao chegarmos à cida<strong>de</strong>, saltaram para ir ver as vitrinas e, <strong>de</strong> certo, para ir aalg<strong>um</strong> botequim tomar café-com-leite e comer cavacas e pães-<strong>de</strong>-ló — <strong>um</strong> festim<strong>de</strong>licioso.Respiravam tranqüilida<strong>de</strong> e alegria. A alma boiava-lhes n<strong>um</strong>a <strong>de</strong>scuidosasatisfação <strong>de</strong> filhos amados da felicida<strong>de</strong> e do candor.Passear <strong>de</strong> bon<strong>de</strong>, andar pela cida<strong>de</strong>, ver a gente, ver as vitrinas, tomarcafé-com-leite n<strong>um</strong> botequim gran<strong>de</strong>, cheio <strong>de</strong> espelhos, em chávenas <strong>de</strong> louçabrilhante,—que recreio, que consolo, que temerida<strong>de</strong> jovial e dissipadora!Nunca tenho inveja a ninguém, e aos felizes da felicida<strong>de</strong> exterior, aindamenos que a ninguém. Mas diante <strong>de</strong>ssa família, tive <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> inveja.Pobre alma escalavrada e enfastiada, para quem tudo quanto divertia aquelagente era vago e distante como tudo quanto é muito próximo e muito visto, senti em55


www.nead.unama.brcerto momento <strong>um</strong>a impressão angustiosa — a impressão que teria alguém, <strong>de</strong>repente, apalpando-se, <strong>de</strong> que meta<strong>de</strong> si mesmo já era coisa morta.RUFINAEncontrei no bon<strong>de</strong> <strong>um</strong> homem parecido com o Coronel Ferrão, o exprotetor<strong>de</strong> Rufina-Augusta. Esta surgiu imediatamente ao seu lado, acomodando osvestidos, sorrindo e lançando sobre mim aquele seu olhar magnético atravésdaqueles cílios <strong>de</strong> treva, com <strong>um</strong>a................................................ dolcezzache inten<strong>de</strong>r non la può chi non la prova.Claro que era <strong>um</strong>a aparição imaginária. Mas não me impedia que ficasseolhando para o lugar on<strong>de</strong> colocara a moça e lhe dirigisse a esta <strong>um</strong> longo e confusoimproviso."Quem és tu? De on<strong>de</strong> vens? Que fazes? Como vives?... — Na verda<strong>de</strong>,nada disso me interessa muito. Afinal <strong>de</strong> contas, nada tenho contigo.""O que me interessou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo em ti foi apenas a tua figura. Apareceu-me<strong>de</strong> repente, no meio da vulgarida<strong>de</strong> fosca das coisas, como <strong>um</strong>a obra-<strong>de</strong>-arteperdida n<strong>um</strong> subterrâneo na qual batesse <strong>de</strong> repente o jorro <strong>de</strong> <strong>um</strong>a lanterna furtafogo.""Era-me tão indiferente saber quem fosse a pessoa que havia <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssafigura, ou mesmo se havia <strong>um</strong>a pessoa, como seria indiferente, diante da graça <strong>de</strong><strong>um</strong>a vela branca no mar azul, saber <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vinha, para on<strong>de</strong> ia, se levava a bordo<strong>um</strong>a princesa errante ou <strong>um</strong> ogre sinistro.Contudo, não me esqueci mais <strong>de</strong> ti.Tu me entraste na alma como <strong>um</strong> farrapo que a ventania atira por <strong>um</strong>a porta<strong>de</strong>scuidosamente aberta.A porta <strong>de</strong> minha alma profunda estava aberta naquela hora. E eu fiz como amulher pobre que, tendo achado em sua casa <strong>um</strong> farrapo <strong>de</strong> esc<strong>um</strong>ilha brilhante,trazido pelo vento, não tivesse ânimo <strong>de</strong> o varrer com o cisco, o levantasse e opren<strong>de</strong>sse à pare<strong>de</strong>, entre <strong>um</strong> caco <strong>de</strong> espelho e <strong>um</strong> cromo <strong>de</strong>scorado.És talvez <strong>um</strong> episódio horoscópico da minha vida, posto <strong>de</strong> reserva peloDestino para ser lançado, certo dia na <strong>de</strong>sfilada heteróclita dos casos da minhabiografiazinha. privada.Como que havia em mim <strong>um</strong> lugar vago à tua espera. Vieste, caíste no lugarjusto, e aí estás, fixa e l<strong>um</strong>inosa como <strong>um</strong>a pedra fina que, por maravilha do acaso,saltando, perdida, viesse cair justamente no engaste vazio <strong>de</strong> <strong>um</strong> velho anel.Devias fatalmente aparecer-me em <strong>de</strong>terminada hora, como aparece aforma exata e exteriorizada <strong>de</strong> <strong>um</strong> pensamento flutuante, longamente entrevisto,longamente resolvido no espírito.Eras <strong>um</strong> motivo que faltava ao magro concerto da minha vida consciente eque aí havia <strong>de</strong> surgir, <strong>de</strong>liciosa serpe melódica a ondular e faiscar n<strong>um</strong> relvado <strong>de</strong>ritmos obtusos.A música interior tem hoje <strong>um</strong>a dolência menos remota, <strong>um</strong> gemido menosvago, <strong>um</strong>a ânsia interrogativa mais profunda, <strong>um</strong>a angústia menos aérea e maish<strong>um</strong>ana.Por que me apareceste? Por que me agradaste? Por que não te pu<strong>de</strong> falar?Por que me foges sem o querer, e por que te evito, procurando-te?56


www.nead.unama.brE por que vim a conhecer da tua vida, ó coisa graciosa e fugente, apenas oaspecto sombrio e grosseiro? Por que não me reapareces, para me confiar a tuahistória risonha e dolorosa, a celeste e bestial realida<strong>de</strong> do teu <strong>de</strong>stino, a lama e achama da tua alma, ó gentil, ó brilhante, ó miserável borboleta do brejo?Mas a tua vida não me interessa, na verda<strong>de</strong>. Que é que eu tenho contigo,que é que tens tu comigo?Vimo-nos duas vezes. Será <strong>um</strong>a razão para que te <strong>de</strong>va agora ver sempre?Tanta coisa bela e passageira como tu, bela passageira <strong>de</strong> bon<strong>de</strong>, tem encantado osmeus olhos por <strong>um</strong>a vez necessariamente única — <strong>um</strong>a nuvem, <strong>um</strong> pássaro, <strong>um</strong>ahora <strong>de</strong> sol, <strong>um</strong> certo sorriso da felicida<strong>de</strong> que se per<strong>de</strong>u por ser achado!"Tudo isto era dito com os meus botões. Mas, <strong>de</strong> repente, o homem que separecia com o coronel me encarou formalizado:— "O senhor está estranhando alg<strong>um</strong>a coisa na minha pessoa?"Olhei para o homem que se parecia com o coronel e respondi, sem saber aocerto o que dizia:— "Desculpe-me, senhor, tenha a bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> me <strong>de</strong>sculpar. Eu não oconheço, nem conheço ninguém que se lhe assemelhe, mas estava vendo se osenhor não seria <strong>um</strong>a outra pessoa."CAMELÔO homem <strong>de</strong>u-se por satisfeito com a explicação.Viajei ontem ao lado <strong>de</strong> <strong>um</strong> camelô, ou seja aquilo que outrora se chamava<strong>um</strong> bufarinheiro ou charlatão. Hoje, esta última palavra <strong>de</strong>signa categorias maisilustres <strong>de</strong> artistas da patranha; era preciso <strong>um</strong> vocábulo novo, que evitasseconfusões; a lei <strong>de</strong> repartição <strong>de</strong> Bréal.Pus-me a observar os gestos e as expressões do meu companheiro <strong>de</strong>viagem, como outros examinam, fascinados, os homens eminentes em certos ramosclássicos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> ou <strong>de</strong> inativida<strong>de</strong> superior.Mo<strong>de</strong>sto e simples não parecia sequer sonhar que pu<strong>de</strong>sse merecer acuriosida<strong>de</strong> e admiração <strong>de</strong> <strong>um</strong> seu semelhante (aliás muito diverso, no meu caso).Por vezes, até se esquecia <strong>de</strong> si, e ficava para ali murcho, com esse ar aparvalhadoe <strong>de</strong>sarmado que só cost<strong>um</strong>am ter, em público, bem familiarizadas com a idéia dasua nenh<strong>um</strong>a importância.Ia muito s<strong>um</strong>ido no seu canto, f<strong>um</strong>ando maquinalmente <strong>um</strong> cigarro meioapagado. Talvez premido por <strong>de</strong>ntro, como por <strong>um</strong> parafuso, por alg<strong>um</strong>apreocupação <strong>de</strong> família, ou <strong>de</strong> dinheiro, ou <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.A certo momento, saltou, enfiou as mãos nos bolsos das calças — <strong>um</strong>aaragem áspera começara a dar tremuras <strong>de</strong> sezões às árvores da rua — baixou acabeça e entrou apressadamente por <strong>um</strong>a viela, <strong>de</strong>serta e feia como <strong>um</strong> pátio <strong>de</strong>cortiço em dia <strong>de</strong> chuva.O camelô, misto <strong>de</strong> artista, <strong>de</strong> orador, <strong>de</strong> pelotiqueiro e <strong>de</strong> meneur. Amultidão, sempre bestial, <strong>de</strong>spreza-o. E ele é que realmente sabe <strong>de</strong>sprezar amultidão, porque a domina, a maneja, a <strong>de</strong>sfruta, e para tanto tem <strong>de</strong> a enfrentar,cada dia, como <strong>um</strong> domador <strong>de</strong> olho vivo e <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões fulmíneas.57


www.nead.unama.brEste exercício requer mais inteligência, mais sangue-frio e mais intrepi<strong>de</strong>zdo que aqueles que são cons<strong>um</strong>idos por toda a roda <strong>de</strong> basbaques que se divertemcom esse retalhista do heroísmo.O camelô não é negociante; é <strong>um</strong> homem que negocia por aci<strong>de</strong>nte. Avenda <strong>de</strong> coisas é mero pretexto, no fundo, ou mero ponto <strong>de</strong> apoio exterior, <strong>de</strong> quea sua complexa personalida<strong>de</strong> necessita para funcionar. Difere do comerciantenormal em aspectos essenciais, e a vantagem estética é toda sua: faz do comércio<strong>um</strong> simples ganha-pão, e não <strong>um</strong> sistema <strong>de</strong> vida; é senhor absoluto da suaativida<strong>de</strong> e não escravo <strong>de</strong> <strong>um</strong>a ativida<strong>de</strong> coletiva que o supere e o inclua como <strong>um</strong>apeça; não tira do comércio nenh<strong>um</strong>a importância pessoal, mas, ao contrário, ele éque con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong> em dar ao comércio <strong>um</strong>as sobras da sua rica provisão <strong>de</strong>coragem, <strong>de</strong> inventiva, <strong>de</strong> facúndia, <strong>de</strong> dons capciosos e sedutores, e em sacrificarlhe<strong>um</strong> pouco do seu nobre instinto <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência e <strong>de</strong> travessura.O camelô tem consigo <strong>um</strong>a dose <strong>de</strong> força intrínseca ou <strong>um</strong> grão <strong>de</strong> bravuraque falece aos da imensa turba do encostamento mútuo.Estes procuram e arranjam a sua casa no plano das ativida<strong>de</strong>s normais erespeitáveis, e gozam, com <strong>um</strong> mínimo <strong>de</strong> originalida<strong>de</strong> e energia própria, ou mesmosem nenh<strong>um</strong>a energia nem sombra <strong>de</strong> originalida<strong>de</strong>, os benefícios mais ou menosprevistos e mais ou menos automáticos da organização. Aquele, porém, na suapequeneza e na sua modéstia, cada dia sai <strong>de</strong> casa para o mundo como pelaprimeira vez. Sai completamente só, quase inerme sem a armadura dos mais, semos guarda-costas dos mais, sem boas e fortes armas <strong>de</strong> combate, — só, quase nu,com <strong>um</strong>a funda na mão, como o pastorzinho Davi quando partiu em busca domembrudo Golias.Sai escoteiro e ignorado, sem r<strong>um</strong>or <strong>de</strong> ferros, sem estropear <strong>de</strong> cavalos,sem alalis <strong>de</strong> trompa, sem atitu<strong>de</strong>s nem gestos, à caça <strong>de</strong> vagas migalhas <strong>de</strong> <strong>um</strong>tesouro possível, escondido sob a guarda <strong>de</strong> <strong>um</strong> bicho-manjaléu com milhares <strong>de</strong>cabeças.Isto é quase a reprodução, aí na rua, entre gentes frívolas e sensatas sob osolhos frios dos passantes colocados e tranqüilos, das façanhas ilustres do ágil egracioso Sigurd quando venceu os anões e prostou o dragão Fúfnir.Nós vivemos na plena teia dos mitos e das lendas, e não damos por isso.Per<strong>de</strong>mos o sentido poético das situações.UM GRANDE EGOÍSTAO meu amigo Herácli<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> ordinário benevolente, ia ontem azedo, nobon<strong>de</strong>. Observava exemplos <strong>de</strong> aspereza e grosseria <strong>de</strong> maneiras, aos quais via <strong>um</strong>sinal meteórico <strong>de</strong> barbarização, <strong>um</strong>a prova da <strong>de</strong>cadência do senso <strong>de</strong>h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>, que outrora a religião al<strong>um</strong>iava ainda nos mais incultos.Herácli<strong>de</strong>s apontou-me, sucessivamente, <strong>um</strong> passageiro que <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong>ce<strong>de</strong>r lugar a <strong>um</strong>a senhora, apesar dos olhos compridos que ela <strong>de</strong>itava para o seulado; <strong>um</strong> menor que se <strong>de</strong>sarticulava no banco, como <strong>um</strong>a letra gótica, e soltavagrossas baforadas <strong>de</strong> f<strong>um</strong>o na cara dos vizinhos; <strong>um</strong> cidadão bem trajado que dissedois <strong>de</strong>saforos ferinos ao condutor porque este se atrapalhara n<strong>um</strong>a questão <strong>de</strong>troco, e <strong>um</strong> homem gordo, escarrapachado como <strong>um</strong>a foca, as perninhas roliçaslargamente jogadas para os lados, a direita a premir <strong>um</strong>a pobre moça, a esquerda, abater no joelho <strong>de</strong> <strong>um</strong> velho magro, que fazia horríveis esforços por ocupar apenas ameta<strong>de</strong> do espaço a que tinha direito e que lhe era necessário.58


www.nead.unama.br— "Veja, Trancoso, veja: todo esse pessoal tem, no fundo da alma, <strong>um</strong><strong>de</strong>sprezo absoluto pelo bicho homem, <strong>um</strong>a indisposição latente e injuriosa contra ogênero h<strong>um</strong>ano em massa."— "Herácli<strong>de</strong>s, estas pequenas coisas não têm a importância que você lhesquer dar."— "Não têm importância? Então você acha que nada significa, nada, aquiloque aflora à periferia das personalida<strong>de</strong>s, normalmente, ordinariamente, como oefeito imediato e espontâneo <strong>de</strong> <strong>um</strong>a fermentação? Então, se essa gente que ai vaitivesse outro fundo, esse fundo estaria a borbulhar cá fora <strong>de</strong>ssa maneira? Deitedois <strong>de</strong>dos <strong>de</strong> açúcar puro n<strong>um</strong> copo, encha o copo <strong>de</strong> água; que é que vem àsuperfície? Gases sulfúricos? Fragmentos microscópicos <strong>de</strong> potassa? Traços <strong>de</strong>ácido prússico? Bavas <strong>de</strong> sal <strong>de</strong> azedas?"Curvei a cabeça, como quem cedia por ce<strong>de</strong>r, para não discutir. Mas, nofundo, cedia completamente. Entretanto, não convém encorajar nos outros essasinclinações à clarividência. Nada tão inútil nem tão <strong>de</strong>letério como enxergar <strong>de</strong>mais.Herácli<strong>de</strong>s calou-se, com os olhos perdidos no filme que se <strong>de</strong>senrolava porfora do bon<strong>de</strong>. Depois <strong>de</strong> uns minutos <strong>de</strong> silêncio, disse-me:— " Quero-lhe fazer <strong>um</strong> convite. Você não gostaria <strong>de</strong> entrar para o Clubedos Egoístas?" — E antes que eu pedisse explicação: "O Clube dos Egoístas, <strong>um</strong>grupo que fundamos, eu o Gabriel, o Tomasinho, o Tinoco, ali no fundo do barKauffman. Reunimo-nos todas as noites para conversar, ou para não conversar,apenas para beber o nosso chope. Só se exigem duas condições: cada <strong>um</strong> paga asua <strong>de</strong>spesa, e <strong>de</strong>ve ser <strong>um</strong> indivíduo sem espécie alg<strong>um</strong>a <strong>de</strong> generosida<strong>de</strong>."— "Que extravagância? Então po<strong>de</strong> entrar toda a gente.""Está enganado, redondissimamente enganado. Pois não vê que estemundo anda cheio <strong>de</strong> indivíduos que se sacrificam pelo próximo? Pelo bem daPátria? Prosperida<strong>de</strong> da lavoura? Pela educação nacional? Pelo futuro da indústriapetrolífera? Pela religião? Pela família? Pela h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>? Não vê como pululam,como se embatem, como fervem as manifestações <strong>de</strong> carida<strong>de</strong>, as obras pias, osorganismos <strong>de</strong> previdência e auxílio mútuo, as campanhas contra a doença, aignorância e o vício? Não percebe como há <strong>um</strong>a infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas feramente<strong>de</strong>votadas a todas as nobres causas?Pois, bem. Nós não nos preocupamos com essas causas: só nospreocupamos conosco mesmos. Só. Absolutamente só. Então, suce<strong>de</strong> que a nossaprosa, lá no bar, à noite, é <strong>de</strong>liciosa.Cada <strong>um</strong> <strong>de</strong> nós é <strong>um</strong> poço <strong>de</strong> <strong>de</strong>sencanto. Mas esse <strong>de</strong>sencanto é <strong>um</strong>encanto. Tocamos com o <strong>de</strong>do todas as misérias da hipocrisia e da mistificação.Intensificamos danadamente, com a nossa vida interior, a acuida<strong>de</strong> nevrálgica danossa visão dos homens e dos acontecimentos.Despojamo-nos <strong>de</strong> tudo que é vestimenta <strong>de</strong> idéias feitas, <strong>de</strong> preconceitosrecebidos, <strong>de</strong> concepções correntes, <strong>de</strong> inclinações bem vistas. Somos homensdiante <strong>de</strong> homens; homens, só homens, simplesmente, tristemente, heroicamentehomens.— "Mas que é que tem isso com o caso <strong>de</strong> que vínhamos tratando?"— Tem tudo. Tudo. Essa gente toda que você aí vê é gente que se<strong>de</strong>s<strong>um</strong>aniza. É gente que não sabe ser egoísta. São anjos. Toda ela se move por59


www.nead.unama.brpuros i<strong>de</strong>ais, por santas idéias, por altos princípios, por <strong>de</strong>sígnios heróicos: batemse,agitam-se, o<strong>de</strong>iam-se, caluniam-se, esgadanham-se por amor à família, por amorà pátria, por amor à or<strong>de</strong>m, por amor ao direito, por amor à cultura, por amor àsletras, por amor à civilização e por amor ao próximo.Por isso mesmo, nós mesmos os egoístas. Metidos conosco: nemfilantropos, nem patriotas, nem heróis da família, nem paladinos <strong>de</strong> coisa alg<strong>um</strong>a.Homens. Apenas homens. Lucidamente, miseravelmente e <strong>de</strong>liciosamente homenslivrese naturais como os peixes do fundo do mar.Eu creio que a h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>, hoje, não tinha nada melhor para fazer do quepraticar e santificar o egoísmo — Você quer entrar para a tropa?"— "Quem sabe! Depen<strong>de</strong>."Herácli<strong>de</strong>s sorria, como a dizer: "Este ainda não está preparado", e <strong>de</strong> novomergulhou no silêncio, f<strong>um</strong>ando profundamente <strong>um</strong> cigarro <strong>de</strong> palha. E <strong>de</strong>pois, meioassim como se falasse consigo mesmo:— "O curioso é que este nosso egoísmo, pelo que vejo, acaba mal."— "Por que?"— Porque ten<strong>de</strong>, naturalmente, muito naturalmente, a transformar-se nacoisa mais séria neste mundo: em religião.As almas <strong>de</strong>scascadas ficam todas tão semelhantes! À atitu<strong>de</strong> que elasass<strong>um</strong>em diante da infinita miséria da condição h<strong>um</strong>ana é tão inevitavelmente <strong>um</strong>asó, <strong>de</strong> raiz! Uma se<strong>de</strong> única <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> e sincerida<strong>de</strong> se apo<strong>de</strong>ra das gargantas. E<strong>um</strong> sentimento entranhando <strong>de</strong> fraternida<strong>de</strong> acaba brotando por si mesmo, como ogrelo das batatas.Nós, insensivelmente, já nos vamos querendo tanto bem uns aos outros queprecisamos <strong>de</strong> fazer tremendos esforços para não resvalar na sinistra comédiamundana da amiza<strong>de</strong> e <strong>de</strong> galantaria!Porque nós, lá, não preten<strong>de</strong>mos ser senão irmãos.UM HOMEM PERFEITOO Sr. João Cesário da Costa é <strong>um</strong> homem sólido, solidamente refesteladona vida Tem rendas sofríveis, <strong>um</strong>a bela casa, <strong>um</strong>a saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> ferro, <strong>um</strong> genrocolocado na política. Suas ambições nada têm <strong>de</strong> temerárias nem <strong>de</strong> atormentadas:são plácidas; limitam-se, evi<strong>de</strong>ntemente, a poupar trabalhos e amofinações, agarantir e a entreter a áurea mediocritas ou o oti<strong>um</strong> c<strong>um</strong> dignitate em que o Sr.Cesário vive <strong>de</strong>s<strong>de</strong> mocinho.Conversar com o Sr. Cesário é <strong>um</strong> exercício que reconforta e tonifica. A <strong>um</strong>aausência absoluta <strong>de</strong> inquietações pensantes, reúne <strong>um</strong> otimismo tranqüilo. Quandoalg<strong>um</strong>a opinião, alg<strong>um</strong>a frase, alg<strong>um</strong> ato equivoco ou complicado cai no domínio <strong>de</strong>sua percepção, faz <strong>um</strong> gesto <strong>de</strong> quem lhe sentisse o mau cheiro, e afasta-o <strong>de</strong> si,n<strong>um</strong> pudico movimento que não admite réplica.É possível confabular com ele meia hora, <strong>um</strong>a hora, sem lhe ouvir outracousa que consi<strong>de</strong>rações sobre o bom e o mau tempo, sobre a superiorida<strong>de</strong> daroupa preta em relação à <strong>de</strong> cor, sobre a melhor maneira <strong>de</strong> preparar <strong>um</strong> molho <strong>de</strong>tomates, ou sobre as inconveniências <strong>de</strong> se viajar no estribo do bon<strong>de</strong>. Falacorrentemente, com certa graça natural, acentuando, recortando, remexendo,60


www.nead.unama.brsaboreando com volúpia os ínfimos pormenores, como quem chupa os ossinhos <strong>de</strong><strong>um</strong> frango assado.O Sr. João Cesário faz-me, às vezes, o efeito <strong>de</strong> <strong>um</strong>a boa ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>balanço. Quando me sinto fatigado dos meus infindáveis solilóquios, que nadaconcluem, entreter <strong>um</strong> quarto <strong>de</strong> hora <strong>de</strong> conversação com este homem é o mesmoque trocar <strong>um</strong> cavalo aragano por <strong>um</strong>a ca<strong>de</strong>ira fofa e embaladora. Não há senão otrabalho <strong>de</strong> fazer a ca<strong>de</strong>ira balançar.Tive ontem esse prazer. O Sr. João Cesário c<strong>um</strong>primentou-me com a suahabitual bonomia temperada <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>:— "Como vai o bom amigo?"— "Bem, obrigado".— "Bem mesmo?"— "Assim, assim..."— "Por que?"— "Nada. Vou bem."— "E a família?"— "Bem."— "Sua irmã?"— "Agora bem."— "Ah! Esteve doente?"— "Coisa ligeira."— "Constipação, <strong>de</strong> certo."— "Justamente."— "O tempo é disso. Tudo por aí anda cheio <strong>de</strong> gripados. Em casa, todosmais ou menos perrengues."— "Que maçada!"— "Mas não há nenh<strong>um</strong> caso sério. Creio que o mais doente ainda sou eu."— "Não parece."— "As aparências. Tenho <strong>um</strong>a dorzinha <strong>de</strong> cabeça que não para, aqui, entrea fonte e a nunca, passando por cima da orelha, — vê neste ponto. Mas o pior é queo intestino anda funcionando meio à matroca, — <strong>de</strong> tudo, <strong>um</strong>a sensação <strong>de</strong> cansaçopelo corpo todo, essa sensaçãozinha amolante e gostosa <strong>de</strong> <strong>um</strong> corpo que estápedindo cama — ou re<strong>de</strong>, que é melhor... Ah! Ah!"— "E o senhor sai, apesar <strong>de</strong> tudo?"— "Ah! Não posso ficar preso — é inútil! — senão em último extremo.Acredito mesmo que a gripe, conseguindo resistir-se-lhe <strong>de</strong> pé, vai embora maiscedo. 8enti-lhe a visita há três dias, sábado. Sábado à tar<strong>de</strong>. Disse à minha velha:"Por sua culpa, estou gripado." Ela ficou passada. "Por minha culpa, Cesário?" -"Sim, por sua culpa, porque me obrigou, ontem à noite, com aquele frio, a dar <strong>um</strong>agran<strong>de</strong> volta pelo bairro. Coitada, arranjou-me mais que <strong>de</strong>pressa <strong>um</strong> escaldapés,<strong>um</strong>a camisa <strong>de</strong> flanela, <strong>um</strong>as meias <strong>de</strong> lá, <strong>um</strong> chá, e esteve a ponto <strong>de</strong> fazerpromessa a Nossa Senhora da Penha. Mas eu exagerava. Gosto <strong>de</strong> brincar com avelha; nunca vi criatura mais medrosa, quando se trata <strong>de</strong> doenças em casa. Claroque apanhei porque tinha <strong>de</strong> apanhar..."— "Não se sabe como é que ela chega"— "Não, às vezes se sabe. Mas, no meu caso, não foi o tal passeio <strong>de</strong> noite.Digo que não foi porque, já antes <strong>de</strong> mim, o Alfredinho meu filho sentira a primeirabordoada. Só nos contou isso ontem à hora do chá. Demais, estou habituado a fazervoltas a pé, <strong>de</strong> noite, <strong>de</strong>pois do jantar, quando não chove. É verda<strong>de</strong> que aquela61


www.nead.unama.brnoite tinha caído <strong>um</strong>a garoinha, coisinha <strong>de</strong> nada, ali pelas sete horas. Quandosaímos às nove, o céu estava limpo como <strong>um</strong> prato. E que luar! Fomos até lá ao altodo morro, <strong>de</strong>scemos pela avenida, passamos pela igreja..."— "Sr. Cesário, leu a notícia daquele crime?"— "Nem fale! Que coisa estúpida! Como se mata <strong>um</strong> homem pacato,trabalhador, boa pessoa! Aqui está <strong>um</strong> caso em que eu, jurado, não tinhacontemplações. Então é assim? Destrói-se <strong>um</strong> pai <strong>de</strong> família como quem acaba com<strong>um</strong>a cobra à-toa, por <strong>um</strong>as questõezinhas <strong>de</strong> nonada?"— "Havia <strong>um</strong>a questão <strong>de</strong> honra, alega o assassino."— "Honra, honra! Pusesse a mulher para fora <strong>de</strong> casa."— "Mas, ele amava a mulher."— "Qual, nada. O seu <strong>de</strong>ver era esse, e nunca matar. Ninguém po<strong>de</strong> matar.A vida, quem a dá é Deus, e quem a po<strong>de</strong> tirar é só Deus".— "Mas o senhor garantirá que não foi Deus quem a tirou à vítima porintermédio do assassino, como a podia tirar por meio do tifo ou do automóvel?"O Sr. João Cesário não respon<strong>de</strong>u; nem pestanejou sequer. Puxou do lenço<strong>de</strong> linho, que trazia dobrado no bolso da direita, escarafunchou as ventas, tornou aassoar-se, dobrou e guardou o lenço. Em seguida tirou <strong>um</strong> outro <strong>de</strong> fina cambraia,que trazia alequeado no bolsinho <strong>de</strong> cima, e passou-o pelos lábios e pelas fossas.Por fim, arr<strong>um</strong>ou-o <strong>de</strong> novo, calcou-o, e, n<strong>um</strong>a <strong>de</strong>spreocupação satisfeita:— "Pois é isso".Pouco adiante, disse-me a<strong>de</strong>us, esperou o carro parar bem parado, <strong>de</strong>sceu,voltou-se para mim a fazer <strong>um</strong>a última cortesia, e partiu, muito apertado no seu ternoazul <strong>de</strong> risquinhas brancas, sopesando com graça a bengala <strong>de</strong> castão <strong>de</strong> ouro.E havia em redor <strong>de</strong>le <strong>um</strong> halo <strong>de</strong> perfeição.Eis aí <strong>um</strong> homem feliz. Acompanhei-o com <strong>um</strong> olhar <strong>de</strong> inveja, enquantopu<strong>de</strong>; mas acabei por me resignar. Coisas que não se apren<strong>de</strong>m, não se adquirem.Que fazer? Limitarmo-nos a admirar.Este indivíduo, como tantos outros aparentemente insignificantes, é <strong>um</strong>averda<strong>de</strong>ira maravilha da h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>. Que assombrosa obra <strong>de</strong> inteligência e <strong>de</strong>técnica magistral, a composição <strong>de</strong>ste mecanismo físico-psíquico, tão perfeitamenteadaptado a todas as condições médias <strong>de</strong> <strong>um</strong>a navegabilida<strong>de</strong> tranqüila!Foi, sem dúvida, fabricado após <strong>um</strong>a série imensa <strong>de</strong> provas e após <strong>um</strong>acolheita e apreciação rigorosa <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> dados experimentais. Diga quem oquiser que é mero produto das forças inconscientes da natureza".DE AMICITIAIa eu muito macambúzio, no meu banco <strong>de</strong> trás, e nem sabia porque.Lembro-me <strong>de</strong> que, em casa, quando me aprontava para sair me haviairritado por causa <strong>de</strong> uns inci<strong>de</strong>ntes minúsculos. Ao vestir o colete, o relógio caíramedo bolso, e ficara suspenso pela ca<strong>de</strong>ia; e alg<strong>um</strong>as moedas que estavam nooutro bolsinho <strong>de</strong>spencaram para o soalho, rolando em todas as direções, comoexpressamente para me fugir. Quando eu passava a escova pelo chapéu, ela<strong>de</strong>ixara pegada à copa <strong>um</strong>a lanugem <strong>de</strong> felpas impalpáveis, <strong>de</strong> seda ou <strong>de</strong> algodão,que tive <strong>de</strong> extrair à unha, <strong>um</strong>a por <strong>um</strong>a.62


www.nead.unama.brSaí quase a correr, e o casaco se me enganchou pelo bolso à maçaneta daporta. Libertei-me, empurrei a porta com <strong>um</strong> safanão, e ela, voltando, soltou <strong>um</strong>relincho tão triste, que me senti subitamente envergonhado da minha estúpidaimpaciência.Que covardia e que ingratidão ser bruto com as coisas! É preciso, aocontrário, amá-las, no recanto em que vivemos, como as boas protetoras einalteráveis amigas. O aspecto or<strong>de</strong>nado, limpo, benévolo e tácito dos objetos queme ro<strong>de</strong>iam, no meu quarto, parece refletir às vezes algo que não é bem <strong>de</strong>stemundo: <strong>um</strong> ambiente <strong>de</strong> estampa, <strong>um</strong>a atmosfera <strong>de</strong> história, <strong>um</strong> casulo <strong>de</strong>intimida<strong>de</strong>s intangíveis, <strong>um</strong>a ilusão <strong>de</strong> permanência e <strong>de</strong> espiritualida<strong>de</strong> — enfim,<strong>um</strong> sonho, <strong>um</strong>a doçura, <strong>um</strong> perf<strong>um</strong>e.Ao tomar o bon<strong>de</strong>, porém, já eu pensava em coisas muito diversas daquelesinci<strong>de</strong>ntes. De modo que não sei porque fiz meta<strong>de</strong> da viagem tão sombrio, a olharpara o mundo com <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> terror inerte. A estupi<strong>de</strong>z e o mal da vida se merevelavam com a evidência <strong>de</strong> <strong>um</strong> aci<strong>de</strong>nte brutal, como <strong>um</strong> sinistro imenso que seacabasse <strong>de</strong> produzir, ali, <strong>de</strong> repente, sob meus olhos.Hei <strong>de</strong> cons<strong>um</strong>ir os anos que me restam, como tantos que já passaram, afazer duas e quatro vezes por dia este mesmo trajeto, a percorrer estas mesmasruas, estas mesmas esquinas, estes mesmos postes, entre as mesmas caras, aseternas caras indiferentes insidiosas, malignas, sornas, fátuas, soberbas, hostis.Hei <strong>de</strong> ir todos os dias à repartição, ver a cara regulamentar do chefe, ver ascaras dos meus cinco ou seis auxiliares, <strong>um</strong>a tola outra escarninha, outra fútil efinória, outra bovinamente resignada e mortiça. E não hei <strong>de</strong> topar muitas vezes naminha frente com alg<strong>um</strong>a cara aberta e sincera, alg<strong>um</strong>a cara il<strong>um</strong>inada e boa,<strong>de</strong>sfranzida e cordial, que me olhe firme e <strong>de</strong> chapa com uns olhos direitos e claroscomo duas espadas, límpidos e quentes como duas chamas.Meu Deus, como pu<strong>de</strong> viver até hoje <strong>de</strong>ste jeito! Meu Deus como é que hei<strong>de</strong> viver ainda, sabei-me lá até quando, nesta triturante estupi<strong>de</strong>z e nesta abjeçãoignominiosa! Matai-me, senhor, matai-me logo. Ou então, dai-me <strong>um</strong>a sorte naloteria, que me permita sair por esse mundo, sem cuidados, livre, errante, como ohomem que per<strong>de</strong>u a sombra, durante os primeiros momentos <strong>de</strong> sua peregrinação."Ia engolfado nestes pensamentos amarelos, quando subiu e veio sentar-se ameu lado o Aurélio <strong>de</strong> Moura. C<strong>um</strong>primentou-me com afabilida<strong>de</strong> mais larga do quea habitual. Acolhi-o com prônubos alvoroços.Auré1io perguntou-me solícito pelas minhas coisas, passando-me o braçopelo ombro, com <strong>um</strong> sorriso <strong>de</strong> páscoa. Deixei-me abraçar, comovidamente, econversamos.Este rapaz é dos que parecem apostados a pensar, no miúdo e no grosso,<strong>de</strong> modo radicalmente diverso do meu; mas esta circunstância, que em outrasocasiões me quizilava, então se me tornou mais <strong>um</strong> motivo <strong>de</strong> satisfação, como <strong>um</strong>bom molho ajuntado a <strong>um</strong> prato já <strong>de</strong> si excelente. Concedi tudo a Aurélio, peloprazer <strong>de</strong> o ver trabalhar em liberda<strong>de</strong>. As coisas vulgares e as coisas estrambóticasque ele dizia, tudo me soava <strong>um</strong>a doce música."Fala, Aurélio! Fala, fala tudo quanto quiseres. Agrada-me pensar que é paramim só que tu falas, que o teu espírito veio verter no meu a esp<strong>um</strong>a generosa doseu mosto vivo — <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> confidência sem gravida<strong>de</strong> e sem segredo, masindiretamente complexa e escancarada.Fala Aurélio! Achas que os postes <strong>de</strong> fios elétricos <strong>de</strong>viam ser pintados <strong>de</strong>escarlate? Muito bem. Achas que o Brasil precisa urgentemente ser invadido peloargentarismo estrangeiro, que é necessário matar todos os leprosos e que as63


www.nead.unama.brmulheres não <strong>de</strong>vem mais apren<strong>de</strong>r a ler nem escrever? Continua, Aurélio; tensrazão, porque me divertes e porque confias na minha tolerância. Continua sempre.Pensas que a música é a mais insignificante das artes e que a poesia <strong>de</strong>verá serproibida por <strong>de</strong>creto? Fala, fala....A mim tu tens a coragem <strong>de</strong> dizer tudo, e isto significa que tu avaliasafetuosamente a minha capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouvir todos os <strong>de</strong>stampatórios honestos e <strong>de</strong>levar a sério todas as tolices sinceras. Com efeito, nada mais interessante do que<strong>um</strong>a opinião, essa coisa rara, essa coisa inútil e preciosa.Mas, na verda<strong>de</strong>, o que ora mais me interessa não são as tuas opiniões, é ofato <strong>de</strong>, mas expores nessa confiança tranqüila e ri<strong>de</strong>nte, sem reservas e semreceios, à sombra da frondosa Amiza<strong>de</strong>, — a bela, a santa, a benéfica Amiza<strong>de</strong>, oúnico dom dos <strong>de</strong>uses <strong>de</strong>smemoriados, que nunca mais se lembrariam <strong>de</strong> nós, ospobres h<strong>um</strong>anos, ou que, tendo-no-la dado, enten<strong>de</strong>ram ter-nos feito a maior ofertacompatível com o nosso egoísmo e a nossa ruinda<strong>de</strong>".Entrementes, Aurélio discorria. Asseverava, por último, que higiene pública éapenas o negócio dos médicos higienistas e dos fabricantes <strong>de</strong> aparelhos higiênicos.— "Sim, talvez tenhas razão".— "Bem, eu salto aqui, seu Felício. Mais <strong>um</strong>a vez, obrigado pela passagem".Eu tinha-lhe pago a passagem."Ora, ora!"— "Não você nem sabe que favor me fez. Saí <strong>de</strong> casa sem <strong>um</strong> níquel. Mas,quando vi você neste bon<strong>de</strong>, lá da esquina da alameda, disse cá comigo, estougarantido. E eis aí por que você teve <strong>de</strong> me aturar todo esse tempo! Como sabe,esta linha não é a que mais me convém. Mas quem não tem cão... Obrigadinho.Ciao!".— "Té logo, Aurélio..."PROBLEMASHoje, o bon<strong>de</strong> vinha cheio, e tive <strong>de</strong> ce<strong>de</strong>r o meu lugar a <strong>um</strong>a senhora. Esta,ao invés <strong>de</strong> me agra<strong>de</strong>cer, parece que ficou ligeiramente arrufada com a minhagentileza.Creio que a ética do bon<strong>de</strong> manda que, ao ce<strong>de</strong>r o lugar, o passageiro nãodê a isso a mais ligeira aparência <strong>de</strong> <strong>um</strong> ato <strong>de</strong> cortesia faça-o friamente, como por<strong>um</strong>a obrigação regulamentar. Deve ser isso.Mas será? Eis aí <strong>um</strong> dos in<strong>um</strong>eráveis problemas psicológicos que o bon<strong>de</strong><strong>de</strong>para. O bon<strong>de</strong> é <strong>um</strong> saco <strong>de</strong> víspora: é só meter a mão, remexer, pegar, lá vem oproblema psicológico.Infelizmente, esses problemas vão ficando cada vez mais obscuros, àmedida que cresce o número dos psicologistas, número infinito, hoje em dia, sócomparável ao dos sociólogos. Se o futuro do Brasil <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>sse da psicologia dasociologia, estava garantido; e só nos restava lamentar que não pudéssemos vivermais uns cinqüenta ou cem anos, para assistir ao gran<strong>de</strong> fogo <strong>de</strong> vistas dosresultados. Estupenda coisa a ciência!Há dias, vi o Sr. João Cesário a conversar atentamente com <strong>um</strong> mocinhosisudo e altivo. Este falava em coisas difíceis: mentalida<strong>de</strong> primitiva — formaçãoalógena — metabolismo racial — camadas <strong>de</strong> aluvião — i<strong>de</strong>alismo hipocondríaco —64


www.nead.unama.brteorias <strong>de</strong> Comte e Spencer — obras <strong>de</strong> Le Play, Fouillet, Tar<strong>de</strong>, Novicow, Pareto,memórias <strong>de</strong> Schwaartzemberg e Perikowski, <strong>de</strong> Astrinaieffe e Dragobsen. Derepente, <strong>de</strong>spediu-se e <strong>de</strong>sapareceu veloz, como <strong>um</strong>a motocicleta.Corria, provavelmente, a endireitar alg<strong>um</strong> erro perigoso <strong>de</strong> técnica social,que estivesse para <strong>de</strong>sabar sobre nós. Digno bombeiro da Ciência!Neste ínterim, perguntei assombrado ao Sr. Cesário:— "Quem é este menino? Que sábio!"— "Nem tanto. Muito estudioso, isso sim. Especializou-se — não sabe? Éapenas sociólogo".Senti-me absolutamente acalcanhando com ver <strong>um</strong> menino que, ainda longedos trinta anos já havia conseguido ser <strong>um</strong> sociólogo, apenas. Senti necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>esquecer aquilo.Montesquieu disse que não havia aborrecimentos que não lhe passassemcom meia hora <strong>de</strong> leitura. Não sei se isto provará a virtu<strong>de</strong> da leitura ou antes <strong>de</strong>Montesquieu. A mim, muitos aborrecimentos me <strong>de</strong>saparecem com a <strong>de</strong>cifração <strong>de</strong>problemas ou com jogos <strong>de</strong> paciência. Armei logo <strong>um</strong>a série <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s atravésdos miolos, e <strong>de</strong>pois mergulhei em cogitações para as <strong>de</strong>smanchar <strong>um</strong>a por <strong>um</strong>a.Foi o que fiz hoje. Não tendo mais em que me ocupar, comecei a extrair eremexer os problemas que o bon<strong>de</strong> me oferecia, abundante corno pedreira.Por que é que os nossos conhecidos sempre nos aparecem nos bancos <strong>de</strong>trás à hora da cobrança das passagens?Por que é que as senhoras apeiam voltadas para o lado traseiro do carro?Por que é que os condutores, quando recebem as passagens, vêm com cara<strong>de</strong> cobradores <strong>de</strong> contas atrasadas?Por que é que não se po<strong>de</strong> tirar <strong>um</strong> lenço ou abrir <strong>um</strong>a cigarreira sem<strong>de</strong>spertar a atenção vigilante do vizinhos?Por que é que, ao contrário, se a gente sofre e tosse com o f<strong>um</strong>o <strong>de</strong> <strong>um</strong>cigarro alheio isso não é percebido nem pelo vizinho f<strong>um</strong>ante?Por que é que, quando lemos, há sempre <strong>um</strong> passageiro a querer por força<strong>de</strong>scobrir o que vamos lendo?Por que é que os homens, quando pe<strong>de</strong>m licença para passar, são maisatenciosos à entrada do que à saída?Por que é que o lavador <strong>de</strong> pratos ou o ven<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> bananas trata oscondutores como se estes fossem os trintanários <strong>de</strong> seus coches?Por que é que o passageiro acha graça nas grosserias ou <strong>de</strong>saforos docondutor, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que não são com ele?Por que é que, encontrando <strong>um</strong> amigo distraído e pagando-lhe a passagem,ele imediatamente nos pergunta como vai a família?Por que é que só assobiam no bon<strong>de</strong> indivíduos inteiramente <strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong>memória musical?Por que é que, se chove, há sempre, ao nosso lado ou à nossa frente, <strong>um</strong>passageiro que não tolera cortinas arriadas?Por que é que tantas senhoras gordas, não permitindo que se lhes toque <strong>de</strong>leve com o <strong>de</strong>do, não fazem contudo nenh<strong>um</strong>a cerimônia para se amesendar emcima <strong>de</strong> nossa perna?Por que é que há tanta comoção no bon<strong>de</strong>, se este pega <strong>um</strong>a galinha, e nãohá nenh<strong>um</strong>a por causa do homem enfermo, aleijado e <strong>de</strong>crépito que vai no carro?Por que é que os moços bonitos e os célebres ficam sentados <strong>de</strong> viés?65


www.nead.unama.brPor que é que temos tanta paciência para per<strong>de</strong>r duas horas n<strong>um</strong>a panedifícil <strong>de</strong> automóvel, e nenh<strong>um</strong>a para sofrer dois minutos <strong>de</strong> parada do bon<strong>de</strong> n<strong>um</strong><strong>de</strong>svio?Por que é que as senhoras, ao pagar a passagem, custam tanto a encontraro dinheiro na bolsa?Por que é que o bon<strong>de</strong> estimula em certos indivíduos a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> comeramendoim torrado e tremoços?Por que é que as pessoas mais <strong>de</strong>socupadas e mais pachorrentas se tomam<strong>de</strong> pressa e <strong>de</strong> nervos quando o bon<strong>de</strong> vai chegando ao ponto final?Por que é que nos dói mais termos perdido o nosso bon<strong>de</strong> do que o ter <strong>um</strong>amigo perdido o trem — ou mesmo <strong>um</strong>a perna?ESCOTEIROAinda revejo nitidamente aquele escoteirinho que entrou hoje no bon<strong>de</strong> pelamão do venerando papai. Um feixinho <strong>de</strong> ossos, olhos brancos, lábio pen<strong>de</strong>nte,postura curva e bamba <strong>de</strong> aluno <strong>de</strong> catecismo. Retrato i<strong>de</strong>al do menino dócil e bemcomportado.Se o inflexível progenitor lhe falava, respondia com respeitoso sorriso,sorriso frágil e distante, virando para a cara fiscalizadora uns olhos <strong>de</strong> animalzinhoperfeitamente domesticado.O pai, sem dúvida, muito satisfeito com esse rebento esperançoso, tãoautomático na obediência e na penúria <strong>de</strong> vida. O pequeno chamava-lhe papai.Coitadinho! Devia chamar-lhe progenitor.Progenitor é o nome que na verda<strong>de</strong> calha a esta espécie <strong>de</strong> autores <strong>de</strong>vidas alheias. Impiedosamente solícitos, eles parasitam as suas misérrimascriaturas. Polvos agarrantes, colantes e triturantes, abusam do direito <strong>de</strong> sersenhores <strong>de</strong> almas. Estão cheios da crença surda <strong>de</strong> que o melhor que po<strong>de</strong>m fazera seus filhos é formá-los à sua semelhança.Parecem orgulhosos <strong>de</strong> ter mudado o empirismo da paternida<strong>de</strong> n<strong>um</strong>aespecialização técnica. Têm o ar <strong>de</strong> pais <strong>de</strong> família diplomados.Já não lhes bastam as luzes da Pedagogia, da moral, da Religião, daMedicina, da Gramática e do don't. Renovas achegas até na Sociologia. A Psicologiavai-se-lhes impondo como <strong>um</strong> evangelho (tanto mais cômodo quanto se po<strong>de</strong> abrirem qualquer lugar e ler <strong>de</strong> corrida ou salteado). Creio que a heráldica e o cálculointegral também têm que ver com a matéria.Progenitores! Progenitores! Homens respeitáveis, sapientes e pen<strong>de</strong>ntes,sagazes e tenazes. Tenazes sobretudo. Tenazes <strong>de</strong> ferro! Só lhes falta <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong>bom senso e <strong>um</strong> pouco do senso <strong>de</strong> h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>. E apenas per<strong>de</strong>m o direito a essenome simples, vivo, saboroso e místico <strong>de</strong> pai.Pai! Palavra elementar e profunda irmã <strong>de</strong> ar, água, pão, sol, dor, alegria,esperança, coisas fundamentais e essenciais, belas e terríveis como tudo quantonos supera, tudo quanto nos vivifica, nos vê passar, e continua. Palavra <strong>de</strong>ressonâncias externas, com barulhos <strong>de</strong> lágrimas e anseios <strong>de</strong> amor, <strong>de</strong> melancoliae <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong>.Mas também isso ten<strong>de</strong> a <strong>de</strong>saparecer sob a capa <strong>de</strong> ch<strong>um</strong>bo docientificismo, do tecnicismo e do pedantismo esmiuçador e complicador, pragas quevão <strong>de</strong>vorando todas as boas coisas <strong>de</strong>ste mundo triste, como aquelas vacas que<strong>de</strong>voravam vacas, no sonho do faraó.66


www.nead.unama.brOs persas, <strong>de</strong> há dois mil anos, segundo o testemunho <strong>de</strong> Heródoto, nãoqueriam que seus filhos apren<strong>de</strong>ssem nada mais que três coisas: montar a cavalo,manejar o arco e dizer a verda<strong>de</strong>. Era <strong>um</strong> programa completo <strong>de</strong> educação individuale geral, utilitária e i<strong>de</strong>alista, física e psíquica, individual e social.Montar a cavalo — eis a primeira necessida<strong>de</strong>. Todos temos <strong>de</strong> sercavaleiros, <strong>de</strong> guiar <strong>um</strong>a besta e <strong>de</strong> nos servir <strong>de</strong>la. Manejar o arco — arma franca,simples e forte, ato <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> sangue frio, <strong>de</strong> coragem viril e leal,abertamente praticado à luz do sol, em cima do cavalo. Dizer a verda<strong>de</strong> —con<strong>de</strong>nsação última e por feita <strong>de</strong> todos os <strong>de</strong>veres, dos mais sérios, mais ásperos,mais agoniantes e esporeantes <strong>de</strong>veres da vida com<strong>um</strong> da ativida<strong>de</strong> intelectual quequer pairar no alto e ser fecunda, da sublimação moral que preten<strong>de</strong> chegar àretidão, à simplicida<strong>de</strong> e ao fulgor <strong>de</strong>finitivo.Mas estas sínteses divinatórias se vão tornando impossíveis. Tudo ésabença, é técnica, é pedantologia, é complicação.Diante daquele pai e daquele filho, fiquei a pensar na sorte das belas idéiase no irônico <strong>de</strong>stino dos inventores.O escotismo nasceu do exemplo dado pelos boys sul-africanos na guerracontra os ingleses. Ágeis e robustos, trepando às árvores como serelepes,arrastando-se por chãos e pedregais como lagartixas, varando lagoas como filhotes<strong>de</strong> hipopótamos, espertos e pân<strong>de</strong>gos como gorilazinhos, pru<strong>de</strong>ntes comotartarugas, teimosos como porcos do mato, eram ótimos exploradores e espias <strong>de</strong>campanha.N<strong>um</strong> contato combinado com a áspera natureza e a necessida<strong>de</strong> multiformee imperiosa, ganhavam <strong>um</strong>a força <strong>de</strong> paciência, <strong>de</strong> coragem e <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprendimento,<strong>um</strong>a flexibilida<strong>de</strong> e rapi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> senso prático, <strong>um</strong>a <strong>de</strong>streza <strong>de</strong> espírito, que, ems<strong>um</strong>a, constituíam <strong>um</strong>a bela moralida<strong>de</strong> agreste e saudável, natural como arespiração ou como as funções digestivas.Desconheciam as intemperanças da paz e da praça, o beberete, oestupefaciente, a literatura <strong>de</strong>salmada, a gula, o dinheiro, o luxo, o mercantilismo, acabotinagem, a intriga, a maledicência, o espirito, o eretismo sentimental e sexual.Sóbrios, tácitos, incisivos. Da civilização, só assimilavam a fina flor; da barbárie, amasculinida<strong>de</strong> sadia, generosa e jovial.Um general britânico viu isso, franziu impressionado o sobrolho, curvou acabeça, parafusou. Por que não transplantar essa espontânea florescência dacasualida<strong>de</strong> viva para os domínios da educação social?Voltando à Inglaterra, criou o escotismo. Era o remédio indicado para sanearvárias fontes <strong>de</strong> podridão, que iam minando a fibra do old Tom.O mundo todo pegou a fórmula e aplicou-a. Mas, geralmente, a fórmula só.O eterno prestigio das receitas não podia falhar: a receita pareceu esplêndida. Belareceita! E a receita voou para todos os cantos do mundo, como a última <strong>de</strong>scobertapara limpar chapéus <strong>de</strong> palha, para curar <strong>de</strong>fluxos ou para compor obras <strong>de</strong> artegeniais e vendáveis.O resultado ei-lo aí: <strong>um</strong>a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> coelhinhos guardanacionalizados;<strong>um</strong>a escola <strong>de</strong> virilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência, <strong>de</strong> selfcontrol e <strong>de</strong> ânimo benfazejo,mudada n<strong>um</strong>a triste e gélida pedagogia, regular, burocrática, higiênica, ginástica,homenageativa, sob programazinhos variados que são sempre a mesma coisa. Etudo comandado a toques <strong>de</strong> apito, entremeado <strong>de</strong> discursos e — supremo horror!— tudo meticulosamente, implacavelmente mecanizado pela sapiência mensuradorados técnicos.67


www.nead.unama.brAh! Os terríveis técnicos, os tenebrosos técnicos, iscados até à medula poresse flagelo do século, o tecnicismo anti-séptico, esterilizador <strong>de</strong> toda bactéria <strong>de</strong>entusiasmos e instintivida<strong>de</strong>s turbulentas e regenerativas!Essa, a marcha inevitável <strong>de</strong> todas as altas idéias quando <strong>de</strong>scem ao campoda realização, que é o da <strong>de</strong>gradação. Esse, o irônico <strong>de</strong>stino que aguarda ossonhos <strong>de</strong> todos os inventores, concepções l<strong>um</strong>inosas cujo arcabouço lógico setransmite e se propaga, mas cuja alma lírica e divinatória permanece no altiplanodas possibilida<strong>de</strong>s incompreendidas.Esta alma é incomunicável, como a alma do Vesúvio é estranha aos hábeisartistas que cá por baixo, colhem a lava resfriada para talhar nela as suas eternas,invariáveis figurinhas.UM HOMEM PERFEITOTenho-me encontrado muito com o Sr. Cesário, ultimamente. O Sr. Cesário,às doses espaçadas e discretas, faz bem. É <strong>de</strong>singurgitante, refrescativo, <strong>um</strong>a coisaassim entre o sal <strong>de</strong> frutas e sorvete <strong>de</strong> copinho. Mas, todos os dias, em todas asviagens, é <strong>de</strong>mais.Aquilo que, <strong>de</strong> quando em quando, e por momentos, nos encanta como <strong>um</strong>livro novo, folheado a furto, com a continuação se converte n<strong>um</strong> símile <strong>de</strong>ssasrevistas atrasadas e revistas que se nos oferecem na sala <strong>de</strong> espera do <strong>de</strong>ntista ouna loja do barbeiro.Mas tudo tem o seu lado aproveitável. O lado aproveitável do Sr. Cesário éque ele me dá lições <strong>de</strong> estilo, do estilo estabilizado e conspícuo que convém àsrelações públicas entre funcionários e pessoas colocadas. Ele não é, mas <strong>de</strong>via serdiretor <strong>de</strong> <strong>um</strong>a repartição.Fala como <strong>um</strong> bom minutador <strong>de</strong> ofícios. Tem a serena compenetração <strong>de</strong>autorida<strong>de</strong>, o senso das hierarquias, o tato diplomático, o respeito das fórmulas e aimpersonalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> julgamentos que se requer n<strong>um</strong> chefe acabado. Por esseaspecto burocrático, o seu contato é útil. Boa pedra <strong>de</strong> amolar. O mau é que àsvezes amola <strong>de</strong>mais.Que rico fundo <strong>de</strong> idéias honestas ele possui! Em poucos dias, assim comoquem não se aplica, durante quinze ou vinte minutos <strong>de</strong> bon<strong>de</strong>, fiz <strong>um</strong>a boa coleta<strong>de</strong> opiniões do meu distinto amigo.O que não lhe faltam são opiniões. O Sr. Cesário é <strong>um</strong> homememinentemente opinativo sem contudo ser opiniático. Já houve mesmo <strong>um</strong> indivíduomaldoso, <strong>de</strong> cujo nome nem me quero lembrar, que <strong>um</strong>a vez mo <strong>de</strong>finiu comescarninho intento, nestes termos: "<strong>um</strong> filho dileto da Opinião Pública."O Sr. Cesário sentencia, por exemplo que "tudo nesta vida é questão <strong>de</strong>ponto <strong>de</strong> vista." Afirma, acentuando o tom <strong>de</strong> convicção, a corrigir a aparente levezada frase paradoxal, que "o senso com<strong>um</strong> é o que há <strong>de</strong> menos com<strong>um</strong> entre oshomens". Também cost<strong>um</strong>a <strong>de</strong>clarar, com <strong>um</strong> gesto fisionômico <strong>de</strong> aguda intuição,que "tudo é relativo".Acerca <strong>de</strong> moral, só lhe ouvi por enquanto <strong>um</strong> conceito genérico nitidamenteformulado: "Inteligência sem caráter é droga".Sobre o Além, a vida e a morte, a crença, e assuntos correlatos, cost<strong>um</strong>a sermais explícito, provavelmente porque a sua situação <strong>de</strong> amigo do vigário daparóquia e <strong>de</strong> irmão do Santíssimo lhe tem permitido certa familiarida<strong>de</strong> com omistério.68


www.nead.unama.brConce<strong>de</strong> que o Outro Mundo seja coisa duvidosa, mas acha que, em todocaso não convém brincar. A esperança e o temor que se ligam ao Além sãonecessários e são insubstituíveis.O que lhe repugna é o inferno. Nesse, acredita "porque é seu <strong>de</strong>ver <strong>de</strong>católico nato e praticante acatar as injunções da Igreja". Mas, afinal, o verda<strong>de</strong>iroinferno parece que "e aqui mesmo" — "se bem que não se <strong>de</strong>vam aceitar certosexageros <strong>de</strong> pessimismo".Ontem, o Sr. Cesário saiu-se com esta frase: "Deixe falar, a religião é <strong>um</strong>freio, como dizia padre Miguel, meu padrinho."As suas opiniões sociais e políticas são do mesmo feitio enxuto e corrente:Todas as formas <strong>de</strong> governo são boas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que haja honestida<strong>de</strong>.O nosso povo não estava preparado para a República.Governar é <strong>um</strong>a questão <strong>de</strong> bom senso e <strong>de</strong> recursos.É <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> mal a oposição sistemática.Cada povo tem o governo que merece; mas nem sempre.A política <strong>de</strong> hoje é eminentemente econômica.A maior das nossas necessida<strong>de</strong>s é a educação, — em termos.O brasileiro é muito inteligente, mas indisciplinado e vadio.Não há questão social no Brasil, pais novo, aberto a todas as iniciativas.Somos <strong>um</strong> povo em formação.A boa administração <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da estreita harmonia dos po<strong>de</strong>res.A mulher <strong>de</strong>ve permanecer no seu posto <strong>de</strong> rainha do lar.A esmola <strong>de</strong>prime e nada adianta.O empregomania e o bacharelismo são dois males nacionais.A retórica é outro vício brasileiro.A dissolução dos cost<strong>um</strong>es caminha a passos <strong>de</strong> gigante.O Brasil é <strong>um</strong>a terra <strong>de</strong> poetas.A maior das nossas <strong>de</strong>sgraças é a crise <strong>de</strong> caráter."A lavoura é a coluna mestra do nosso sistema arterial".Ontem, acertou <strong>de</strong> falarmos a respeito <strong>de</strong> literatura, a propósito <strong>de</strong> <strong>um</strong>romance <strong>de</strong> Macedo, que Cesário me pedira emprestado. Declarou que não era paraele, mas para a senhora. Não gosta senão <strong>de</strong> romances históricos e instrutivos,como os <strong>de</strong> Júlio Verne e Vítor Hugo.Passou a expen<strong>de</strong>r idéias sobre outros ramos. Não per<strong>de</strong> tempo compoesias, mesmo porque não as enten<strong>de</strong>. Os dramas e tragédias já não são para osnossos dias; ninguém mais se resolve a ir ao teatro para ficar triste; e para tristezasbastam as da vida. O teatro <strong>de</strong>ve ser h<strong>um</strong>orístico e moral.Os Lusíadas, a seu ver, foram feitos especialmente para exercícios <strong>de</strong>análise. A obra po<strong>de</strong> ser muito boa, mas para quem gosta. De resto, o Sr. Cesárioestá convencido <strong>de</strong> que todos os clássicos, que aliás nunca leu, são cacetes eintragáveis. Parece mesmo pensar que eles escreveram expressamente para <strong>de</strong>ixarmo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> boa linguagem gramatical. E, <strong>um</strong> <strong>de</strong>stes dias, exclamou com recacho <strong>de</strong>homem-do-seu-tempo: "Quais clássicos, quais nada! A língua também evolui,enten<strong>de</strong>u?"Acha que a língua italiana é a mais suave, quando bem pronunciada; masque a mais útil, na atualida<strong>de</strong>, é a inglesa. Quanto à nossa, acredita que seja a maisdifícil <strong>de</strong> todas, a mais "cheia <strong>de</strong> dúvidas e encrenquinhas". Pois se o próprio RuiBarbosa, a "Águia <strong>de</strong> Haia", levou a vida inteira estudando português.O que aí fica é resultado <strong>de</strong> <strong>um</strong>a colheita muito irregular, mas já basta acaracterizar as qualida<strong>de</strong>s fundamentais <strong>de</strong>ste sólido e harmonioso espírito.69


www.nead.unama.brQuanto às expressões, o Sr. Cesário tem todas, todas quantas se achamconsagradas pelo gosto das classes respeitáveis.Se fosse capaz dos trabalhos seguidos, regulares e minuciosos da Filologia,eu po<strong>de</strong>ria tomar o meu amigo como <strong>um</strong> compêndio vivo das filtrações eruditas eliterárias <strong>de</strong> segunda mão na mentalida<strong>de</strong> média da burguesia nacional, e explorá-lometodicamente. Daria para <strong>um</strong> belo estudo <strong>de</strong> Psicologia Idiomática, cheio <strong>de</strong>conseqüências para o literato, para o glotologista, para o educador, e até para oalienista, — <strong>um</strong> belo estudo que, sem dúvida, não seria lido senão pelos indivíduosque a Providência <strong>de</strong>stacasse para lhe meterem a lenha.As expressões frias do Sr. Cesário são algo <strong>de</strong> suculento e <strong>de</strong> opíparo.Alg<strong>um</strong>as, as menos repolhudas, as meãs, ele as profere com plena serenida<strong>de</strong>. Mascomo aprecia igualmente as mais pomposas, sempre arranja lá <strong>um</strong> jeitinho <strong>de</strong> asempregar, soltando-as com <strong>um</strong> certo ar brincalhão ou irônico, que lhe dá por vezes oaspecto original <strong>de</strong> <strong>um</strong> homem que acha graça nas crepitações do própriopensamento.Já lhe apanhei, não há muito, sem lhe mexer nas molas, referências às"trevas da ignorância", ao "santuário do lar", ao "punhal da calúnia", à "máscara doanonimato" e ao "dédalo das paixões". Foi <strong>um</strong> dia em que estava impressionadocom a onda <strong>de</strong> crimes, suicídios e pouca-vergonhas que por aí vai "n<strong>um</strong> crescendoassustador". Falava com tal abundância e tal veemência, que cheguei quase a<strong>de</strong>sconfiar que me tivesse na conta <strong>de</strong> <strong>um</strong> dos responsáveis.De uns dias para cá, tenho subitamente guiado o fio e dado o tom àconversação, e o Sr. Cesário se <strong>de</strong>sata em chuveiros <strong>de</strong> preciosida<strong>de</strong>s.A propósito <strong>de</strong> política, lançou zargunchadas certeiras aos "eternos<strong>de</strong>scontentes", que "vivem a semear a cizânia" com seus "cantos <strong>de</strong> sereia". Mastambém, por <strong>um</strong> estríqueto "<strong>de</strong>ver <strong>de</strong> imparcialida<strong>de</strong>", não podia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> "verberaro impatriotismo <strong>de</strong> certos homens colocados no galarim, que transformam em vacas<strong>de</strong> leite os postos <strong>de</strong> sacrifício a eles confiados pelo povo, a eterna besta <strong>de</strong> carga".Terminou res<strong>um</strong>indo-se n<strong>um</strong>a sentida peroração:"Enfim, meu caro amigo! É a tal crise <strong>de</strong> caráter."Mas que quer? Nem a majesta<strong>de</strong> da religião escapa a esse referver <strong>de</strong>paixões subalternas! Até no seio das irmanda<strong>de</strong>s se intromete a politicagem rasteira!Até lá, indivíduos sem entranhas vão pondo a garra, com. pés <strong>de</strong> lã, e... Homem!paremos por aqui."O tempora!"De on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong> inferir que o Sr. Cesário andava às voltas com alg<strong>um</strong><strong>de</strong>saguisado na paróquia.A <strong>um</strong> espírito assim ricamente organizado não podia faltar <strong>um</strong> certo aparelho<strong>de</strong> erudição leve. Consegui os seguintes indícios, apanhados foneticamente, comoconvém a coisas pescadas nas águas vivas da elocução oral:"Laborônia vince — Cosivá ilmondo — Senon évéro... — Lemon<strong>de</strong>marche —Arraite! — Tâimismónei — Savá sandire — Via crúcis — Tante grácie, cabalhero! —Por mares nunca dantes navegados—Festim <strong>de</strong> Baltazar — Ci<strong>um</strong>ento como <strong>um</strong>Otelo — As trevas da Ida<strong>de</strong> Média — Cruelda<strong>de</strong> neroniana — Justiça imanente —Psicologia das multidões Os meio intelectuais — O poverélo <strong>de</strong> Assis — As lições dasociologia — A ciência <strong>de</strong> Ádan-Esmite — O último romântico — Os tonéis daDanai<strong>de</strong> — Vá <strong>de</strong>rrétro!"Enfim, gran<strong>de</strong> caçador <strong>de</strong> frases perante o Eterno!70


www.nead.unama.brO BONDE E A RUAO bon<strong>de</strong> da tar<strong>de</strong>, hoje, foi <strong>de</strong>morado por <strong>um</strong>a qualquer manifestaçãopopular, que lhe barrou a passagem. Os viajantes, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> satisfeita a primeiracuriosida<strong>de</strong>, obra <strong>de</strong> segundos, começavam a dar sinais <strong>de</strong> irritação, quando <strong>um</strong>orador entrou a trovejar. Essa obstrução pareceu a todos insuportável, e todavia nãodurou mais <strong>de</strong> cinco ou seis minutos.Sempre é verda<strong>de</strong> que a medida real do tempo é o nosso <strong>de</strong>sejo.Isto me faz lembrar o meu colega Sinfrônio <strong>de</strong> Mendonça, que, outro dia, lána repartição, ao inaugurar-se o retrato do chefe, quis à viva força ler <strong>um</strong> discurso. Eleu, prevenindo os ouvintes: "É curtinho senhores, tenham paciência".Esta esfarrapada <strong>de</strong>sculpa com que se cost<strong>um</strong>am cobrir os oradoresintempestivos baseia-se toda n<strong>um</strong> passe finório com as noções <strong>de</strong> tempo — a dotempo mecânico e objetivo e a do tempo psicológico ou subjetivo. Quando dizemque a peça é curta, é porque lhe aplicam a medida-relógio, como se fosse esta aque importasse aos ouvintes como se não fosse, por exemplo, <strong>um</strong>a verda<strong>de</strong>universal que o pequenino sermão <strong>de</strong> ouro que nos aborrece é <strong>de</strong>z ou mil vezesmais comprido do que a interminável lenga-lenga que nos lisonjeia.O nosso relógio interior tem também dois mostradores, <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> e outropequeno, mas o gran<strong>de</strong> é que dá medida prática dos minutos <strong>de</strong>sagradáveis, que aícorrespon<strong>de</strong>m às horas, e o pequeno marca a duração das horas amenas, que nelesão minúsculas frações — quando o ponteiro não está engasgado.O tempo real é conforme ao ícone que <strong>de</strong>le <strong>de</strong>ixaram os gregos — <strong>um</strong> velho<strong>de</strong>crépito que naturalmente se arrasta quando caminha por seus pés, mas quetambém voa como <strong>um</strong> pássaro, porque tem asas, e quando bate as asas rejuvenesce.RUFINAO homem é <strong>um</strong> ser tão mesquinho, que on<strong>de</strong> quer que ele se ajunte logo lhesobrevem, pelo número, <strong>um</strong>a alma coletiva, embora muito rudimentar.A multidão que se ensardinhava em redor do orador tinha visivelmente asua; toda ela se agitava n<strong>um</strong> só ritmo, gritava com <strong>um</strong>a só voz e se enchia <strong>de</strong> braçoserguidos como <strong>um</strong> só bicho a eriçar-se n<strong>um</strong>a só contração momentânea. O bon<strong>de</strong>também a possuía mas indiferente, comodista e escarninha.Uma contava o seu tempo pelo mostrador pequeno, a outra media o <strong>de</strong>lapelo quadrante maior. Eram duas entida<strong>de</strong>s inconciliáveis, vivendo em duas esferasdistintas e irredutíveis da duração.As duas almas se olhavam sem se compreen<strong>de</strong>r: nem a da rua se aplacava,nem se inflamava a do bon<strong>de</strong>. Dois mundos com trajetórias opostas, <strong>um</strong> emebulição, outro frio.Um começo <strong>de</strong> automática hostilida<strong>de</strong> pairava entre <strong>um</strong> e outro. Viesse <strong>um</strong>pequeno impulso, e os dois sistemas talvez se engalfinhassem com cega violência,como dois içás colocados rosto a rosto mecanicamente ass<strong>um</strong>em o papel <strong>de</strong>inimigos <strong>de</strong> morte, e se agarram e se estraçalham com <strong>um</strong> santo e inconscienteheroísmo.Não me esquecerei tão cedo <strong>de</strong> <strong>um</strong> casal <strong>de</strong> namorados que vinha hoje nobon<strong>de</strong>.Gente do povo, gente h<strong>um</strong>il<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ssa que não transpôs ainda o limite emque o indivíduo ignorante e simples começa a ver e a querer copiar atitu<strong>de</strong>s,maneiras e atos <strong>de</strong> <strong>um</strong>a camada superior. Era, portanto, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a espontaneida<strong>de</strong>71


www.nead.unama.brinocente e quase animal a ternura com que os dois se enlaçavam, tecendo cada <strong>um</strong>,em redor <strong>de</strong> ambos, <strong>um</strong>a teia isolante <strong>de</strong> carícias, — mãos dadas, olhos compridos,falas em tom velado e plácido, e <strong>um</strong> permanente sorriso da mais pura e imbecilfelicida<strong>de</strong>.Ele, <strong>um</strong> latagão carpintejado à larga; ela, <strong>um</strong>a bezerrinha forte e carnuda,com <strong>um</strong>a pele esticada e quente e uns cabelos ásperos e crespos <strong>de</strong> lava<strong>de</strong>iratostada ao sol. Simpáticos. Talvez belos, não tanto <strong>de</strong>ssa "beleza do diabo" (dizemos italianos), mero efeito da mocida<strong>de</strong> e da saú<strong>de</strong>, como <strong>de</strong>ssa espécie <strong>de</strong> belezapromissiva, que não entra pelos olhos, que se entrevê, que é como <strong>um</strong> esboço<strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> mão quando se encaminhava para a forma perfeita.O meu prazer foi imaginar que o latagão era eu, que a moça era Rufina.Estávamos entregues <strong>um</strong> ao outro.Tinha-me apropriado <strong>de</strong>la com a naturalida<strong>de</strong> com que me apropriaria domeu duplo, se ele surgisse a meu lado. Fechara-a no âmbito da minhapersonalida<strong>de</strong> e <strong>um</strong> <strong>de</strong>sdobramento, <strong>um</strong> acréscimo, <strong>um</strong>a projeção do meu ser.Que me importava o seu passado? A mulher que se ama não tem passado.Nasceu na véspera. É a objetivação <strong>de</strong> <strong>um</strong> acontecimento interior. Não é <strong>um</strong> ser: é<strong>um</strong> fato. É <strong>um</strong> episódio novo <strong>de</strong> <strong>um</strong>a história que vem <strong>de</strong> longe. A história, com oseu ritmo, a sua lei, a sua necessida<strong>de</strong>, a sua marcha, o seu <strong>de</strong>stino, engloba,arrasta, dissolve e tinge <strong>de</strong> sua cor tudo quanto colhe através do seu <strong>de</strong>rrame fluvial.A mulher que se ama começou com o nosso amor; como disse o catalãoMaragall da poesia.... tot just ha començati es plena <strong>de</strong> virtuts inconegu<strong>de</strong>s.De repente, o casal <strong>de</strong>sceu. O rapagão foi o primeiro à saltar, e,instintivamente, voltou-se com galante dónaire e esten<strong>de</strong>u a mão à juvenoa.Esta pulou rápida e leve, como se tivesse recuperado instantaneamente <strong>um</strong>aaptidão perdida.Nesse momento, aquele tosco rapaz, cabouqueiro ou lavrador, nos seussapatões entorroados, sob o seu chapéu sujo, e aquela moça que mal esuperficialmente se alindara, como <strong>um</strong>a batata apenas cozinhada e <strong>de</strong>scascada, me<strong>de</strong>ram a impressão <strong>de</strong> duas criaturas saturadas por séculos <strong>de</strong> galantaria e <strong>de</strong>cultura.Eram duas sementes, e já me pareceram duas flores. Eram dois bichos dochão e pareceram-me dois pássaros esguios.O amor gera e regenera <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que sur<strong>de</strong>. A função generatriz não é <strong>um</strong>aci<strong>de</strong>nte da sua história, nem é a causa da sua aparição: amar e gerar é tudo <strong>um</strong>, eproduz partos mais temporãos e mais estranhos do que os do ventre. Tudo começaou recomeça, e todas as fecundida<strong>de</strong>s se concentram na carne e na alma dosamantes, e o próprio mundo aparece <strong>de</strong> repente refeito, banhado das clarida<strong>de</strong>s etocado da magnificência <strong>de</strong> <strong>um</strong> gênesis.Rufina...Ora, ora, Rufina, <strong>um</strong>a simples passageira <strong>de</strong> bon<strong>de</strong> com quem eu,passageiro <strong>de</strong> bon<strong>de</strong>, me encontrei duas vezes por acaso!O SONETODeus <strong>de</strong> misericórdia, como eu tenho pena dos poetas, meus irmãos! Apesar<strong>de</strong> ser eu o pobre da irmanda<strong>de</strong>.72


www.nead.unama.brPelo trabalho que me tem custado o soneto que empreendi há três meses,calculo as torturas em que voluntariamente se enredam os que ainda fabricam essesobjetos <strong>de</strong> arte.Dizem, que há indivíduos que sonetizam com facilida<strong>de</strong>, sem prejuízo daperfeição. Não <strong>de</strong>screio disso. Mas essa espontaneida<strong>de</strong> para fazer <strong>um</strong> soneto só seadquire <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muito e duro labor <strong>de</strong> aprendizagem e prática do soneto. Tambémos ginastas fazem com a máxima facilida<strong>de</strong> e economia <strong>de</strong> esforço os maiscomplicados e arriscados giros no trapézio, na barra e nas argolas, — e isso estámuito longe <strong>de</strong> provar que tais habilida<strong>de</strong>s lhe sejam naturais como a nós outros ouso do guarda-chuva ou o trepar no estribo dos bon<strong>de</strong>s.Quanto a mim, vou <strong>de</strong>sistir <strong>de</strong> concorrer aos futuros florilégios. Mas, em vez<strong>de</strong> fazer como o outro, que <strong>de</strong>spreza essa forma <strong>de</strong> poesia, alegando que é velha <strong>de</strong>seiscentos anos, que o mundo está cheio <strong>de</strong> sonetos, e que os sonetistas são muitomais n<strong>um</strong>erosos do que os poetas, continuo a achar que a fabricação <strong>de</strong>ste gênero<strong>de</strong> peças é <strong>um</strong> útil e nobre exercício <strong>de</strong> engenho, além <strong>de</strong> ser o mais justificável dosquebra-cabeças.Quanto a serem milhões os que se produzem, hoje em dia, em todo omundo, e contarem-se pelos <strong>de</strong>dos os capazes <strong>de</strong> sobreviver, não vejo nisso razãopara se con<strong>de</strong>nar o soneto. É igualmente certo que o mundo produz cada diamilhões <strong>de</strong> rosas, e que essas rosas ainda vivem apenas, como no tempo <strong>de</strong>Malherbe, — d'un matia — isto é, três ou quatro dias; contudo, daí não se segue quea rosa se tenha tornado indigna do nosso apreço. Ao contrário, a brevida<strong>de</strong> fatal dasua melindrosa vida é <strong>um</strong> dos elementos do sutil encanto que elas <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>m,como <strong>um</strong> outro perf<strong>um</strong>e.Cosa bella e mortal...Creio que não há nada mais difícil, ou pouco haverá, do que armar, travar econcluir <strong>um</strong> soneto <strong>de</strong> modo que ele fique cheio e redondo como <strong>um</strong>a bola maciça.Digo bola, porque o soneto, graficamente quadrilateral, é mentalmente esférico. Nãotem na sua transcen<strong>de</strong>nte realida<strong>de</strong>, princípio nem fim: o termo aparente é que, acerta luz, se po<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar começo, porque ninguém se inicia na compreensãojusta da peça antes <strong>de</strong> ter chegado ao "final", antes <strong>de</strong> haver este lançado aprojeção anímica do seu conteúdo até às primeiras palavras do primeiro verso.Assim, todas as partes i<strong>de</strong>almente se alongam n<strong>um</strong> único sentido, e repassam sobresi mesmas, girando em redor <strong>de</strong> <strong>um</strong> eixo gerador, buscando mecanicamente aesfericida<strong>de</strong> a que ten<strong>de</strong>m as massas em revolução.Será isso poesia pura? Parece que não é. Mas, dado que se saiba o quevenha a ser poesia pura, é evi<strong>de</strong>nte que essa essência, como certas substâncias<strong>de</strong>licadas e voláteis, precisa sempre <strong>de</strong> <strong>um</strong>a liga mais ou menos grosseira parasubsistir.De resto, a mim pouco me importa o nome da coisa, ou os quadros em queela entre ou <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> entrar. Quando, aí pelos caminhos, eu topo com <strong>um</strong>a bela teia<strong>de</strong> aranha, estendida ao sol da manhã como <strong>um</strong>a roupa <strong>de</strong> fada, para que se lheseque o relento da noite, a mim pouco se me dá <strong>de</strong> saber se aquilo está bemconstruído, se não está, se o material é puro ou impuro (a natureza sabe o que sejapuro ou não o seja), e se a aranha <strong>de</strong>via ou não <strong>de</strong>via fazer outra coisa.Aceito-lhe a teia como está; e se ela palpita e cintila ao sol, toda tecida <strong>de</strong>filetes impalpáveis colhidos ao luar, às fosforescências noturnas, às azulejantesfluências matinais do córrego, à casca metálica dos besouros e se ela parece bulirno mato como <strong>um</strong> enxame <strong>de</strong> estrelinhas tontas, — paro, olho, sorrio, vou andando,e ainda volto a vista para trás. Aquilo é bonito, e acabou-se.73


www.nead.unama.brNo soneto, como os fizeram Petrarca ou Santa Teresa, Du Bellay ouShakespeare, a liga em que se aprisiona a essência <strong>de</strong> poesia é sutil eengenhosamente intelectual. Todos os bons sonetos são obras-primas <strong>de</strong> engenhodiscursivo, tocadas <strong>de</strong> <strong>um</strong> raio <strong>de</strong> poesia. Puzzle, envernizado <strong>de</strong> sonho. Gaiolasdialéticas nas quais, pelo menos, parecem revolutear penugens do pássaro quefugiu, — o tal pássaro fantástico da poesia verda<strong>de</strong>ira.Engenho, eis o que me tem faltado para levar a cabo a minha obra-prima.Também tem faltado oportunida<strong>de</strong>. Feitas as quadras no bon<strong>de</strong>, enten<strong>de</strong>u o meusubconsciente que no bon<strong>de</strong> eu havia <strong>de</strong> fabricar os tercetos.Fora daí, no meu gabinete, na repartição, no teatro, não me aco<strong>de</strong> nem fiapo<strong>de</strong> idéia; mas no bon<strong>de</strong> nem sempre consigo a calma nem os vagaresindispensáveis a esta classe <strong>de</strong> serviço.Como este mundo anda <strong>de</strong>sconsertado!Mas ainda bem. Se os homens tivessem tempo para meditar, <strong>de</strong>certo<strong>de</strong>ixariam <strong>de</strong> fazer muitas asneiras — das pequenas; mas como as premeditariamgran<strong>de</strong>s e terríveis!Hoje, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> várias tentativas, entrei no bon<strong>de</strong> <strong>de</strong>cidido a conquistar omeu sossego.Dei logo <strong>de</strong> cara com o Sr. João Cesário, esse risonho pirata que infesta anossa linha e assalta pobres passageiros para lhes arrancar o único money que elestêm, o tempo. Mas o Sr. Cesário não me viu, porque estava <strong>de</strong>spojando a <strong>um</strong> outro.Fui para o banco mais plebeiamente preenchido, entre <strong>um</strong>a preta <strong>de</strong> xale e <strong>um</strong> cabo<strong>de</strong> polícia.Cerrei os olhos, evoquei a imagem flutuante e <strong>de</strong>lgada <strong>de</strong> Gabriela, recor<strong>de</strong>ias quadras, fui avançando o pé pelo escuro da inspiração informe.Gabriela, como ficou assentado, era <strong>um</strong>a jovem que tinha perdido todas asilusões, coitada! Por necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> rima e falta <strong>de</strong> espaço, não foi possível precisar<strong>de</strong> que ilusões se tratava, sendo certo que em tudo, na vida, a ilusão <strong>de</strong>sempenha<strong>um</strong> papel muito sério e ninguém po<strong>de</strong> jamais gabar-se <strong>de</strong> as haver perdido porcompleto. Já se disse mesmo que o homem vive <strong>de</strong> ilusões. Mas essa imprecisão <strong>de</strong>idéias é muito própria da poesia; e tem a vantagem <strong>de</strong> dar largueza bastante para asimaginações se moverem ao sabor <strong>de</strong> cada temperamento.Gabriela per<strong>de</strong>ra as suas ilusões <strong>de</strong> moça ar<strong>de</strong>nte e sequiosa, porque seatirara aos chamarizes e às insídias do mundo com excessiva sofreguidão enenh<strong>um</strong>a cautela. Isto ficou registado na segunda quadra.Agora, os tercetos é que eram elas!Conviria acentuar que, tendo perdido as suas ilusões, a menina estava comoquem tivesse perdido a túnica através <strong>de</strong> matos e pe<strong>de</strong>rnais, ou em luta com bichosassanhados. Esta idéia é velha, mas pondo-se-lhe <strong>um</strong> revestimento novo, aindaserve. As comparações poéticas essenciais, referentes às verda<strong>de</strong>iras situações emque se po<strong>de</strong> encontrar <strong>um</strong>a alma nesta vida, são bem pouco n<strong>um</strong>erosas, no fundo; eos poetas, por mais que façam, hão <strong>de</strong> sempre voltear-lhes em redor.Hoje, aí vais............................... inteiramente nua........................................Repeti essas palavras vinte vezes, preenchendo os espaços vagos da pautacom sílabas soltas sem significação nem consistência, só para acentuar o ritmo eprovocar a idéia. Uma espécie <strong>de</strong> massagem sobre <strong>um</strong> t<strong>um</strong>or maduro.74


www.nead.unama.brMas na verda<strong>de</strong> o t<strong>um</strong>or ainda estava <strong>um</strong> tanto ver<strong>de</strong>. O que sobretudo meimpedia <strong>de</strong> chegar a <strong>um</strong> resultado, era o final.O soneto, hoje estou disso convencido, tem <strong>um</strong>a causa final — o fecho <strong>de</strong>veser achado antes do mais. É o verda<strong>de</strong>iro princípio. Então, tudo para lá se encaminha,como no ovo se forma com segurança e tranqüilida<strong>de</strong> o pinto prefigurado.Enquanto eu ia fazendo estas reflexões, o bon<strong>de</strong> se aproximava mais<strong>de</strong>pressa do termo, e tive <strong>de</strong> adiar mais <strong>um</strong>a vez a conclusão da minha tarefa poética.Mas hei <strong>de</strong> concluí-la. Tenho diante <strong>de</strong> mim todo o resto da minha vida.Tudo me indica que ainda po<strong>de</strong>rei vir a ser o Arvers <strong>de</strong> <strong>um</strong> soneto, não direi tãoacabado, mas pelo menos tão difícil <strong>de</strong> acabar.Sainte-Beuve disse que il existe chez les trois quarts <strong>de</strong>s hommes un poètemort jeune à qui l'homme survit. Mas isso não é <strong>um</strong> achado: a poesia sempre foi tidacomo particular companheira da juventu<strong>de</strong>, nos homens e nos povos. O mais curiosoé que muitos trazem consigo poetas que nunca chegaram a nascer e que são comorevenants do futuro.UM HOMEM PERFEITOO Sr. João Cesário da Costa apareceu-me hoje muito loquaz e prazenteiro.Sentou-se a meu lado, palpou as minhas disposições auditivas, notou que eramboas, e <strong>de</strong>ixou escapar a loqüela, primeiro às gotas espaçadas, <strong>de</strong>pois às gotas quejá quase se ligavam n<strong>um</strong> fio, por fim jorro franco.Principiou por falar do tempo, que estava "lindíssimo e convidativo." Daí<strong>de</strong>slizou para consi<strong>de</strong>rações acerca do nosso clima e do europeu, das nossasestações e das européias. Descambou então para o elogio da nossa "ternaprimavera" e da nossa "natureza exuberante". Isto o levou ao fatídico paralelo entrea natureza e o indígena; e Cesário revelou gravemente que, segundo a opinião <strong>de</strong>H<strong>um</strong>boldt, no Brasil tudo é gran<strong>de</strong>, menos o homem.Mostrei-me consternado por isso, e Cesário caiu no domínio da educação,cujo principal objetivo, no Brasil, <strong>de</strong>via consistir em <strong>de</strong>belar a empregomania, obacharelismo e a macaqueação do estrangeiro. Quando chegamos ao ponto, o meuamigo, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter passado pela política, ia bordando comentários em roda dovestido feminino e <strong>de</strong>plorando a subversão da família.Enquanto ele orava, eu vinha-lhe mentalmente acompanhando a curva dasassociações <strong>de</strong> idéias e avaliando as vastas etapas que fazia através da matériapensável, metido nas botas <strong>de</strong> sete léguas da imaginação discursivas.É assim, justamente, que os homens práticos pensam, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que saem docrédulo habitual das preocupações profissionais. Tomam as suas associaçõesespontâneas e os seus estados vulgares <strong>de</strong> sentimento como legítimas formas <strong>de</strong>cogitação. E têm <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sdém pelos poetas — sendo que poetas são todosquantos não se contentam com essa moagem perpétua <strong>de</strong> idéias feitas e <strong>de</strong> idéiasque nunca se acabam <strong>de</strong> fazer.Na verda<strong>de</strong>, isto é eminentemente prático. Nada mais é preciso para viver, eviver bem, e prosperar, e fazer jus a <strong>um</strong> mausoléu <strong>de</strong> cinco metros <strong>de</strong> altura, comcúpula guardada por <strong>um</strong> anjo <strong>de</strong> magoado semblante e gran<strong>de</strong>s asas, talhado emmármore branco pelo melhor marmorista da cida<strong>de</strong>.João Cesário tem <strong>um</strong> mérito, além <strong>de</strong> muitos outros: não é <strong>um</strong>a edição, nemmesmo <strong>um</strong>a edição barata <strong>de</strong> Acácio, versão portuguesa e pacata <strong>de</strong> Mr.Prudhomme e varieda<strong>de</strong> conservadora do farmacêutico Homais.75


www.nead.unama.brAcácio, Prudhomme e Homais eram homens <strong>de</strong> princípios ou <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ais, aopasso que Cesário não tem convicções arreigadas: é <strong>um</strong> bom homem, arranjado,comodista, amigo da boa roupa, da boa mesa e da boa prosa, com ambiçõesmo<strong>de</strong>stas e com <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> tato instintivo do que lhe po<strong>de</strong> ser útil e agradável.Incapaz das parlapatices <strong>de</strong> Prudhomme, da compenetração respeitosa <strong>de</strong> si próprioque distinguia Acácio, e <strong>de</strong> azi<strong>um</strong>ados sectarismos à maneira <strong>de</strong> Homais.Apenas se encontra com eles no terreno do lugar-com<strong>um</strong>. Mas o lugarcom<strong>um</strong>não é privativo <strong>de</strong>stes ou daqueles, é a terra <strong>de</strong> ninguém on<strong>de</strong> todo omundo, uns mais amiú<strong>de</strong>, outros mais <strong>de</strong> longe em longe e mais a medo, faz assuas incursões e as suas colheitas.De resto será o lugar-com<strong>um</strong> coisa tão <strong>de</strong>sprezível? Não, o lugar-com<strong>um</strong> énecessário. Faz parte das forças da natureza. É da natureza do espírito h<strong>um</strong>ano anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cunhar <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> moeda divisionária das idéias, que possaandar pelas próprias mãos dos que não tenham capitais e que presta enormeserviço a toda a gente.Se quer encarar o caso na sua verda<strong>de</strong>ira latitu<strong>de</strong>, o ponto <strong>de</strong> vista escolar,estilístico, literário, é <strong>de</strong> <strong>um</strong>a insuficiência absoluta, e por sua estreiteza e vetustezbem merece figurar também na categoria dos lugares-comuns elegantes.O abuso <strong>de</strong>sse ponto <strong>de</strong> vista crítico e aristocrático vai espalhando nosespíritos inclinados às letras e às idéias <strong>um</strong> terror excessivo e doentio do ominosopecado. E com isso chega a criar freqüentemente <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> Acácios àsavessas, que repelem boas idéias por serem velhas, sem sempre forjar novas quesejam boas, e esquecem-se da corrente e <strong>de</strong>sempenada linguagem daconversação, e embrulham em formas rebuscadas os mais fugitivos e ambíguosfiapos <strong>de</strong> pensamento, como quem fizesse gaiolinhas <strong>de</strong> metal dourado paraguardar pernilongos.A gran<strong>de</strong> e imponente maioria dos h<strong>um</strong>anos não dá nenh<strong>um</strong> apreço àsidéias por si mesmas. Estas, quando caem na circulação geral, per<strong>de</strong>m toda a suavirtu<strong>de</strong> abstrata, empastam-se na grossa praticida<strong>de</strong> e na violenta concreteza dosvalores vitais imediatos. Descem do plano lógico para o biológico. Rousseau disseque pensar é <strong>um</strong> ato contra a natureza, e os atos contra a natureza ela os puneempeçando-os ou <strong>de</strong>sviando-os, reassimilando-os e recolocando-os na órbita dosseus próprios fins.As idéias, na marcha geral e normal da vida, têm <strong>um</strong> valor tão puramenteinstr<strong>um</strong>ental, oportunístico e subalterno como as armas, os utensílios, os aparelhose todas as coisas que prolongam os nossos meios naturais <strong>de</strong> ação. É preciso que<strong>um</strong> homem esteja pervertido pela literatura e análogas manias, para ter a fantasia <strong>de</strong>inventar idéias, pelo simples prazer <strong>de</strong> criar instr<strong>um</strong>entos originais. Se a faca e omartelo já foram inventados há milhares <strong>de</strong> anos, e prestam ótimo serviço, para queé que o Sr. Cesário havia <strong>de</strong> imaginar <strong>um</strong> traste novo e aperfeiçoado, só para cortaruns cipós ou para bater uns pregos <strong>de</strong> quando em quando? Não seria econômico.Enorme <strong>de</strong>sproporção entre o esforço e o resultado.Com <strong>um</strong> pequeno arsenal <strong>de</strong> lugares-comuns, Cesário está dispensado <strong>de</strong>gastar inutilmente largas somas <strong>de</strong> tempo e <strong>de</strong> trabalho. Põe a sua provisão no bolso,cada dia, conforme as necessida<strong>de</strong>s, e sai para os seus negócios, para os seusprazeres <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>, para as suas <strong>de</strong>mandas, para a sua <strong>de</strong>scansada pescaria <strong>de</strong>proveitos possíveis, nas horas vagas. Surte-se com a suave facilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> quemcompleta, em casa a sua toilette habitual, pondo meia dúzia <strong>de</strong> charutos na carteira,<strong>um</strong> lenço <strong>de</strong> sobressalente no bolso da calça, <strong>um</strong> canivete no bolsinho do colete.76


www.nead.unama.brDá-se bem com o sistema, e a socieda<strong>de</strong> ainda melhor. Ganha esta <strong>um</strong>homem afável, serviçal, maneiro, <strong>de</strong> fácil e macio contato, simples <strong>de</strong> utilizar.Multipliquem-se estes homens exemplares por mil, e veja-se que incalculávelbenefício não seria, que harmônica estabilização <strong>de</strong> <strong>um</strong> tipo social indígena, queprecioso reforço <strong>de</strong> cidadãos bem construídos, normalizados, estandardizados, semmistérios e sem surpresas, sólidos, garantidos, <strong>de</strong> uso limitado, mas seguro epreciso, — como a louça inglesa, como a cutelaria <strong>de</strong> Manchester, como o presuntoholandês, como o óleo <strong>de</strong> fígado <strong>de</strong> bacalhau, como o fósforo Jonkonpings, como ascamisas do Porto!Foi essa multiplicação <strong>de</strong> <strong>um</strong> tipo mo<strong>de</strong>sto, mas viável e bom que fez aquelacoesão e aquela estabilida<strong>de</strong> magnífica da socieda<strong>de</strong> britânica, — o seu núcleoresistente, a sua massa harmônica e firme, a <strong>de</strong>slocar-se através da história com oímpeto regular <strong>de</strong> <strong>um</strong> imenso exército em marcha.Suponham-se agora estes in<strong>um</strong>eráveis Cesários preocupados todos comfabricar idéias e esmaltá-las sob formas graciosas e cortantes. Que calamida<strong>de</strong>!Ganharíamos, talvez, alg<strong>um</strong>as jóias do espírito, mas, em troca, que multidão <strong>de</strong>intelectuais neurastênicos, incertos, cáusticos, insociáveis, prisioneiros eternos <strong>de</strong> simesmos, <strong>de</strong>spidos <strong>de</strong> tolerância e <strong>de</strong> benignida<strong>de</strong>, sacrificando tudo por <strong>um</strong>a frase<strong>de</strong> espírito, inadaptáveis a todo esforço com<strong>um</strong>, inimigos <strong>de</strong> toda disciplina obscurae <strong>de</strong> todo <strong>de</strong>votamento discreto e silencioso, e enfim gran<strong>de</strong>s criadores efetivos <strong>de</strong>mal-estar, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinteligência e <strong>de</strong> estéreis, inacabáveis veleida<strong>de</strong>s e agitações noseio da massa e no das moças!MÃEPobre mulher, aquela boa e sincera mãe que vi ontem, tão mansa, tãoentregue ao seu pequenino!Era bonita, mas como que o ignorava. Estava tão <strong>de</strong>spreocupada no bon<strong>de</strong>como se estivesse em sua casa. 'Trazia o filhinho ao regaço, e brincava-lhe com<strong>um</strong>a das mãozinhas, fazendo-a saltar, arremessando-a e abaixando-a, aospequenos tapas, como <strong>um</strong>a bola. O pequeno ria-se <strong>de</strong> quando em quando, e a cadarisada o rosto da mãe tomava <strong>um</strong>a expressão forte, escultural <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> plena eremansosa.A certo momento, pegou a criança pelo tronco, pô-la em pé sobre os joelhos,e começou a sacudi-la como a pregar-lhes sustos. Fazia-lhe, ora, <strong>um</strong>a cara <strong>de</strong>surpresa cômica, arregalando os olhos; ora, <strong>um</strong>a cara <strong>de</strong> cólera, carregando assobrancelhas, afuzilando o olhar; ora, <strong>um</strong>a cara <strong>de</strong> choro <strong>de</strong>sconsolado, em quetodos os músculos se relaxavam e as pálpebras e os cantos da boca <strong>de</strong>scaíam.Jogral do seu pequerrucho, essa mãe se esquecia <strong>de</strong> si, se <strong>de</strong>spojava <strong>de</strong>todas as preocupações habituais, concentrava toda a sua vida naquele ser único,pequenino e fragílimo. Era <strong>um</strong> simples brinquedo em po<strong>de</strong>r do seu bebê, —brinquedo todo cheinho <strong>de</strong> amor, como outros o são <strong>de</strong> serragem.Mas, por que, <strong>de</strong>uses imortais e impossíveis! Por que seria necessário queessa mãe, res<strong>um</strong>indo o mundo em seu filho, trabalhasse tão obstinadamente porgravar nele os gestos eternos da loucura h<strong>um</strong>ana? Gestos <strong>de</strong> fúria, <strong>de</strong> terror, <strong>de</strong>cupi<strong>de</strong>z, <strong>de</strong> <strong>de</strong>speito, <strong>de</strong> ciúme, — toda a mímica do inferno mundano, — formaspara ele ainda vazias, mas nas quais se irá pouco a pouco vertendo e solidificando asubstância do seu pequeno Eu rarefeito e disperso?Ama-o como a <strong>um</strong> anjo, e luta por fazer <strong>de</strong>le apenas <strong>um</strong> <strong>de</strong>stes vasos <strong>de</strong>miséria, <strong>de</strong> impureza e <strong>de</strong> sofrimento!77


www.nead.unama.brBelo e medonho, o amor <strong>de</strong> mãe. Suavíssimo e terrível. A sombra dos seusgestos, branda como a dos ramos, prolonga-se até o horizonte da vida, on<strong>de</strong> asombra enorme da Fatalida<strong>de</strong> passa arrastando pelos cabelos a sombra da Ilusão.RUFINA E O SONETOPobre Rufina! Tão juvenilmente graciosa e linda ainda há dois meses...Parecia ar<strong>de</strong>r em mocida<strong>de</strong> e beleza como <strong>um</strong>a pedra preciosa. Agora, dá-me aidéia <strong>de</strong> <strong>um</strong>a pérola moribunda.É assim este mundo; <strong>um</strong> resfriado, <strong>um</strong>a pleurisia, três semanas <strong>de</strong> cama —e eis <strong>um</strong> corpo e <strong>um</strong>a alma completamente modificados, e <strong>um</strong>a vida clara e levecomo <strong>um</strong> regato da montanha mudada n<strong>um</strong> ribeirão turvo do vale triste!Viajei hoje com ela. Descorada e <strong>de</strong>scarnada, metida n<strong>um</strong> vestido escuro epobre, era apenas <strong>um</strong>a sombra da outra Rufína. Disse-me coisas graves sobre avida. Queixou-se das suas ilusões malucas, que a conduziram até há pouco atravésdas almas e das coisas como através <strong>de</strong> <strong>um</strong>a festa, para, <strong>de</strong> repente, aabandonarem entre essas duas megeras — a Solidão e a Necessida<strong>de</strong>.Chegou a falar-me <strong>de</strong> Deus, e, entre dois acessos <strong>de</strong> tosse, perguntou-me,com a simplicida<strong>de</strong> suprema <strong>de</strong> quem pedia <strong>um</strong>a informação:— "Será que ele me aceita?"Em que embaraço me pôs: Pedir a mim, pecador encoscorado, <strong>um</strong> raio <strong>de</strong>esperança e consolação — porque era evi<strong>de</strong>ntemente o que pedia, na simplicida<strong>de</strong>triste daquela pergunta! Valeria o mesmo querer refrescar os lábios em febre com osuco <strong>de</strong> <strong>um</strong>a pêra <strong>de</strong> campainha elétrica.Tive ímpetos <strong>de</strong> en<strong>de</strong>reçar ao vigário da nossa paróquia. Mas o santohomem estava já tão acost<strong>um</strong>ado a lidar com almas em pena! Era possível que nãolhe <strong>de</strong>sse maior atenção, que a tratasse com <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhosa bonomia, como fazemcertos médicos, excepcionalmente, com os clientes pobres: "Isso não é nada. Estánervoso. — Dor no cogote, Há <strong>de</strong> ser mau jeito. — Febre, é? Uhn... — Qual! Nãotem importância. Apareça <strong>um</strong> dia lá no consultório".Não, não a mandaria ao vigário, po<strong>de</strong>ria vir <strong>de</strong> lá com as feridas banhadasem bálsamo suavíssimo, e po<strong>de</strong>ria vir com elas envenenadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>speito e <strong>de</strong>revolta.Eu estava para lhe dizer que sim, que Deus a receberia nos seus braçoscom paterno carinho, porque nada po<strong>de</strong> ser mais agradável ao Senhor <strong>de</strong> toda asabedoria e <strong>de</strong> toda a misericórdia do que <strong>um</strong>a alma <strong>de</strong>spojada <strong>de</strong> mundanida<strong>de</strong>s,nua, na plena e corajosa nu<strong>de</strong>z da h<strong>um</strong>ilda<strong>de</strong>, do <strong>de</strong>sengano e do arrependimento.Quando, porém, <strong>de</strong>cidia estas dúvidas <strong>de</strong> consciência e preparava estaresposta, Rufina ergueu-se, fez soar a campainha, <strong>de</strong>spediu-se e esgueirou-se.Fiquei a vê-la do bon<strong>de</strong>, que estacionara por <strong>um</strong> momento. Reprochava-me comraiva as minhas eternas in<strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> animal imprestável.Ela foi para a calçada, e pôs-se a caminhar <strong>de</strong> <strong>um</strong> jeito meio automático,direita, impassível, n<strong>um</strong> passo miúdo e rígido <strong>de</strong> boneca mecânica, a cabeça pensapara <strong>um</strong> lado — como quem caminha com indiferença, <strong>de</strong> alma vazia, para a últimarenúncia ou para a morte...Pu<strong>de</strong> saber <strong>de</strong>pois que ia à costureira.78


www.nead.unama.brSomos todos horrendamente egoístas. Nunca tive como hoje a sensação doque valem todas essas florescências admiráveis da vida nobre, as belas idéias, osi<strong>de</strong>ais formosos, os sentimentos altos e <strong>de</strong>licados.Nem bem Rufina <strong>de</strong>saparecera <strong>de</strong> minhas vistas, aquilo <strong>de</strong> eu a tercomparado mentalmente a <strong>um</strong>a alma <strong>de</strong>spojada <strong>de</strong> mundanida<strong>de</strong>s, nua,inteiramente nua, voltou a borboletear-me no espírito como <strong>um</strong> remorso gostoso. Elembrei-me logo daquele meu soneto parado entre os andaimes; como <strong>um</strong>a <strong>de</strong>ssasigrejas que levam anos a construir e ficam anos à espera <strong>de</strong> recursos.Agora, concluiria a obra. Aferrei-me a ela pelo resto da viagem.Rufina, <strong>de</strong> passagem por mim tocando-me <strong>de</strong> leve, pusera-me emmovimento a engenhoca da poesia, como quem toca inadvertidamente n<strong>um</strong> pé <strong>de</strong>"mimosa pudica", ou como quem saco<strong>de</strong> sem o querer <strong>um</strong> relógio engasgado,fazendo-o trabalhar.É essa a finalida<strong>de</strong> dos outros, no sistema especial da nossa vida <strong>de</strong> cada<strong>um</strong>: pôr em movimento alg<strong>um</strong> dos relógios engasgados que temos conosco.O caso é que concluí o soneto. A bem dizer não o concluí no bon<strong>de</strong>: acabei<strong>de</strong> concluir na repartição, apesar <strong>de</strong> <strong>um</strong> parecer urgente que me atenazou o dia.Mas a inspiração é assim: quando vem, vem <strong>de</strong> fato, e não há urgências que se lheoponham.Agra<strong>de</strong>ci ao <strong>de</strong>stino o ter-me <strong>de</strong>parado Rufina, não só porque daí proveio aconclusão do soneto, como porque me permitiu banir <strong>de</strong>le a tal Gabriela. Eu jáandava seriamente implicado com essa negrinha vagabunda, caçada na sarjeta donoticiário. Decididamente, não dava nada. Logo o primeiro verso:Já não tens ilusão, oh Gabriela! Era <strong>de</strong> <strong>um</strong>a inépcia absoluta. Que é quetinha o público que ver com esse nome próprio. E, além do mais, <strong>um</strong> <strong>de</strong>cassílabofrouxo, — que é ainda pior do que <strong>um</strong>a frouxidão <strong>de</strong> bom senso. Pu<strong>de</strong> substituí-locom vantagem. E o resto — foi <strong>um</strong>a sopa:A UMA TUBERCULOSAJá nenh<strong>um</strong>a ilusão tua alma estrela;Nenh<strong>um</strong>a abrolha em teu caminho triste.Tudo te é negro: e em tudo quanto existe,só o que existe <strong>de</strong> mau se te revela.Um dia a Vida apareceu-te à ourelada estrada, e te sorriu. Tu lhe sorriste,E a seus braços voaste. E assim te visteentre as garras da bruxa horrenda e bela.Hoje... Ah! Hoje, aí vais por tua estradacomo <strong>um</strong>a doida que vagasse nua...Não és mais do que <strong>um</strong>a alma — alma <strong>de</strong>spida;E tão indiferente, tão gelada,tão tristonha e remota como a lua,refletindo <strong>de</strong> longe o sol da Vida.Finis truncat opusFIM79

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!