12.07.2015 Views

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

www.nead.unama.brnatureza h<strong>um</strong>ana e a obriga a esses longos <strong>de</strong>svios e absurdas transferências dapaixão inextirpável, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> se afirmar. O excesso <strong>de</strong> modéstia po<strong>de</strong> prolongarseaté ao cinismo, e à <strong>de</strong>linqüência.UMA ROSAGanhei <strong>um</strong>a rosa e <strong>um</strong>a experiência. Deu-me aquela, no bon<strong>de</strong>, <strong>um</strong> homemvelho, ru<strong>de</strong> e chambão. Contraiu a afeição das flores já entrado em anos, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><strong>de</strong>senganado <strong>de</strong> feminilida<strong>de</strong>s há muitos. E eu tinha o amor das flores na conta <strong>de</strong> <strong>um</strong>puro reflexo <strong>de</strong> sentimentos sexuais, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a ondulação distante do culto da mulher.De fato o é; mas também po<strong>de</strong> ser outra coisa, como me prova este velhopuído e tristonho, que viu amanhecer em si o encanto das rosas quando já iam muitolonge as <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iras fagulhas do outro amor.Quem sabe se ele põe agora neste afeto <strong>um</strong> afã meio inconsciente <strong>de</strong>recuperar o tempo perdido para o coração? Como quer que seja, revelou-me como anatureza, contra toda lógica e toda expectativa, po<strong>de</strong> achar saídas novas eelegantes para as situações mais abatidas e ruinosas. Há nela <strong>um</strong>a capacida<strong>de</strong>virgem e in<strong>de</strong>finível <strong>de</strong> com que não cost<strong>um</strong>am contar os analisadores <strong>de</strong> almas,que pensam <strong>de</strong>smontar-lhes as peças como a mecanismos, e não fazem senãojogar com esquemas e conceptos.Tudo, neste homem, indicaria <strong>um</strong>a carreira fatal para o embrutecimeno e aprostração. Ida<strong>de</strong>, doenças, <strong>de</strong>cepções, rupturas, arrancamentos, sauda<strong>de</strong>s,rancores, <strong>de</strong>sesperança. Devia acabar no <strong>de</strong>sânimo e na tristeza aparvalhada doanimal que procura <strong>um</strong> recanto esquecido para morrer. Pois, nada disso. Viu aindaflorir em si, <strong>de</strong> repente, <strong>um</strong> novo amor e <strong>um</strong>a alegria, <strong>um</strong>a doçura e <strong>um</strong>a esperançanovas. Uma nova forma <strong>de</strong> ingenuida<strong>de</strong> fresca e gentil. Uma ressaca <strong>de</strong> mocida<strong>de</strong>.Dir-se-ia que todas as suas mágoas e misérias se haviam convertido n<strong>um</strong>aenergia clara e imprevista <strong>de</strong> nascente gorgolejante Que todo o cisco do seupassado, em montão, a cons<strong>um</strong>ir-se ao sol e à chuva, fecundara a terra e <strong>de</strong>ra-lhesombra e <strong>um</strong>ida<strong>de</strong> para que brotasse lá em baixo <strong>um</strong>a semente ignorada, e que asemente se fizera broto, e o broto crescera e atravessara os <strong>de</strong>stroços apodrecidospara vir oferecer à luz a flâmula ver<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong>a fron<strong>de</strong>zinha viçosa.A vida vive em nós! Ai, se nos convencêssemos bem <strong>de</strong> que é a Vida quevive em nós... A Vida, senhora eterna <strong>de</strong> todas as germinações.AINDA A ROSAA rosa que o meu amigo velho me <strong>de</strong>ra anteontem ainda estava hoje bempassável. Olhei-a, pela manhã, quando lavava o rosto, e achei-lhe <strong>um</strong> encantodorido <strong>de</strong> mulher bonita que, em pleno solstício <strong>de</strong> encantos, <strong>de</strong> repente se vêmarcada pelos primeiros gorgulhos do tempo.Esborrifei-lhe <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong> água, e disse-lhe: "Que será <strong>de</strong> si amanhã,minha rosa?" As rosas sabem falar, e para ouvir e enten<strong>de</strong>r o que elas dizem não épreciso amar alg<strong>um</strong>a senhora, como, segundo o poeta, se requer <strong>de</strong> quem <strong>de</strong>sejeouvir as estrelas. E a rosa, com soberba indiferença, respon<strong>de</strong>u: "Que será <strong>de</strong> mim?Olha esse grosseiro antropomorfismo, néscio animal! Então tu julgas que nós outrassomos feitas da tua massa? Para mim e minhas irmãs todas as voltas do mundo sãoas mesmas. Eu, amanhã, não serei nada que tu aprecies, mas aí ficam infinida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> rosas <strong>de</strong>sabrochadas e por <strong>de</strong>sabrochar. E todas elas são eu mesma, porque eusou todas, e não <strong>de</strong>sapareço, nem suc<strong>um</strong>bo".44

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!