12.07.2015 Views

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

www.nead.unama.brNo meio <strong>de</strong>sse infinito, que nos cerca, nos trespassa, nos convida, vivemos<strong>um</strong> tanto à maneira daqueles dormentes estatelados nas ruas, nos palácios, nospátios, nos jardins, nos mercados, nos templos e nos bosques do conto oriental.Príncipes, vizires, xeques, mercadores, ganhões, — todos alheios à magia doespetáculo colorido e móbil do mundo, eles próprios mero espetáculo para os olhos<strong>de</strong> <strong>um</strong> triste fugitivo e da sua amorosa e assustada companheira.RUFINASe eu fosse Rufina, hoje recostado no banco do bon<strong>de</strong>, enquanto <strong>um</strong> cé<strong>um</strong>uito lavado se arqueava sobre todas as coisas, e <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> amor eventura abrolhava nas almas, que teria feito? Teria pensado naquele passageiro<strong>de</strong>sconhecido que me arrancara aos braços da morte; ter-me-ia lembrado cominfinito carinho daquele homem tão corajoso e tão tímido, e teria refletido que porforça ele <strong>de</strong>via ter <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> coração e <strong>um</strong>a alma adolescente.Pensaria, outrossim, que ele provavelmente era solteirão, pois os homenscasados não são assim tão solícitos, ou pelo menos tão tímidos com as damas.Pensaria que ele <strong>de</strong>via viver só e melancólico, habitando <strong>um</strong>a pensão inóspita, ou<strong>um</strong>a casa <strong>de</strong> família on<strong>de</strong> ansiasse ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong>s e ternuras que não erampara ele. E tanta coisa mais!Entretanto, quem sabe lá o que Rufina àquela hora pensaria! Pensarianalg<strong>um</strong> namorado vulgar, suavemente grosseiro e agradavelmente chato. Ou talvezestivesse com ele, mãos nas mãos, olhos nos olhos. Esta idéia me perturba e me<strong>de</strong>salenta. Aquela mão rósea e mole ficaria tão bem na minha, ossuda e pilosa!Aquele braço torneado encaixaria tão <strong>de</strong>liciosamente ao redor do meu pescoço! Eeu me sentiria tão ufano e pacificado, como <strong>um</strong> gato no borralho, ao calor do seucorpo e do seu coração! Po<strong>de</strong>ríamos estar aqui juntos, ela bordando tranqüilamente<strong>um</strong> pano <strong>de</strong> mesa, <strong>um</strong>a almofada, ou lá o que lhe <strong>de</strong>sse, e eu, quieto, a estasecretária, bordando as notas felizes <strong>de</strong> <strong>um</strong> memorial <strong>de</strong> venturas brandas, ainterrompê-lo <strong>de</strong> quando em quando para dar <strong>um</strong> ósculo à minha gata.Mas aquela pestinha é lá capaz <strong>de</strong> sonhar por esta mesma partitura!LOUVA-A-DEUSTivemos hoje, à ida, <strong>um</strong> inesperado companheiro <strong>de</strong> viagem. Não seiquando nem como se aboletou no carro; só foi notado ao levantar o vôo do chapéu<strong>de</strong> <strong>um</strong> cavalheiro velho para ir pousar no seio <strong>de</strong> <strong>um</strong>a senhora gorda, copiando aabelha da pequena o<strong>de</strong> <strong>de</strong> Anacreonte. A senhora gorda enxotou-o, n<strong>um</strong> gesto <strong>de</strong>susto muito gracioso, como convinha ao sexo. O bicharoco, executando <strong>um</strong> rápidovôo plané, foi aterrar no ombro <strong>de</strong> <strong>um</strong> rapaz elegante. Este se apresentava para lhe<strong>de</strong>sfechar <strong>um</strong> tiro com o <strong>de</strong>do médio armado em aríete, quando ele se passou paraas costas <strong>de</strong> <strong>um</strong> homem distraído, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ixou e o <strong>de</strong>ixaram ficar.Uma vaga <strong>de</strong> hilarida<strong>de</strong> <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou-se no bon<strong>de</strong> ao toque das asasdaquele forasteiro. Todos lhe acompanhavam as evoluções com sorrisos. E algunsmanifestavam na cara <strong>um</strong>a curiosida<strong>de</strong> lorpa, como se estivessem diante <strong>de</strong> <strong>um</strong>invento completamente novo. Porque essa hilarida<strong>de</strong>? Problema complicado eescuro. Lembro-me <strong>de</strong> Bergson, mas não vejo como aplicar ao caso a sua teoria.Até nova or<strong>de</strong>m, penso que o riso proveio apenas <strong>de</strong> que o bon<strong>de</strong> não é veículopara passageiros <strong>de</strong>ssa classe; <strong>de</strong> que o lugar habitual on<strong>de</strong> imaginamos o louva-a<strong>de</strong>usnão é o bon<strong>de</strong>, não as ruas la<strong>de</strong>adas <strong>de</strong> prédios, calçadas <strong>de</strong> pedras,25

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!