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Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

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www.nead.unama.brEste exercício requer mais inteligência, mais sangue-frio e mais intrepi<strong>de</strong>zdo que aqueles que são cons<strong>um</strong>idos por toda a roda <strong>de</strong> basbaques que se divertemcom esse retalhista do heroísmo.O camelô não é negociante; é <strong>um</strong> homem que negocia por aci<strong>de</strong>nte. Avenda <strong>de</strong> coisas é mero pretexto, no fundo, ou mero ponto <strong>de</strong> apoio exterior, <strong>de</strong> quea sua complexa personalida<strong>de</strong> necessita para funcionar. Difere do comerciantenormal em aspectos essenciais, e a vantagem estética é toda sua: faz do comércio<strong>um</strong> simples ganha-pão, e não <strong>um</strong> sistema <strong>de</strong> vida; é senhor absoluto da suaativida<strong>de</strong> e não escravo <strong>de</strong> <strong>um</strong>a ativida<strong>de</strong> coletiva que o supere e o inclua como <strong>um</strong>apeça; não tira do comércio nenh<strong>um</strong>a importância pessoal, mas, ao contrário, ele éque con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong> em dar ao comércio <strong>um</strong>as sobras da sua rica provisão <strong>de</strong>coragem, <strong>de</strong> inventiva, <strong>de</strong> facúndia, <strong>de</strong> dons capciosos e sedutores, e em sacrificarlhe<strong>um</strong> pouco do seu nobre instinto <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência e <strong>de</strong> travessura.O camelô tem consigo <strong>um</strong>a dose <strong>de</strong> força intrínseca ou <strong>um</strong> grão <strong>de</strong> bravuraque falece aos da imensa turba do encostamento mútuo.Estes procuram e arranjam a sua casa no plano das ativida<strong>de</strong>s normais erespeitáveis, e gozam, com <strong>um</strong> mínimo <strong>de</strong> originalida<strong>de</strong> e energia própria, ou mesmosem nenh<strong>um</strong>a energia nem sombra <strong>de</strong> originalida<strong>de</strong>, os benefícios mais ou menosprevistos e mais ou menos automáticos da organização. Aquele, porém, na suapequeneza e na sua modéstia, cada dia sai <strong>de</strong> casa para o mundo como pelaprimeira vez. Sai completamente só, quase inerme sem a armadura dos mais, semos guarda-costas dos mais, sem boas e fortes armas <strong>de</strong> combate, — só, quase nu,com <strong>um</strong>a funda na mão, como o pastorzinho Davi quando partiu em busca domembrudo Golias.Sai escoteiro e ignorado, sem r<strong>um</strong>or <strong>de</strong> ferros, sem estropear <strong>de</strong> cavalos,sem alalis <strong>de</strong> trompa, sem atitu<strong>de</strong>s nem gestos, à caça <strong>de</strong> vagas migalhas <strong>de</strong> <strong>um</strong>tesouro possível, escondido sob a guarda <strong>de</strong> <strong>um</strong> bicho-manjaléu com milhares <strong>de</strong>cabeças.Isto é quase a reprodução, aí na rua, entre gentes frívolas e sensatas sob osolhos frios dos passantes colocados e tranqüilos, das façanhas ilustres do ágil egracioso Sigurd quando venceu os anões e prostou o dragão Fúfnir.Nós vivemos na plena teia dos mitos e das lendas, e não damos por isso.Per<strong>de</strong>mos o sentido poético das situações.UM GRANDE EGOÍSTAO meu amigo Herácli<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> ordinário benevolente, ia ontem azedo, nobon<strong>de</strong>. Observava exemplos <strong>de</strong> aspereza e grosseria <strong>de</strong> maneiras, aos quais via <strong>um</strong>sinal meteórico <strong>de</strong> barbarização, <strong>um</strong>a prova da <strong>de</strong>cadência do senso <strong>de</strong>h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>, que outrora a religião al<strong>um</strong>iava ainda nos mais incultos.Herácli<strong>de</strong>s apontou-me, sucessivamente, <strong>um</strong> passageiro que <strong>de</strong>ixara <strong>de</strong>ce<strong>de</strong>r lugar a <strong>um</strong>a senhora, apesar dos olhos compridos que ela <strong>de</strong>itava para o seulado; <strong>um</strong> menor que se <strong>de</strong>sarticulava no banco, como <strong>um</strong>a letra gótica, e soltavagrossas baforadas <strong>de</strong> f<strong>um</strong>o na cara dos vizinhos; <strong>um</strong> cidadão bem trajado que dissedois <strong>de</strong>saforos ferinos ao condutor porque este se atrapalhara n<strong>um</strong>a questão <strong>de</strong>troco, e <strong>um</strong> homem gordo, escarrapachado como <strong>um</strong>a foca, as perninhas roliçaslargamente jogadas para os lados, a direita a premir <strong>um</strong>a pobre moça, a esquerda, abater no joelho <strong>de</strong> <strong>um</strong> velho magro, que fazia horríveis esforços por ocupar apenas ameta<strong>de</strong> do espaço a que tinha direito e que lhe era necessário.58

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