www.nead.unama.brinocente e quase animal a ternura com que os dois se enlaçavam, tecendo cada <strong>um</strong>,em redor <strong>de</strong> ambos, <strong>um</strong>a teia isolante <strong>de</strong> carícias, — mãos dadas, olhos compridos,falas em tom velado e plácido, e <strong>um</strong> permanente sorriso da mais pura e imbecilfelicida<strong>de</strong>.Ele, <strong>um</strong> latagão carpintejado à larga; ela, <strong>um</strong>a bezerrinha forte e carnuda,com <strong>um</strong>a pele esticada e quente e uns cabelos ásperos e crespos <strong>de</strong> lava<strong>de</strong>iratostada ao sol. Simpáticos. Talvez belos, não tanto <strong>de</strong>ssa "beleza do diabo" (dizemos italianos), mero efeito da mocida<strong>de</strong> e da saú<strong>de</strong>, como <strong>de</strong>ssa espécie <strong>de</strong> belezapromissiva, que não entra pelos olhos, que se entrevê, que é como <strong>um</strong> esboço<strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> mão quando se encaminhava para a forma perfeita.O meu prazer foi imaginar que o latagão era eu, que a moça era Rufina.Estávamos entregues <strong>um</strong> ao outro.Tinha-me apropriado <strong>de</strong>la com a naturalida<strong>de</strong> com que me apropriaria domeu duplo, se ele surgisse a meu lado. Fechara-a no âmbito da minhapersonalida<strong>de</strong> e <strong>um</strong> <strong>de</strong>sdobramento, <strong>um</strong> acréscimo, <strong>um</strong>a projeção do meu ser.Que me importava o seu passado? A mulher que se ama não tem passado.Nasceu na véspera. É a objetivação <strong>de</strong> <strong>um</strong> acontecimento interior. Não é <strong>um</strong> ser: é<strong>um</strong> fato. É <strong>um</strong> episódio novo <strong>de</strong> <strong>um</strong>a história que vem <strong>de</strong> longe. A história, com oseu ritmo, a sua lei, a sua necessida<strong>de</strong>, a sua marcha, o seu <strong>de</strong>stino, engloba,arrasta, dissolve e tinge <strong>de</strong> sua cor tudo quanto colhe através do seu <strong>de</strong>rrame fluvial.A mulher que se ama começou com o nosso amor; como disse o catalãoMaragall da poesia.... tot just ha començati es plena <strong>de</strong> virtuts inconegu<strong>de</strong>s.De repente, o casal <strong>de</strong>sceu. O rapagão foi o primeiro à saltar, e,instintivamente, voltou-se com galante dónaire e esten<strong>de</strong>u a mão à juvenoa.Esta pulou rápida e leve, como se tivesse recuperado instantaneamente <strong>um</strong>aaptidão perdida.Nesse momento, aquele tosco rapaz, cabouqueiro ou lavrador, nos seussapatões entorroados, sob o seu chapéu sujo, e aquela moça que mal esuperficialmente se alindara, como <strong>um</strong>a batata apenas cozinhada e <strong>de</strong>scascada, me<strong>de</strong>ram a impressão <strong>de</strong> duas criaturas saturadas por séculos <strong>de</strong> galantaria e <strong>de</strong>cultura.Eram duas sementes, e já me pareceram duas flores. Eram dois bichos dochão e pareceram-me dois pássaros esguios.O amor gera e regenera <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que sur<strong>de</strong>. A função generatriz não é <strong>um</strong>aci<strong>de</strong>nte da sua história, nem é a causa da sua aparição: amar e gerar é tudo <strong>um</strong>, eproduz partos mais temporãos e mais estranhos do que os do ventre. Tudo começaou recomeça, e todas as fecundida<strong>de</strong>s se concentram na carne e na alma dosamantes, e o próprio mundo aparece <strong>de</strong> repente refeito, banhado das clarida<strong>de</strong>s etocado da magnificência <strong>de</strong> <strong>um</strong> gênesis.Rufina...Ora, ora, Rufina, <strong>um</strong>a simples passageira <strong>de</strong> bon<strong>de</strong> com quem eu,passageiro <strong>de</strong> bon<strong>de</strong>, me encontrei duas vezes por acaso!O SONETODeus <strong>de</strong> misericórdia, como eu tenho pena dos poetas, meus irmãos! Apesar<strong>de</strong> ser eu o pobre da irmanda<strong>de</strong>.72
www.nead.unama.brPelo trabalho que me tem custado o soneto que empreendi há três meses,calculo as torturas em que voluntariamente se enredam os que ainda fabricam essesobjetos <strong>de</strong> arte.Dizem, que há indivíduos que sonetizam com facilida<strong>de</strong>, sem prejuízo daperfeição. Não <strong>de</strong>screio disso. Mas essa espontaneida<strong>de</strong> para fazer <strong>um</strong> soneto só seadquire <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muito e duro labor <strong>de</strong> aprendizagem e prática do soneto. Tambémos ginastas fazem com a máxima facilida<strong>de</strong> e economia <strong>de</strong> esforço os maiscomplicados e arriscados giros no trapézio, na barra e nas argolas, — e isso estámuito longe <strong>de</strong> provar que tais habilida<strong>de</strong>s lhe sejam naturais como a nós outros ouso do guarda-chuva ou o trepar no estribo dos bon<strong>de</strong>s.Quanto a mim, vou <strong>de</strong>sistir <strong>de</strong> concorrer aos futuros florilégios. Mas, em vez<strong>de</strong> fazer como o outro, que <strong>de</strong>spreza essa forma <strong>de</strong> poesia, alegando que é velha <strong>de</strong>seiscentos anos, que o mundo está cheio <strong>de</strong> sonetos, e que os sonetistas são muitomais n<strong>um</strong>erosos do que os poetas, continuo a achar que a fabricação <strong>de</strong>ste gênero<strong>de</strong> peças é <strong>um</strong> útil e nobre exercício <strong>de</strong> engenho, além <strong>de</strong> ser o mais justificável dosquebra-cabeças.Quanto a serem milhões os que se produzem, hoje em dia, em todo omundo, e contarem-se pelos <strong>de</strong>dos os capazes <strong>de</strong> sobreviver, não vejo nisso razãopara se con<strong>de</strong>nar o soneto. É igualmente certo que o mundo produz cada diamilhões <strong>de</strong> rosas, e que essas rosas ainda vivem apenas, como no tempo <strong>de</strong>Malherbe, — d'un matia — isto é, três ou quatro dias; contudo, daí não se segue quea rosa se tenha tornado indigna do nosso apreço. Ao contrário, a brevida<strong>de</strong> fatal dasua melindrosa vida é <strong>um</strong> dos elementos do sutil encanto que elas <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>m,como <strong>um</strong> outro perf<strong>um</strong>e.Cosa bella e mortal...Creio que não há nada mais difícil, ou pouco haverá, do que armar, travar econcluir <strong>um</strong> soneto <strong>de</strong> modo que ele fique cheio e redondo como <strong>um</strong>a bola maciça.Digo bola, porque o soneto, graficamente quadrilateral, é mentalmente esférico. Nãotem na sua transcen<strong>de</strong>nte realida<strong>de</strong>, princípio nem fim: o termo aparente é que, acerta luz, se po<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar começo, porque ninguém se inicia na compreensãojusta da peça antes <strong>de</strong> ter chegado ao "final", antes <strong>de</strong> haver este lançado aprojeção anímica do seu conteúdo até às primeiras palavras do primeiro verso.Assim, todas as partes i<strong>de</strong>almente se alongam n<strong>um</strong> único sentido, e repassam sobresi mesmas, girando em redor <strong>de</strong> <strong>um</strong> eixo gerador, buscando mecanicamente aesfericida<strong>de</strong> a que ten<strong>de</strong>m as massas em revolução.Será isso poesia pura? Parece que não é. Mas, dado que se saiba o quevenha a ser poesia pura, é evi<strong>de</strong>nte que essa essência, como certas substâncias<strong>de</strong>licadas e voláteis, precisa sempre <strong>de</strong> <strong>um</strong>a liga mais ou menos grosseira parasubsistir.De resto, a mim pouco me importa o nome da coisa, ou os quadros em queela entre ou <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> entrar. Quando, aí pelos caminhos, eu topo com <strong>um</strong>a bela teia<strong>de</strong> aranha, estendida ao sol da manhã como <strong>um</strong>a roupa <strong>de</strong> fada, para que se lheseque o relento da noite, a mim pouco se me dá <strong>de</strong> saber se aquilo está bemconstruído, se não está, se o material é puro ou impuro (a natureza sabe o que sejapuro ou não o seja), e se a aranha <strong>de</strong>via ou não <strong>de</strong>via fazer outra coisa.Aceito-lhe a teia como está; e se ela palpita e cintila ao sol, toda tecida <strong>de</strong>filetes impalpáveis colhidos ao luar, às fosforescências noturnas, às azulejantesfluências matinais do córrego, à casca metálica dos besouros e se ela parece bulirno mato como <strong>um</strong> enxame <strong>de</strong> estrelinhas tontas, — paro, olho, sorrio, vou andando,e ainda volto a vista para trás. Aquilo é bonito, e acabou-se.73