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Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

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www.nead.unama.brO BONDE E A RUAO bon<strong>de</strong> da tar<strong>de</strong>, hoje, foi <strong>de</strong>morado por <strong>um</strong>a qualquer manifestaçãopopular, que lhe barrou a passagem. Os viajantes, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> satisfeita a primeiracuriosida<strong>de</strong>, obra <strong>de</strong> segundos, começavam a dar sinais <strong>de</strong> irritação, quando <strong>um</strong>orador entrou a trovejar. Essa obstrução pareceu a todos insuportável, e todavia nãodurou mais <strong>de</strong> cinco ou seis minutos.Sempre é verda<strong>de</strong> que a medida real do tempo é o nosso <strong>de</strong>sejo.Isto me faz lembrar o meu colega Sinfrônio <strong>de</strong> Mendonça, que, outro dia, lána repartição, ao inaugurar-se o retrato do chefe, quis à viva força ler <strong>um</strong> discurso. Eleu, prevenindo os ouvintes: "É curtinho senhores, tenham paciência".Esta esfarrapada <strong>de</strong>sculpa com que se cost<strong>um</strong>am cobrir os oradoresintempestivos baseia-se toda n<strong>um</strong> passe finório com as noções <strong>de</strong> tempo — a dotempo mecânico e objetivo e a do tempo psicológico ou subjetivo. Quando dizemque a peça é curta, é porque lhe aplicam a medida-relógio, como se fosse esta aque importasse aos ouvintes como se não fosse, por exemplo, <strong>um</strong>a verda<strong>de</strong>universal que o pequenino sermão <strong>de</strong> ouro que nos aborrece é <strong>de</strong>z ou mil vezesmais comprido do que a interminável lenga-lenga que nos lisonjeia.O nosso relógio interior tem também dois mostradores, <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> e outropequeno, mas o gran<strong>de</strong> é que dá medida prática dos minutos <strong>de</strong>sagradáveis, que aícorrespon<strong>de</strong>m às horas, e o pequeno marca a duração das horas amenas, que nelesão minúsculas frações — quando o ponteiro não está engasgado.O tempo real é conforme ao ícone que <strong>de</strong>le <strong>de</strong>ixaram os gregos — <strong>um</strong> velho<strong>de</strong>crépito que naturalmente se arrasta quando caminha por seus pés, mas quetambém voa como <strong>um</strong> pássaro, porque tem asas, e quando bate as asas rejuvenesce.RUFINAO homem é <strong>um</strong> ser tão mesquinho, que on<strong>de</strong> quer que ele se ajunte logo lhesobrevem, pelo número, <strong>um</strong>a alma coletiva, embora muito rudimentar.A multidão que se ensardinhava em redor do orador tinha visivelmente asua; toda ela se agitava n<strong>um</strong> só ritmo, gritava com <strong>um</strong>a só voz e se enchia <strong>de</strong> braçoserguidos como <strong>um</strong> só bicho a eriçar-se n<strong>um</strong>a só contração momentânea. O bon<strong>de</strong>também a possuía mas indiferente, comodista e escarninha.Uma contava o seu tempo pelo mostrador pequeno, a outra media o <strong>de</strong>lapelo quadrante maior. Eram duas entida<strong>de</strong>s inconciliáveis, vivendo em duas esferasdistintas e irredutíveis da duração.As duas almas se olhavam sem se compreen<strong>de</strong>r: nem a da rua se aplacava,nem se inflamava a do bon<strong>de</strong>. Dois mundos com trajetórias opostas, <strong>um</strong> emebulição, outro frio.Um começo <strong>de</strong> automática hostilida<strong>de</strong> pairava entre <strong>um</strong> e outro. Viesse <strong>um</strong>pequeno impulso, e os dois sistemas talvez se engalfinhassem com cega violência,como dois içás colocados rosto a rosto mecanicamente ass<strong>um</strong>em o papel <strong>de</strong>inimigos <strong>de</strong> morte, e se agarram e se estraçalham com <strong>um</strong> santo e inconscienteheroísmo.Não me esquecerei tão cedo <strong>de</strong> <strong>um</strong> casal <strong>de</strong> namorados que vinha hoje nobon<strong>de</strong>.Gente do povo, gente h<strong>um</strong>il<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ssa que não transpôs ainda o limite emque o indivíduo ignorante e simples começa a ver e a querer copiar atitu<strong>de</strong>s,maneiras e atos <strong>de</strong> <strong>um</strong>a camada superior. Era, portanto, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a espontaneida<strong>de</strong>71

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