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Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

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www.nead.unama.br— "Veja, Trancoso, veja: todo esse pessoal tem, no fundo da alma, <strong>um</strong><strong>de</strong>sprezo absoluto pelo bicho homem, <strong>um</strong>a indisposição latente e injuriosa contra ogênero h<strong>um</strong>ano em massa."— "Herácli<strong>de</strong>s, estas pequenas coisas não têm a importância que você lhesquer dar."— "Não têm importância? Então você acha que nada significa, nada, aquiloque aflora à periferia das personalida<strong>de</strong>s, normalmente, ordinariamente, como oefeito imediato e espontâneo <strong>de</strong> <strong>um</strong>a fermentação? Então, se essa gente que ai vaitivesse outro fundo, esse fundo estaria a borbulhar cá fora <strong>de</strong>ssa maneira? Deitedois <strong>de</strong>dos <strong>de</strong> açúcar puro n<strong>um</strong> copo, encha o copo <strong>de</strong> água; que é que vem àsuperfície? Gases sulfúricos? Fragmentos microscópicos <strong>de</strong> potassa? Traços <strong>de</strong>ácido prússico? Bavas <strong>de</strong> sal <strong>de</strong> azedas?"Curvei a cabeça, como quem cedia por ce<strong>de</strong>r, para não discutir. Mas, nofundo, cedia completamente. Entretanto, não convém encorajar nos outros essasinclinações à clarividência. Nada tão inútil nem tão <strong>de</strong>letério como enxergar <strong>de</strong>mais.Herácli<strong>de</strong>s calou-se, com os olhos perdidos no filme que se <strong>de</strong>senrolava porfora do bon<strong>de</strong>. Depois <strong>de</strong> uns minutos <strong>de</strong> silêncio, disse-me:— " Quero-lhe fazer <strong>um</strong> convite. Você não gostaria <strong>de</strong> entrar para o Clubedos Egoístas?" — E antes que eu pedisse explicação: "O Clube dos Egoístas, <strong>um</strong>grupo que fundamos, eu o Gabriel, o Tomasinho, o Tinoco, ali no fundo do barKauffman. Reunimo-nos todas as noites para conversar, ou para não conversar,apenas para beber o nosso chope. Só se exigem duas condições: cada <strong>um</strong> paga asua <strong>de</strong>spesa, e <strong>de</strong>ve ser <strong>um</strong> indivíduo sem espécie alg<strong>um</strong>a <strong>de</strong> generosida<strong>de</strong>."— "Que extravagância? Então po<strong>de</strong> entrar toda a gente.""Está enganado, redondissimamente enganado. Pois não vê que estemundo anda cheio <strong>de</strong> indivíduos que se sacrificam pelo próximo? Pelo bem daPátria? Prosperida<strong>de</strong> da lavoura? Pela educação nacional? Pelo futuro da indústriapetrolífera? Pela religião? Pela família? Pela h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>? Não vê como pululam,como se embatem, como fervem as manifestações <strong>de</strong> carida<strong>de</strong>, as obras pias, osorganismos <strong>de</strong> previdência e auxílio mútuo, as campanhas contra a doença, aignorância e o vício? Não percebe como há <strong>um</strong>a infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas feramente<strong>de</strong>votadas a todas as nobres causas?Pois, bem. Nós não nos preocupamos com essas causas: só nospreocupamos conosco mesmos. Só. Absolutamente só. Então, suce<strong>de</strong> que a nossaprosa, lá no bar, à noite, é <strong>de</strong>liciosa.Cada <strong>um</strong> <strong>de</strong> nós é <strong>um</strong> poço <strong>de</strong> <strong>de</strong>sencanto. Mas esse <strong>de</strong>sencanto é <strong>um</strong>encanto. Tocamos com o <strong>de</strong>do todas as misérias da hipocrisia e da mistificação.Intensificamos danadamente, com a nossa vida interior, a acuida<strong>de</strong> nevrálgica danossa visão dos homens e dos acontecimentos.Despojamo-nos <strong>de</strong> tudo que é vestimenta <strong>de</strong> idéias feitas, <strong>de</strong> preconceitosrecebidos, <strong>de</strong> concepções correntes, <strong>de</strong> inclinações bem vistas. Somos homensdiante <strong>de</strong> homens; homens, só homens, simplesmente, tristemente, heroicamentehomens.— "Mas que é que tem isso com o caso <strong>de</strong> que vínhamos tratando?"— Tem tudo. Tudo. Essa gente toda que você aí vê é gente que se<strong>de</strong>s<strong>um</strong>aniza. É gente que não sabe ser egoísta. São anjos. Toda ela se move por59

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