www.nead.unama.bremerge da prece<strong>de</strong>nte como n<strong>um</strong>a espiral <strong>de</strong> f<strong>um</strong>o, dissolve-se na seguinte comon<strong>um</strong> caleidoscópio sem recortes e sem chocalho. Tudo facilida<strong>de</strong>, afinação, fusão,correnteza, equilíbrio, tudo aquela suprema simplicida<strong>de</strong> que é o nome familiar dacomplexida<strong>de</strong> infinita na perfeição.Bem, mas porque foi que eu cometi esse erro? Porque estava possesso <strong>de</strong>Rufina. A imagem da moça do bon<strong>de</strong> se interpunha entre mim e os bichos, o som dasua voz golpeava cada momento a membrana fragílima das minhas idéias, os seusgestos rápidos rebentavam a todo instante o meu colar <strong>de</strong> miçangas. Embal<strong>de</strong> euprotestava que ela era mais feia do que o elefante, menos perfeita do que <strong>um</strong>aleitoa. Embal<strong>de</strong> eu procurava esquecer, embrenhar-me no meu produto como aaranha no seu, embriagar-me com esses pensamentos <strong>de</strong> luxo, suspen<strong>de</strong>r-me aessas teias, atar as minhas arrobas ao vôo <strong>de</strong>ssas borboletas extraterrenas. E, naverda<strong>de</strong>, nem agora consigo exconjurar aquele <strong>de</strong>mônio.UM ROMANCEEntre os passageiros com os quais freqüentemente me encontro, pela manhã,há <strong>um</strong>a bonita mulata, não <strong>de</strong> olhar azougado, mas calmo e <strong>um</strong> pouco triste. Ocondutor c<strong>um</strong>primenta-a com respeito, e trocam notícias <strong>de</strong> família. Veste-se com<strong>de</strong>cência e modéstia. Sobe e salta sem ruído, instala-se no seu canto e não se mexe.Tem as mãos lisas e mórbidas, os <strong>de</strong>dos compridos e afusados; as unhas ogivaisparecem recortadas em porcelana. Usa saias pouco acima dos tornozelos. Os pés,pequenos e arqueados, comprimidos em botins <strong>de</strong> couro, sob a massa movediça dassaias, têm <strong>um</strong>a graça hesitante <strong>de</strong> pássaros timoratos. Será o pudor dos botins?Essa criatura acabou por me interessar. A freqüência das suas viagens, aconstância dos seus modos, a sua beleza <strong>um</strong> tanto fanada, o seu donaireinvoluntário <strong>de</strong> juriti meio <strong>de</strong>spl<strong>um</strong>ada e taciturna, a sua familiarida<strong>de</strong> familiar com ocondutor, enfim o contraste entre o abafado concerto da sua pessoa e as mulheresbrancas e chiques <strong>de</strong> braços e pernas ao léu, tudo me intrigava. A custo obtive <strong>um</strong>asinformações vagas. Ontem, finalmente, encontrando-me com o prático <strong>de</strong> farmácia,o homem do Infinito, ouvi <strong>de</strong>le a informação cabal."Pois não a conhece? Não conhece, <strong>de</strong>veras, a Florinda?" — Contou-metoda a história <strong>de</strong> Florinda, a mesma história <strong>de</strong> tantas outras, tantas outrasFlorindas, e finalizou: "Hoje, <strong>um</strong>a senhora. E ainda bonita, não viu? Costura fora <strong>de</strong>casa. É companheira <strong>de</strong> <strong>um</strong> empregado aposentado dos correios, <strong>um</strong> casca, velho,re<strong>um</strong>ático, bravo como <strong>um</strong> gato sarnento. Serve-lhe <strong>de</strong> irmã <strong>de</strong> carida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>cozinheira, <strong>de</strong> mãe e <strong>de</strong> filha. E até <strong>de</strong> armazém <strong>de</strong> pancadas."É aquilo <strong>de</strong> Amiel: Pas <strong>um</strong> brin d'herbe qui n'ait une histoire à raconter, pasun coeur qui n'ait son roman..., que é aquilo mesmo <strong>de</strong> Emerson: "Todo indivíduotem <strong>um</strong>a história que valeria a pena conhecer, se ele pu<strong>de</strong>sse contá-la, ou se nóslha pudéssemos arrancar". — Cada <strong>um</strong> carrega em si <strong>um</strong> epítome do dramah<strong>um</strong>anal, tecido <strong>de</strong> trevas e <strong>de</strong> l<strong>um</strong>es. E cada <strong>um</strong> nos dá <strong>um</strong>a sensação <strong>de</strong>h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong> imensa, como cada onda po<strong>de</strong> dar a vertigem do abismo.LENÇO PERDIDOQuando eu acabava <strong>de</strong> saltar do bon<strong>de</strong>, esta manhã, ouvi atrás <strong>de</strong> mim <strong>um</strong>pchiu! Voltei-me, e <strong>um</strong> passageiro, homem do povo, esticando o braço até no meioda rua, me apresentou <strong>um</strong> lenço que ficara no banco. Apalpei os bolsos, não mefaltava lenço nenh<strong>um</strong>. Tive pena <strong>de</strong> que o objeto não me pertencesse, porque22
www.nead.unama.brpareceu-me que sem isso o meu agra<strong>de</strong>cimento não encaixaria perfeitamente com aamabilida<strong>de</strong> do homem. Por <strong>um</strong> instante, pensei em aceitar o lenço, mas prevaleceuo austero <strong>de</strong>ver, tirei o chapéu, agra<strong>de</strong>ci, e fui-me. O homem ainda me pediu<strong>de</strong>sculpa e ficou a olhar em redor, a ver se aparecia o legítimo dono.Segui o meu caminho a fruir esta agradável impressão — que ainda hámuito sentimento sadio e cordial por este mundo! A honestida<strong>de</strong> do ato, valha averda<strong>de</strong>, não era gran<strong>de</strong>. Os objetos transviados são quase sempre restituídos,quando <strong>de</strong> pouco importância. Mas a galantaria do gesto! Linda coisa, a galantaria.A honestida<strong>de</strong>, afinal, é <strong>um</strong>a obrigação. Tem <strong>um</strong> princípio passivo. É <strong>um</strong>a astúcia doegoísmo socializado, que evolveu para virtu<strong>de</strong>, como o réptil se fez pato. Mas agalantaria é soberana: impulso livre, ação <strong>de</strong> luxo e primor, dom incompulsório,fantasia espontânea do coração, scherzzo garboso e supérfluo da vonta<strong>de</strong> senhora<strong>de</strong> si mesma. — O excesso da medida justa vale a medida inteira.Ia eu a pensar estas coisas aprazíveis, n<strong>um</strong> passo vagaroso <strong>de</strong> quem vê quecarrega borboletas no ombro ou no chapéu e não quer afugentá-las. Ao entrar n<strong>um</strong>café, <strong>de</strong>i com o homem do lenço na minha frente. Notei que tinha o nariz vermelho.Sorriu-se, <strong>de</strong>scobriu-se e, inclinando a cabeça para <strong>um</strong> lado: — "Seu doutor, não temaí uns nicolaus que lhe sobrem, para eu tomar <strong>um</strong> pingado?" Dei-lhe os nicolaus.CANUDO-DE-PITOA manhã, hoje, era <strong>um</strong>a festa, e o meu bairro, todo em manchas aéreas efrescas <strong>de</strong> pare<strong>de</strong>s claras, telhados vermelhos, jardins ver<strong>de</strong>s, morros azulegos evioláceos a <strong>de</strong>rreterem-se na distância como caramelos, me divertia como <strong>um</strong>apaisagem refletida n<strong>um</strong>a bola <strong>de</strong> cristal. Eu não tinha senão olhos, enquanto obon<strong>de</strong> corria. "Corre mais <strong>de</strong>vagar, bon<strong>de</strong> do diabo! Que assim como vais se meatrapalha tudo. — Corre mais <strong>de</strong>pressa, bon<strong>de</strong> do inferno! Que assim lentamente a<strong>de</strong>sfilada das coisas mal se liberta da rigi<strong>de</strong>z e do peso."De repente, do meio da gran<strong>de</strong> nuvem escura <strong>de</strong> <strong>um</strong> velho bosque, saltoucomo <strong>de</strong> <strong>um</strong> capulho, <strong>um</strong>a nuvem amarela, a fron<strong>de</strong> arredondada <strong>de</strong> <strong>um</strong>a árvore <strong>de</strong>ouro. "Olhe, que lindo! "(disse eu ao meu vizinho mais chegado, o Sr. João Cesárioda Costa, capitalista, quarenta e oito anos). "Veja aquele ipê!" O meu vizinho <strong>de</strong>u<strong>um</strong>a olha<strong>de</strong>la e informou friamente: "Canudo-<strong>de</strong>-pito".O fato <strong>de</strong> se tratar <strong>de</strong> <strong>um</strong> canudo-<strong>de</strong>-pito, e não <strong>de</strong> ipê, ma<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> lei, influía<strong>de</strong>cisivamente na reação da sua sensibilida<strong>de</strong> ante aquele quadro fugente ealucinatório. O mundo, para ele, reduziu-se a <strong>um</strong>a coleção <strong>de</strong> conceitos, ou a <strong>um</strong>dicionário ilustrado. Costa não foi composto para comunicar diretamente com ascoisas, no absoluto momentâneo e original da sensação, nesse largo esurpreen<strong>de</strong>nte aquém da idéia e do pensamento, mais maravilhoso e menos tristedo que o Além por on<strong>de</strong> vagam os Fabianos.A civilização cada vez mais afasta os homens do contato imediato eregenerativo das coisas sensíveis. Só as enxergam <strong>de</strong> longe e <strong>de</strong> viés, através dostipos, mo<strong>de</strong>los, noções, <strong>de</strong>finições, poeira br<strong>um</strong>osa <strong>de</strong> abstração, sob a qual aintimida<strong>de</strong> fluente e jovial do mundo se <strong>de</strong>svanece, e a alma encantada da criaçãofoge como <strong>um</strong> Ariel zombeteiro. Diante <strong>de</strong> <strong>um</strong>a paisagem, não vêem a paisagem, mas<strong>um</strong>a coleção <strong>de</strong> objetos e <strong>de</strong> efeitos conhecidos e explicados, formando <strong>um</strong> conjuntovisual <strong>de</strong> acordo com meia dúzia <strong>de</strong> normas laboriosas. Diante <strong>de</strong> <strong>um</strong> ser vivo,<strong>de</strong>sarticulam as partes, (como se <strong>um</strong> ser vivo, como se as coisas tivessem narealida<strong>de</strong> partes) examinam, me<strong>de</strong>m, subdivi<strong>de</strong>m, espedaçam, e cada ato <strong>de</strong>sses<strong>de</strong>corre <strong>de</strong> <strong>um</strong>a idéia feita, <strong>de</strong> <strong>um</strong> critério preconcebido, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a prefiguração23