12.07.2015 Views

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

www.nead.unama.brh<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>. Todos temos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós <strong>um</strong> bicho indiscreto e malévolo, emsimbiose com o nosso Eu distinto e consciente, que às vezes o ignora ou faz porignorá-lo, ou mesmo lhe dá largas.Arrastado pela curiosida<strong>de</strong>, antes que acabasse <strong>de</strong> refletir, não me custouperceber que <strong>de</strong> fato a mulher escondia qualquer coisa, e que essa coisa era <strong>um</strong>gato. Um gato branco, boquinha rósea, olhos muito gran<strong>de</strong>s estriados por <strong>um</strong>chuvisco <strong>de</strong> luz entre vegetações <strong>de</strong> esmeralda e ouro. Tinha <strong>um</strong> ar pouco amigável,meio enfezado, meio suplicante. — Percebi tudo isso n<strong>um</strong> ápice, porque tenho avista habituada a inspecionar gatos. É este o animal da minha predileção, o únicosemovente que me agrada sem reservas.Gostaria também bastante dos cavalos <strong>de</strong> raça <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o possante Brabançonaté o árabe naturalizado e aperfeiçoado nos haras <strong>de</strong> Inglaterra, por seu instinto daatitu<strong>de</strong> pictórica ou escultural, se tais cavalos fossem do tamanho <strong>de</strong> gatos e sepu<strong>de</strong>ssem ter <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> casa, pôr ao colo e <strong>de</strong>ixar correr por cima das mesas. — O<strong>de</strong>feito <strong>de</strong>sse animal é ser excessivamente gran<strong>de</strong>. Isto o reduziu ao papel poucodistinto <strong>de</strong> mero acessório do homem, e tornou-o <strong>um</strong> prosaico objeto <strong>de</strong> utilida<strong>de</strong> ou<strong>de</strong> ostentação.Dentre todos os caprichos da natureza, o mais estranho está nessa fantasiainutilíssima e zombeteira com que ela repartiu a força e a beleza pela escala dasdimensões, no reino animal.Os insetos, em regra, são feíssimos e fortíssimos; ao mesmo tempo,pequeninos e inaproveitáveis. Os cavalos e outros viventes gran<strong>de</strong>s e belos sãorelativamente fracalhões. Tudo se resolveria bem se houvesse gafanhotos dotamanho <strong>de</strong> girafas, besouros do vol<strong>um</strong>e <strong>de</strong> vacas holan<strong>de</strong>sas, pulgas das dimensões<strong>de</strong> bezerros; que motores formidáveis à disposição do homem! Entretanto, escusavaque os animais nobres e formosos ocupassem tanto espaço e, sendo na verda<strong>de</strong> osbibelots da natureza, fossem con<strong>de</strong>nados ao estábulo, à estrebaria, ao amanho daterra, à tração <strong>de</strong> veículos, ao trabalho bruto, à escravidão h<strong>um</strong>ilhante.Essa a justiça da gran<strong>de</strong> Mãe! E ainda se isso passasse exclusivamentecom os bichos! Mas, não. Toda beleza é escrava. Mulher, — é o alvo e a presa damatilha esfaimada dos instintos. Ven<strong>de</strong>-se nos mercados. Aprisiona-se. Con<strong>de</strong>na-sea ser <strong>um</strong>a forma vazia, ornada <strong>de</strong> vermelhão, <strong>de</strong> pó-<strong>de</strong>-arroz e <strong>de</strong> jóias, com a noite<strong>de</strong>ntro, como a cabaça mágica do bugre. Talento, gênio, bonda<strong>de</strong>, amor,— tudocapturado, amarrado, explorado, torturado, agadanhado, sangrado, e finalmentereduzido a cacos, a cisco, a lama, a cinza, a pó, a pó que se espalha ao vento, entreo <strong>de</strong>lírio e a confusão da mac<strong>um</strong>ba ret<strong>um</strong>bante e frenética.Ao cavalo, a certos respeitos, eu preferiria o elefante. Embora convivendo,em <strong>de</strong>terminadas regiões, com a espécie h<strong>um</strong>ana, esse, contudo, guarda adignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> escravo testarudo e resignado — obediente, fiel, mas inamoldável,sempre intransigentemente elefante. Não tem a elegância do nobre equus(elegância, aliás, já <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong>sacreditada, como a do estilo ciceroniano), mas látem a sua, que lhe é própria e, além <strong>de</strong> própria, intransferível, por mais que hajaindivíduos h<strong>um</strong>anos a quererem tomar-lha, na classe que compreen<strong>de</strong> os gran<strong>de</strong>sven<strong>de</strong>iros, os <strong>de</strong>sembargadores e os clérigos.A elegância do elefante, revelam-na bem certos artistas. Há bibelots <strong>de</strong> louça,marfim ou bronze, em que ela se manifesta com a evidência da luz. Hierática, cheia,pesada, a massa liga-se às proporções e aos contornos n<strong>um</strong>a sóbria unida<strong>de</strong> <strong>de</strong>concepção e <strong>de</strong> fantasia, e tudo é <strong>um</strong> só élan <strong>de</strong> inspiração enternecida e brincalhona.A gravida<strong>de</strong> unida ao peso, a paciência ao vol<strong>um</strong>e, a doçura à simplicida<strong>de</strong>, e <strong>um</strong> quê<strong>de</strong> majestoso, e <strong>um</strong> quê <strong>de</strong> ingênuo, e <strong>um</strong> quê <strong>de</strong> gaiato.— Apenas falta a essas18

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!