12.07.2015 Views

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

www.nead.unama.brPor que é que temos tanta paciência para per<strong>de</strong>r duas horas n<strong>um</strong>a panedifícil <strong>de</strong> automóvel, e nenh<strong>um</strong>a para sofrer dois minutos <strong>de</strong> parada do bon<strong>de</strong> n<strong>um</strong><strong>de</strong>svio?Por que é que as senhoras, ao pagar a passagem, custam tanto a encontraro dinheiro na bolsa?Por que é que o bon<strong>de</strong> estimula em certos indivíduos a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> comeramendoim torrado e tremoços?Por que é que as pessoas mais <strong>de</strong>socupadas e mais pachorrentas se tomam<strong>de</strong> pressa e <strong>de</strong> nervos quando o bon<strong>de</strong> vai chegando ao ponto final?Por que é que nos dói mais termos perdido o nosso bon<strong>de</strong> do que o ter <strong>um</strong>amigo perdido o trem — ou mesmo <strong>um</strong>a perna?ESCOTEIROAinda revejo nitidamente aquele escoteirinho que entrou hoje no bon<strong>de</strong> pelamão do venerando papai. Um feixinho <strong>de</strong> ossos, olhos brancos, lábio pen<strong>de</strong>nte,postura curva e bamba <strong>de</strong> aluno <strong>de</strong> catecismo. Retrato i<strong>de</strong>al do menino dócil e bemcomportado.Se o inflexível progenitor lhe falava, respondia com respeitoso sorriso,sorriso frágil e distante, virando para a cara fiscalizadora uns olhos <strong>de</strong> animalzinhoperfeitamente domesticado.O pai, sem dúvida, muito satisfeito com esse rebento esperançoso, tãoautomático na obediência e na penúria <strong>de</strong> vida. O pequeno chamava-lhe papai.Coitadinho! Devia chamar-lhe progenitor.Progenitor é o nome que na verda<strong>de</strong> calha a esta espécie <strong>de</strong> autores <strong>de</strong>vidas alheias. Impiedosamente solícitos, eles parasitam as suas misérrimascriaturas. Polvos agarrantes, colantes e triturantes, abusam do direito <strong>de</strong> sersenhores <strong>de</strong> almas. Estão cheios da crença surda <strong>de</strong> que o melhor que po<strong>de</strong>m fazera seus filhos é formá-los à sua semelhança.Parecem orgulhosos <strong>de</strong> ter mudado o empirismo da paternida<strong>de</strong> n<strong>um</strong>aespecialização técnica. Têm o ar <strong>de</strong> pais <strong>de</strong> família diplomados.Já não lhes bastam as luzes da Pedagogia, da moral, da Religião, daMedicina, da Gramática e do don't. Renovas achegas até na Sociologia. A Psicologiavai-se-lhes impondo como <strong>um</strong> evangelho (tanto mais cômodo quanto se po<strong>de</strong> abrirem qualquer lugar e ler <strong>de</strong> corrida ou salteado). Creio que a heráldica e o cálculointegral também têm que ver com a matéria.Progenitores! Progenitores! Homens respeitáveis, sapientes e pen<strong>de</strong>ntes,sagazes e tenazes. Tenazes sobretudo. Tenazes <strong>de</strong> ferro! Só lhes falta <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong>bom senso e <strong>um</strong> pouco do senso <strong>de</strong> h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>. E apenas per<strong>de</strong>m o direito a essenome simples, vivo, saboroso e místico <strong>de</strong> pai.Pai! Palavra elementar e profunda irmã <strong>de</strong> ar, água, pão, sol, dor, alegria,esperança, coisas fundamentais e essenciais, belas e terríveis como tudo quantonos supera, tudo quanto nos vivifica, nos vê passar, e continua. Palavra <strong>de</strong>ressonâncias externas, com barulhos <strong>de</strong> lágrimas e anseios <strong>de</strong> amor, <strong>de</strong> melancoliae <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong>.Mas também isso ten<strong>de</strong> a <strong>de</strong>saparecer sob a capa <strong>de</strong> ch<strong>um</strong>bo docientificismo, do tecnicismo e do pedantismo esmiuçador e complicador, pragas quevão <strong>de</strong>vorando todas as boas coisas <strong>de</strong>ste mundo triste, como aquelas vacas que<strong>de</strong>voravam vacas, no sonho do faraó.66

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!