www.nead.unama.brpuros i<strong>de</strong>ais, por santas idéias, por altos princípios, por <strong>de</strong>sígnios heróicos: batemse,agitam-se, o<strong>de</strong>iam-se, caluniam-se, esgadanham-se por amor à família, por amorà pátria, por amor à or<strong>de</strong>m, por amor ao direito, por amor à cultura, por amor àsletras, por amor à civilização e por amor ao próximo.Por isso mesmo, nós mesmos os egoístas. Metidos conosco: nemfilantropos, nem patriotas, nem heróis da família, nem paladinos <strong>de</strong> coisa alg<strong>um</strong>a.Homens. Apenas homens. Lucidamente, miseravelmente e <strong>de</strong>liciosamente homenslivrese naturais como os peixes do fundo do mar.Eu creio que a h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>, hoje, não tinha nada melhor para fazer do quepraticar e santificar o egoísmo — Você quer entrar para a tropa?"— "Quem sabe! Depen<strong>de</strong>."Herácli<strong>de</strong>s sorria, como a dizer: "Este ainda não está preparado", e <strong>de</strong> novomergulhou no silêncio, f<strong>um</strong>ando profundamente <strong>um</strong> cigarro <strong>de</strong> palha. E <strong>de</strong>pois, meioassim como se falasse consigo mesmo:— "O curioso é que este nosso egoísmo, pelo que vejo, acaba mal."— "Por que?"— Porque ten<strong>de</strong>, naturalmente, muito naturalmente, a transformar-se nacoisa mais séria neste mundo: em religião.As almas <strong>de</strong>scascadas ficam todas tão semelhantes! À atitu<strong>de</strong> que elasass<strong>um</strong>em diante da infinita miséria da condição h<strong>um</strong>ana é tão inevitavelmente <strong>um</strong>asó, <strong>de</strong> raiz! Uma se<strong>de</strong> única <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> e sincerida<strong>de</strong> se apo<strong>de</strong>ra das gargantas. E<strong>um</strong> sentimento entranhando <strong>de</strong> fraternida<strong>de</strong> acaba brotando por si mesmo, como ogrelo das batatas.Nós, insensivelmente, já nos vamos querendo tanto bem uns aos outros queprecisamos <strong>de</strong> fazer tremendos esforços para não resvalar na sinistra comédiamundana da amiza<strong>de</strong> e <strong>de</strong> galantaria!Porque nós, lá, não preten<strong>de</strong>mos ser senão irmãos.UM HOMEM PERFEITOO Sr. João Cesário da Costa é <strong>um</strong> homem sólido, solidamente refesteladona vida Tem rendas sofríveis, <strong>um</strong>a bela casa, <strong>um</strong>a saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> ferro, <strong>um</strong> genrocolocado na política. Suas ambições nada têm <strong>de</strong> temerárias nem <strong>de</strong> atormentadas:são plácidas; limitam-se, evi<strong>de</strong>ntemente, a poupar trabalhos e amofinações, agarantir e a entreter a áurea mediocritas ou o oti<strong>um</strong> c<strong>um</strong> dignitate em que o Sr.Cesário vive <strong>de</strong>s<strong>de</strong> mocinho.Conversar com o Sr. Cesário é <strong>um</strong> exercício que reconforta e tonifica. A <strong>um</strong>aausência absoluta <strong>de</strong> inquietações pensantes, reúne <strong>um</strong> otimismo tranqüilo. Quandoalg<strong>um</strong>a opinião, alg<strong>um</strong>a frase, alg<strong>um</strong> ato equivoco ou complicado cai no domínio <strong>de</strong>sua percepção, faz <strong>um</strong> gesto <strong>de</strong> quem lhe sentisse o mau cheiro, e afasta-o <strong>de</strong> si,n<strong>um</strong> pudico movimento que não admite réplica.É possível confabular com ele meia hora, <strong>um</strong>a hora, sem lhe ouvir outracousa que consi<strong>de</strong>rações sobre o bom e o mau tempo, sobre a superiorida<strong>de</strong> daroupa preta em relação à <strong>de</strong> cor, sobre a melhor maneira <strong>de</strong> preparar <strong>um</strong> molho <strong>de</strong>tomates, ou sobre as inconveniências <strong>de</strong> se viajar no estribo do bon<strong>de</strong>. Falacorrentemente, com certa graça natural, acentuando, recortando, remexendo,60
www.nead.unama.brsaboreando com volúpia os ínfimos pormenores, como quem chupa os ossinhos <strong>de</strong><strong>um</strong> frango assado.O Sr. João Cesário faz-me, às vezes, o efeito <strong>de</strong> <strong>um</strong>a boa ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>balanço. Quando me sinto fatigado dos meus infindáveis solilóquios, que nadaconcluem, entreter <strong>um</strong> quarto <strong>de</strong> hora <strong>de</strong> conversação com este homem é o mesmoque trocar <strong>um</strong> cavalo aragano por <strong>um</strong>a ca<strong>de</strong>ira fofa e embaladora. Não há senão otrabalho <strong>de</strong> fazer a ca<strong>de</strong>ira balançar.Tive ontem esse prazer. O Sr. João Cesário c<strong>um</strong>primentou-me com a suahabitual bonomia temperada <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>:— "Como vai o bom amigo?"— "Bem, obrigado".— "Bem mesmo?"— "Assim, assim..."— "Por que?"— "Nada. Vou bem."— "E a família?"— "Bem."— "Sua irmã?"— "Agora bem."— "Ah! Esteve doente?"— "Coisa ligeira."— "Constipação, <strong>de</strong> certo."— "Justamente."— "O tempo é disso. Tudo por aí anda cheio <strong>de</strong> gripados. Em casa, todosmais ou menos perrengues."— "Que maçada!"— "Mas não há nenh<strong>um</strong> caso sério. Creio que o mais doente ainda sou eu."— "Não parece."— "As aparências. Tenho <strong>um</strong>a dorzinha <strong>de</strong> cabeça que não para, aqui, entrea fonte e a nunca, passando por cima da orelha, — vê neste ponto. Mas o pior é queo intestino anda funcionando meio à matroca, — <strong>de</strong> tudo, <strong>um</strong>a sensação <strong>de</strong> cansaçopelo corpo todo, essa sensaçãozinha amolante e gostosa <strong>de</strong> <strong>um</strong> corpo que estápedindo cama — ou re<strong>de</strong>, que é melhor... Ah! Ah!"— "E o senhor sai, apesar <strong>de</strong> tudo?"— "Ah! Não posso ficar preso — é inútil! — senão em último extremo.Acredito mesmo que a gripe, conseguindo resistir-se-lhe <strong>de</strong> pé, vai embora maiscedo. 8enti-lhe a visita há três dias, sábado. Sábado à tar<strong>de</strong>. Disse à minha velha:"Por sua culpa, estou gripado." Ela ficou passada. "Por minha culpa, Cesário?" -"Sim, por sua culpa, porque me obrigou, ontem à noite, com aquele frio, a dar <strong>um</strong>agran<strong>de</strong> volta pelo bairro. Coitada, arranjou-me mais que <strong>de</strong>pressa <strong>um</strong> escaldapés,<strong>um</strong>a camisa <strong>de</strong> flanela, <strong>um</strong>as meias <strong>de</strong> lá, <strong>um</strong> chá, e esteve a ponto <strong>de</strong> fazerpromessa a Nossa Senhora da Penha. Mas eu exagerava. Gosto <strong>de</strong> brincar com avelha; nunca vi criatura mais medrosa, quando se trata <strong>de</strong> doenças em casa. Claroque apanhei porque tinha <strong>de</strong> apanhar..."— "Não se sabe como é que ela chega"— "Não, às vezes se sabe. Mas, no meu caso, não foi o tal passeio <strong>de</strong> noite.Digo que não foi porque, já antes <strong>de</strong> mim, o Alfredinho meu filho sentira a primeirabordoada. Só nos contou isso ontem à hora do chá. Demais, estou habituado a fazervoltas a pé, <strong>de</strong> noite, <strong>de</strong>pois do jantar, quando não chove. É verda<strong>de</strong> que aquela61