12.07.2015 Views

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

www.nead.unama.brsaboreando com volúpia os ínfimos pormenores, como quem chupa os ossinhos <strong>de</strong><strong>um</strong> frango assado.O Sr. João Cesário faz-me, às vezes, o efeito <strong>de</strong> <strong>um</strong>a boa ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>balanço. Quando me sinto fatigado dos meus infindáveis solilóquios, que nadaconcluem, entreter <strong>um</strong> quarto <strong>de</strong> hora <strong>de</strong> conversação com este homem é o mesmoque trocar <strong>um</strong> cavalo aragano por <strong>um</strong>a ca<strong>de</strong>ira fofa e embaladora. Não há senão otrabalho <strong>de</strong> fazer a ca<strong>de</strong>ira balançar.Tive ontem esse prazer. O Sr. João Cesário c<strong>um</strong>primentou-me com a suahabitual bonomia temperada <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>:— "Como vai o bom amigo?"— "Bem, obrigado".— "Bem mesmo?"— "Assim, assim..."— "Por que?"— "Nada. Vou bem."— "E a família?"— "Bem."— "Sua irmã?"— "Agora bem."— "Ah! Esteve doente?"— "Coisa ligeira."— "Constipação, <strong>de</strong> certo."— "Justamente."— "O tempo é disso. Tudo por aí anda cheio <strong>de</strong> gripados. Em casa, todosmais ou menos perrengues."— "Que maçada!"— "Mas não há nenh<strong>um</strong> caso sério. Creio que o mais doente ainda sou eu."— "Não parece."— "As aparências. Tenho <strong>um</strong>a dorzinha <strong>de</strong> cabeça que não para, aqui, entrea fonte e a nunca, passando por cima da orelha, — vê neste ponto. Mas o pior é queo intestino anda funcionando meio à matroca, — <strong>de</strong> tudo, <strong>um</strong>a sensação <strong>de</strong> cansaçopelo corpo todo, essa sensaçãozinha amolante e gostosa <strong>de</strong> <strong>um</strong> corpo que estápedindo cama — ou re<strong>de</strong>, que é melhor... Ah! Ah!"— "E o senhor sai, apesar <strong>de</strong> tudo?"— "Ah! Não posso ficar preso — é inútil! — senão em último extremo.Acredito mesmo que a gripe, conseguindo resistir-se-lhe <strong>de</strong> pé, vai embora maiscedo. 8enti-lhe a visita há três dias, sábado. Sábado à tar<strong>de</strong>. Disse à minha velha:"Por sua culpa, estou gripado." Ela ficou passada. "Por minha culpa, Cesário?" -"Sim, por sua culpa, porque me obrigou, ontem à noite, com aquele frio, a dar <strong>um</strong>agran<strong>de</strong> volta pelo bairro. Coitada, arranjou-me mais que <strong>de</strong>pressa <strong>um</strong> escaldapés,<strong>um</strong>a camisa <strong>de</strong> flanela, <strong>um</strong>as meias <strong>de</strong> lá, <strong>um</strong> chá, e esteve a ponto <strong>de</strong> fazerpromessa a Nossa Senhora da Penha. Mas eu exagerava. Gosto <strong>de</strong> brincar com avelha; nunca vi criatura mais medrosa, quando se trata <strong>de</strong> doenças em casa. Claroque apanhei porque tinha <strong>de</strong> apanhar..."— "Não se sabe como é que ela chega"— "Não, às vezes se sabe. Mas, no meu caso, não foi o tal passeio <strong>de</strong> noite.Digo que não foi porque, já antes <strong>de</strong> mim, o Alfredinho meu filho sentira a primeirabordoada. Só nos contou isso ontem à hora do chá. Demais, estou habituado a fazervoltas a pé, <strong>de</strong> noite, <strong>de</strong>pois do jantar, quando não chove. É verda<strong>de</strong> que aquela61

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!