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Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

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www.nead.unama.brE por que vim a conhecer da tua vida, ó coisa graciosa e fugente, apenas oaspecto sombrio e grosseiro? Por que não me reapareces, para me confiar a tuahistória risonha e dolorosa, a celeste e bestial realida<strong>de</strong> do teu <strong>de</strong>stino, a lama e achama da tua alma, ó gentil, ó brilhante, ó miserável borboleta do brejo?Mas a tua vida não me interessa, na verda<strong>de</strong>. Que é que eu tenho contigo,que é que tens tu comigo?Vimo-nos duas vezes. Será <strong>um</strong>a razão para que te <strong>de</strong>va agora ver sempre?Tanta coisa bela e passageira como tu, bela passageira <strong>de</strong> bon<strong>de</strong>, tem encantado osmeus olhos por <strong>um</strong>a vez necessariamente única — <strong>um</strong>a nuvem, <strong>um</strong> pássaro, <strong>um</strong>ahora <strong>de</strong> sol, <strong>um</strong> certo sorriso da felicida<strong>de</strong> que se per<strong>de</strong>u por ser achado!"Tudo isto era dito com os meus botões. Mas, <strong>de</strong> repente, o homem que separecia com o coronel me encarou formalizado:— "O senhor está estranhando alg<strong>um</strong>a coisa na minha pessoa?"Olhei para o homem que se parecia com o coronel e respondi, sem saber aocerto o que dizia:— "Desculpe-me, senhor, tenha a bonda<strong>de</strong> <strong>de</strong> me <strong>de</strong>sculpar. Eu não oconheço, nem conheço ninguém que se lhe assemelhe, mas estava vendo se osenhor não seria <strong>um</strong>a outra pessoa."CAMELÔO homem <strong>de</strong>u-se por satisfeito com a explicação.Viajei ontem ao lado <strong>de</strong> <strong>um</strong> camelô, ou seja aquilo que outrora se chamava<strong>um</strong> bufarinheiro ou charlatão. Hoje, esta última palavra <strong>de</strong>signa categorias maisilustres <strong>de</strong> artistas da patranha; era preciso <strong>um</strong> vocábulo novo, que evitasseconfusões; a lei <strong>de</strong> repartição <strong>de</strong> Bréal.Pus-me a observar os gestos e as expressões do meu companheiro <strong>de</strong>viagem, como outros examinam, fascinados, os homens eminentes em certos ramosclássicos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> ou <strong>de</strong> inativida<strong>de</strong> superior.Mo<strong>de</strong>sto e simples não parecia sequer sonhar que pu<strong>de</strong>sse merecer acuriosida<strong>de</strong> e admiração <strong>de</strong> <strong>um</strong> seu semelhante (aliás muito diverso, no meu caso).Por vezes, até se esquecia <strong>de</strong> si, e ficava para ali murcho, com esse ar aparvalhadoe <strong>de</strong>sarmado que só cost<strong>um</strong>am ter, em público, bem familiarizadas com a idéia dasua nenh<strong>um</strong>a importância.Ia muito s<strong>um</strong>ido no seu canto, f<strong>um</strong>ando maquinalmente <strong>um</strong> cigarro meioapagado. Talvez premido por <strong>de</strong>ntro, como por <strong>um</strong> parafuso, por alg<strong>um</strong>apreocupação <strong>de</strong> família, ou <strong>de</strong> dinheiro, ou <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.A certo momento, saltou, enfiou as mãos nos bolsos das calças — <strong>um</strong>aaragem áspera começara a dar tremuras <strong>de</strong> sezões às árvores da rua — baixou acabeça e entrou apressadamente por <strong>um</strong>a viela, <strong>de</strong>serta e feia como <strong>um</strong> pátio <strong>de</strong>cortiço em dia <strong>de</strong> chuva.O camelô, misto <strong>de</strong> artista, <strong>de</strong> orador, <strong>de</strong> pelotiqueiro e <strong>de</strong> meneur. Amultidão, sempre bestial, <strong>de</strong>spreza-o. E ele é que realmente sabe <strong>de</strong>sprezar amultidão, porque a domina, a maneja, a <strong>de</strong>sfruta, e para tanto tem <strong>de</strong> a enfrentar,cada dia, como <strong>um</strong> domador <strong>de</strong> olho vivo e <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões fulmíneas.57

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