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Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

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www.nead.unama.bratravancadas <strong>de</strong> carruagem e caminhões, riscadas <strong>de</strong> fios <strong>de</strong> metal e pontas <strong>de</strong>cimento, — e <strong>de</strong> que os passageiros sentiam, ou melhor, não sentiam, mas tinhamnecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar ver uns aos outros a impressão <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconcerto ou<strong>de</strong>sconveniência que o transviado lhes produzia.De fato, a mecânica do riso assenta no irreprimível instinto <strong>de</strong> comunicaçãopróprio do homem. Como o pranto, o riso é <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> linguagem, em gran<strong>de</strong>parte inconsciente, <strong>de</strong>stinada a comunicar o incomunicável, a exprimir oinexprimível, o que não se po<strong>de</strong>, não se sabe, não se quer ou não se pensa exprimirpor palavras ou por gestos que lhes eqüivalham. (Se é certo que rimos e choramos asós, também é certo que falamos conosco mesmos — e todo pensamento é diálogointerior — sem que por isso possa negar-se o caráter eminentemente, social dalinguagem articulada, cujas origens supõem fatalmente troca, relação entreindivíduos, fixação coletiva <strong>de</strong> sinais sonoros). A mímica do pranto e do riso nasceuprovavelmente da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se solidarizarem e coligarem os ânimos, na hordaprimeva diante do perigo, da contrarieda<strong>de</strong> ou do benefício com<strong>um</strong> que iamencontrando pela frente. Seria <strong>um</strong> elemento <strong>de</strong> coesão sublimável. Uma circulaçãorápida <strong>de</strong> psiquismo coletivo. Com o tempo, isso se teria refletido e entranhado noindivíduo, até ass<strong>um</strong>ir <strong>um</strong>a sorte <strong>de</strong> vida inferior, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Mas a inconsciênciado seu mecanismo interindividual aí está para lhe atestar as origens gregárias.—Somos ovelhas que se vão apenas <strong>de</strong>stacando do rebanho por ligeiras diferenças<strong>de</strong> pêlo, <strong>de</strong> dimensões ou <strong>de</strong> andadura; mas a alma da ovelha pertence mais aorebanho do que a ela própria.E se tudo isto estiver errado? Não importa. Para <strong>um</strong> simples passageiro <strong>de</strong>bon<strong>de</strong>, as idéias são como os bilhetes <strong>de</strong> loterias: é preciso jogar em muitas, parater probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acertar em alg<strong>um</strong>a. E ainda o melhor é não acertar. Criar fama<strong>de</strong> rico é <strong>um</strong>a das mais graves maçadas que possam cair sobre quem não necessite<strong>de</strong> tanto n<strong>um</strong>erário. Responsabilida<strong>de</strong> social muito pesada. Admiradores.Compromissos. Facadas, amabilida<strong>de</strong>s, invejas, intrigas, amofinações... Que bomtravesseiro, a pobreza!A mim, o que me fez sorrir diante do louva-a-<strong>de</strong>us foi o riso dos outros, tãosaudavelmente natural e estúpido. E foi também o próprio louva-a-<strong>de</strong>us, natural ebobo como esse riso.O louva-a-<strong>de</strong>us é talvez <strong>um</strong> simples broto que <strong>de</strong> repente se animou, mexeuas suas folhazinhas tenras mal transformadas em asas, saltou, olhou o mundo emtorno com os dois olhitos esbugalhados que se lhe acabavam <strong>de</strong> pôr — e esqueceusedo papel que vinha representar. Todo trangalhadanças e todo in<strong>de</strong>ciso, na suairrepreensível casaquinha ver<strong>de</strong>, é como <strong>um</strong> mascarado tanto que não tem coragem<strong>de</strong> ir ao baile nem sabe se há <strong>de</strong> voltar para casa, e fica a estatelar-se macambúziopelas esquinas.Desconfio agora que o louva-a-<strong>de</strong>us talvez fosse <strong>um</strong> broche que <strong>um</strong> artistaprimitivo, das cavernas ou das palafitas, mo<strong>de</strong>lasse, — no barro ver<strong>de</strong>ngo <strong>de</strong> alg<strong>um</strong>açu<strong>de</strong>, dando-lhe, por inabilida<strong>de</strong> e por fantasia, <strong>um</strong>a feição <strong>de</strong> monstro quimérico egrotesco. Um dia, a senhora Natureza, n<strong>um</strong> momento <strong>de</strong> nervos, confundindo-o comos seus mo<strong>de</strong>los infelizes e inacabáveis ter-lhe-ia comunicado o sopro da vida,lançando-o fora; "Enfim! S<strong>um</strong>e-te, diabo!"Outra hipótese. Esse e, com esse, muitos bicharocos parecem ter sidoproduzidos pela artífice quando ela ainda não podia <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r a imaginação dosliames do concreto. A minhoca teria sido tirada <strong>de</strong> <strong>um</strong>a raiz <strong>de</strong> tubérculo. A serpente,<strong>de</strong> <strong>um</strong>a haste <strong>de</strong> foraminífera. O besouro foi talvez copiado <strong>de</strong> <strong>um</strong> caroço <strong>de</strong>mamona. O elefante originar-se-ia <strong>de</strong> <strong>um</strong>a pedra viajada, do período glaciário, quer26

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