12.07.2015 Views

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

www.nead.unama.brBelo e medonho, o amor <strong>de</strong> mãe. Suavíssimo e terrível. A sombra dos seusgestos, branda como a dos ramos, prolonga-se até o horizonte da vida, on<strong>de</strong> asombra enorme da Fatalida<strong>de</strong> passa arrastando pelos cabelos a sombra da Ilusão.RUFINA E O SONETOPobre Rufina! Tão juvenilmente graciosa e linda ainda há dois meses...Parecia ar<strong>de</strong>r em mocida<strong>de</strong> e beleza como <strong>um</strong>a pedra preciosa. Agora, dá-me aidéia <strong>de</strong> <strong>um</strong>a pérola moribunda.É assim este mundo; <strong>um</strong> resfriado, <strong>um</strong>a pleurisia, três semanas <strong>de</strong> cama —e eis <strong>um</strong> corpo e <strong>um</strong>a alma completamente modificados, e <strong>um</strong>a vida clara e levecomo <strong>um</strong> regato da montanha mudada n<strong>um</strong> ribeirão turvo do vale triste!Viajei hoje com ela. Descorada e <strong>de</strong>scarnada, metida n<strong>um</strong> vestido escuro epobre, era apenas <strong>um</strong>a sombra da outra Rufína. Disse-me coisas graves sobre avida. Queixou-se das suas ilusões malucas, que a conduziram até há pouco atravésdas almas e das coisas como através <strong>de</strong> <strong>um</strong>a festa, para, <strong>de</strong> repente, aabandonarem entre essas duas megeras — a Solidão e a Necessida<strong>de</strong>.Chegou a falar-me <strong>de</strong> Deus, e, entre dois acessos <strong>de</strong> tosse, perguntou-me,com a simplicida<strong>de</strong> suprema <strong>de</strong> quem pedia <strong>um</strong>a informação:— "Será que ele me aceita?"Em que embaraço me pôs: Pedir a mim, pecador encoscorado, <strong>um</strong> raio <strong>de</strong>esperança e consolação — porque era evi<strong>de</strong>ntemente o que pedia, na simplicida<strong>de</strong>triste daquela pergunta! Valeria o mesmo querer refrescar os lábios em febre com osuco <strong>de</strong> <strong>um</strong>a pêra <strong>de</strong> campainha elétrica.Tive ímpetos <strong>de</strong> en<strong>de</strong>reçar ao vigário da nossa paróquia. Mas o santohomem estava já tão acost<strong>um</strong>ado a lidar com almas em pena! Era possível que nãolhe <strong>de</strong>sse maior atenção, que a tratasse com <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhosa bonomia, como fazemcertos médicos, excepcionalmente, com os clientes pobres: "Isso não é nada. Estánervoso. — Dor no cogote, Há <strong>de</strong> ser mau jeito. — Febre, é? Uhn... — Qual! Nãotem importância. Apareça <strong>um</strong> dia lá no consultório".Não, não a mandaria ao vigário, po<strong>de</strong>ria vir <strong>de</strong> lá com as feridas banhadasem bálsamo suavíssimo, e po<strong>de</strong>ria vir com elas envenenadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>speito e <strong>de</strong>revolta.Eu estava para lhe dizer que sim, que Deus a receberia nos seus braçoscom paterno carinho, porque nada po<strong>de</strong> ser mais agradável ao Senhor <strong>de</strong> toda asabedoria e <strong>de</strong> toda a misericórdia do que <strong>um</strong>a alma <strong>de</strong>spojada <strong>de</strong> mundanida<strong>de</strong>s,nua, na plena e corajosa nu<strong>de</strong>z da h<strong>um</strong>ilda<strong>de</strong>, do <strong>de</strong>sengano e do arrependimento.Quando, porém, <strong>de</strong>cidia estas dúvidas <strong>de</strong> consciência e preparava estaresposta, Rufina ergueu-se, fez soar a campainha, <strong>de</strong>spediu-se e esgueirou-se.Fiquei a vê-la do bon<strong>de</strong>, que estacionara por <strong>um</strong> momento. Reprochava-me comraiva as minhas eternas in<strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> animal imprestável.Ela foi para a calçada, e pôs-se a caminhar <strong>de</strong> <strong>um</strong> jeito meio automático,direita, impassível, n<strong>um</strong> passo miúdo e rígido <strong>de</strong> boneca mecânica, a cabeça pensapara <strong>um</strong> lado — como quem caminha com indiferença, <strong>de</strong> alma vazia, para a últimarenúncia ou para a morte...Pu<strong>de</strong> saber <strong>de</strong>pois que ia à costureira.78

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!