www.nead.unama.brMas não é isso, oh poeta, não é isso o pior. O horrendo é esta indiferença,esta sorri<strong>de</strong>nte indiferença, esta familiar e brincalhona ferocida<strong>de</strong>, aérea, difusa,impalpável, com que se consi<strong>de</strong>ra <strong>um</strong> ser h<strong>um</strong>ano, com que se fala <strong>de</strong> <strong>um</strong>a pobremulher — logo <strong>de</strong> <strong>um</strong>a mulher! De <strong>um</strong>a triste mulher e do seu <strong>de</strong>stino, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a mulherbela, graciosa e miseranda; <strong>de</strong> <strong>um</strong>a mulher que tem toda a massa <strong>de</strong> que se fazem asmães e os anjos da terra, — e com uns olhos tão gran<strong>de</strong>s, tão úmidos, tão l<strong>um</strong>inosos!— "Mas porque é que queria saber" indagou o boticário, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>um</strong>a pausa.— "À-toa, Fabiano."— "Pois olhe, é fácil."Encarei-o <strong>de</strong> <strong>um</strong> modo que <strong>de</strong>via ter-lhe parecido esquisito, pois calou-se eficou sério. E não se falou mais nisto.JUSTIÇAÍamos hoje para a cida<strong>de</strong> na marcha habitual, nem muito rápida, nempropriamente vagarosa. Circunstância notável, se bem que ordinária— o bon<strong>de</strong> nãocorreu nem por <strong>um</strong> instante fora dos trilhos. Entretanto, chocou <strong>de</strong> repente com <strong>um</strong>automóvel, e surgiu <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> discussão a respeito <strong>de</strong> se saber a quem tocava aculpa, se ao motorista, se ao chauffeur.Entrou em função o juiz que há <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> cada indivíduo, e as sentençasdivergiam.— "Foi esse negrinho estúpido," dizia <strong>um</strong>, indigitando o chauffeur.— "O culpado é esse louco <strong>de</strong>sse portuga," asseverava outro, referindo-seao motorista.— "Ca<strong>de</strong>ia com eles, é o que eu vivo a dizer."— "Qual! Só a pau."— "Por milagre não houve coisa muito pior: olhe como ficou a máquina."— "Foi pena que não ficasse ainda mais escangalhada, era menos <strong>um</strong>a."— "Mas o bon<strong>de</strong> podia bem ter parado a tempo."— "Não podia, aqui é <strong>um</strong> <strong>de</strong>clive."— "Seu guarda, o culpado é o chauffeur."— "Não, seu guarda, o culpado é o motorneiro."E cada juiz era também <strong>um</strong> partidário, ou do lado do homem do bon<strong>de</strong>, oudo lado do homem do automóvel. Por simpatia física, por espírito <strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong>ou <strong>de</strong> raça, por disposição mais favorável a <strong>um</strong>a das classes <strong>de</strong> automedontes, porter ou não automóvel, por ter ou não ter <strong>um</strong> parente chauffeur ou automobilista, pormero palpite, cada <strong>um</strong> propen<strong>de</strong>u imediatamente para <strong>um</strong>a das bandas.Mas, valha a verda<strong>de</strong>, havia também homens imparciais, por exceção. Um<strong>de</strong>stes, abanando a cabeça, e afastando-se do burburinho, me pon<strong>de</strong>rou tranqüilamente:— "Ora, ora! Quem foi, quem não foi... Eu o que fazia era pegar nos dois esocá-los no xilindró: é aí, seus danados! Esta corja..."MODÉSTIA40
www.nead.unama.brFranklin Penha <strong>de</strong>ra-me hoje a impressão <strong>de</strong> <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> fátuo. Viu-me nobon<strong>de</strong> e c<strong>um</strong>primentou-me com excessiva amabilida<strong>de</strong>, com regozijada surpresa,como se tivesse <strong>de</strong>scoberto em mim, <strong>de</strong> repente, alg<strong>um</strong> encanto inédito. E eu nemsequer tinha a barba feita. O motivo não tardou a aparecer. O que Franklin pretendiaera capturar a minha atenção e boa vonta<strong>de</strong> para <strong>um</strong>a notícia <strong>de</strong> jornal que traziarecortada, no bolso, e lhe pesava como <strong>um</strong>a barra <strong>de</strong> ouro. A notícia era mais o<strong>um</strong>enos a seguinte:"O Senhor Doutor Franklin da Costa Penha, conceituado advogado do nossoforo e futuroso cultor do nosso passado, acaba <strong>de</strong> ser nomeado sóciocorrespon<strong>de</strong>nte do Instituto Histórico e Geográfico do Estado <strong>de</strong>..., por indicação,unanimemente aprovada, do eminente historiógrafo brasileiro Sr...."— "Parabéns, bichão."— "Oh!"Apesar <strong>de</strong>sse oh! Franklin estava realmente satisfeito, mais talvez do que oseu venerando xará <strong>de</strong>pois que eripuit fulminen, etc. Guardou o retalho na carteira,quase a afagá-lo com as pontas dos <strong>de</strong>dos, como se fosse <strong>um</strong> aéreo tecido <strong>de</strong> seda;arr<strong>um</strong>ou a carteira no bolso e, confi<strong>de</strong>ncial e grave:— "Não; eu, <strong>de</strong> fato, para ser franco, fiquei muito contente. Eu sou assim.Tenho ainda alg<strong>um</strong>a coisa do menino <strong>de</strong> colégio, que se ufana dos prêmiosrecebidos. Puerilida<strong>de</strong>. Pura, insofismável puerilida<strong>de</strong>. Eu podia contar-lhe esta novaassim com <strong>um</strong> arzinho <strong>de</strong> quem não ligava, negligentemente, como por <strong>um</strong>alembrança <strong>de</strong> acaso. Podia ter-lhe dito que o fato me agradava por este ou poraquele motivo nobre; pelo prazer que teriam lá em casa, pela recomendação queestas distinções representam no seio <strong>de</strong> <strong>um</strong>a burguesia bobalhona... Enfim qualquercoisa por esse gosto. Mas tudo isso não seria senão hipocrisia. A verda<strong>de</strong> pura éque fiquei contente por mim mesmo, pela própria distinção em si; contente <strong>de</strong>veras,cheio <strong>de</strong> contentamento como <strong>um</strong> balãozinho <strong>de</strong> goma elástica cheio <strong>de</strong> ar. Eu souassim. "Mas também, amanhã ou <strong>de</strong>pois, já estarei resfriado; nem me lembrareimais <strong>de</strong> que fui eleito sócio correspon<strong>de</strong>nte. Depen<strong>de</strong> <strong>de</strong> eu querer alcançar <strong>um</strong>aoutra tetéia que no momento me seduza."Franklin dizia-me estas coisas com tanta simplicida<strong>de</strong> e com <strong>um</strong> l<strong>um</strong>e tãosincero nos olhos, que tudo lhe aceitei como vera confissão. E absolvi-o. Não, elenão é fátuo. É talvez mesmo o oposto do fátuo, <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>sto.Modéstia, afinal, não é isso? A verda<strong>de</strong>ira não é aquela que se proíbe amínima expansão <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>. Os indivíduos que se proíbem a menor <strong>de</strong>monstração<strong>de</strong> vaida<strong>de</strong> são quase sempre os mais vaidosos dos vaidosos. Preten<strong>de</strong>m, sonham,invejam, sofrem e gozam tanto quanto os outros, com a única diferença <strong>de</strong> quepõem abafos a isso tudo e, além <strong>de</strong> tudo, ainda querem fruir a reputação <strong>de</strong> serextraordinariamente mo<strong>de</strong>stos. Há mesmo cidadãos que <strong>de</strong>vem a maior parte doseu renome à sua modéstia ou à sua preguiça. O pouco que dão <strong>de</strong> si, dão comopassatempo, como capricho ou brinco <strong>de</strong> <strong>um</strong> momento, como efeito <strong>de</strong> imposiçõesalheias, como necessida<strong>de</strong> ocasional. Por si mesmos, não, não querem nada,querem sossego! Mas o seu maior gozo é quando os admiradores exclamam: "Ah!Se este safado se resolvesse a trabalhar!" Vaidosos dobrados, têm várias vaida<strong>de</strong>slá <strong>de</strong>ntro, presas e gordas como perus <strong>de</strong> galinheiro, e ainda por cima se <strong>de</strong>liciam,epicuristicamente, com a vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong> não ter nenh<strong>um</strong>a vaida<strong>de</strong>, que é a mais vá, amais falsa, a mais loucamente ambiciosa <strong>de</strong> todas.41