www.nead.unama.brO homem canta — Home, sweet home! E vai para a pân<strong>de</strong>ga, a dissipação, otráfico, as feiras dos negócios, dos vícios e das vaida<strong>de</strong>s: o gato fica, adorando comrecolhida finura o melhor produto do homem, o melhor retrato do homem melhor, aCasa, a Casa on<strong>de</strong> o fogo prisioneiro canta a ária encantatória das coisas perpétuas,verazes e substanciais, a mesa em torno da qual a família reparte o pão cotidiano empaz no meio da tormenta, as pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> on<strong>de</strong> pen<strong>de</strong>m alfaias e recordações, asportas em cuja tela <strong>de</strong> pen<strong>um</strong>bra se enquadraram vultos amigos que nunca maisvieram empurrá-las, mas parece às vezes que vão chegar a todo momento, queandam ali perto, ali. — A Casa! A Casa do Homem, em tudo superior ao habitante quepassa, ao hóspe<strong>de</strong> mofino <strong>de</strong> uns dias fugazes; ilha <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> composição,<strong>de</strong> recolhimento, <strong>de</strong> segurança e <strong>de</strong> amor, no meio da instabilida<strong>de</strong>, da precarieda<strong>de</strong>,da confusão, do <strong>de</strong>sperdício, da angústia e da loucura universal.O homem faz a sua casa e foge <strong>de</strong>la; ainda lá <strong>de</strong>ntro, foge em espírito; nãochega a compreen<strong>de</strong>r nem a sentir que fez <strong>um</strong> mundo, <strong>um</strong> mundo maravilhoso, parao qual todo o mundo gran<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> tempos imemoriais, vem ac<strong>um</strong>ulando infinitoselementos; <strong>um</strong> pequeno mundo sensível e supra-sensível on<strong>de</strong> a soma doselementos imateriais é incomparavelmente maior do que a dos outros, on<strong>de</strong> cadapedra ou tijolo, cada móvel, cada quadro, cada retrato, cada canto encerra <strong>um</strong>asaturação imensa <strong>de</strong> h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> vida vivida e vem a ser mais rica em po<strong>de</strong>rirradiante do que a mais carregada petchblenda...Mas eu estava em que os gatos não têm aversão aos ratos. E não têm. Oque há é que são antípodas uns dos outros. O bichano vê no rato <strong>um</strong> simplesmecanismo, bom para esporte e brinquedo.É verda<strong>de</strong> que das brinca<strong>de</strong>iras resulta muitas vezes o óbito da presa. Mas énatural que <strong>um</strong> gato não tenha idéias claras acerca dos sofrimentos e da morte.Nós, que somos gente, ou ten<strong>de</strong>mos a isso, apenas sentimos que há dor nomundo por experiência própria e individual, e nada nos custa como acreditar que aexperiência dos outros possa coincidir com a nossa.Por isso o rancor é <strong>de</strong>z mil vezes mais com<strong>um</strong> do que a pieda<strong>de</strong>; além <strong>de</strong>que a pieda<strong>de</strong> é freqüentemente <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> rancor fatigado.Quanto à morte, po<strong>de</strong>-se muita vez duvidar que seja motivo <strong>de</strong> mágoa paraalg<strong>um</strong> dos que ficam; ao passo que se tem a certeza <strong>de</strong> que é festa para osher<strong>de</strong>iros, pão para os gato-pingados, rócio para várias indústrias, e espetáculo paraos vizinhos do falecido.Tive ganas <strong>de</strong> ver se a dona quereria ven<strong>de</strong>r-me o gatinho, mas <strong>de</strong>teve-mea dificulda<strong>de</strong> do transporte. Se eu o levasse na mão até à secretaria, rir-se-iam <strong>de</strong>mim pelo caminho e na repartição. Carregá-lo no bolso, impossível. Mandá-lo levar acasa, <strong>de</strong>spesa. Eu neste ponto me pareço muito com toda a gente: sou comodista eeconômico em matéria <strong>de</strong> prazeres do coração.Desisti da compra e consolei-me com os poetas que amam damasimaginárias, sob o pretexto <strong>de</strong> que as <strong>de</strong> osso e carne são imperfeitas, mas narealida<strong>de</strong> por <strong>um</strong>a questão <strong>de</strong> economia: pus-me a pensar amorosamente n<strong>um</strong> gatoi<strong>de</strong>al. E <strong>de</strong>sfiei <strong>de</strong> memória aquilo <strong>de</strong> Beau<strong>de</strong>laire:Viens, mon bon chat, sur mon coeur amoureux,Retiens les griffes <strong>de</strong> ta patte.Logo o enxerguei junto <strong>de</strong> mim, gran<strong>de</strong>, perfeito, maravilhosamente gato,lambendo a mão com a língua rósea, o olhar tranqüilamente perdido no borborinhodas ruas, e como que a repetir aquela sentença grave <strong>de</strong> Eurípe<strong>de</strong>s: "Zeus aborreceos homens atarefados e os que se agitam <strong>de</strong>mais".20
www.nead.unama.brO gato é <strong>um</strong>a das mais completas expressões <strong>de</strong> beleza dadas ao mundo.Completas? Digo mal. Nem nós esgotamos todo o seu potencial, nem o próprioacabou <strong>de</strong> se realizar. Como os colibris, as rosas e os periquitos, é <strong>um</strong>a obra-prima,feita pela Natureza no caprichoso intento <strong>de</strong> mostrar como aquela que fazmontanhas e mares é também capaz <strong>de</strong> compor coisas <strong>de</strong> paciência, <strong>de</strong> fantasiagraciosa e <strong>de</strong> gosto quintessencial.Desconfio, porém, às vezes, que não foi a Natureza, mas o próprio Deus quemmo<strong>de</strong>lou esses objetos com os próprios <strong>de</strong>dos, para h<strong>um</strong>ilhar o homem e divertir osanjos. E que os anjos os <strong>de</strong>ixaram cair à terra por <strong>de</strong>scuido, ou para os <strong>de</strong>struir. — Étalvez por isso que os periquitos têm a cabeça achatada, e aquele arzinho <strong>de</strong> <strong>de</strong>votosirônicos, e aquele ânimo <strong>de</strong>sconfiado e áspero que faz com que se irritem eescancarem o bico recurvo quando os queremos acariciar. De certo, é pela mesmarazão que os gatos conservam essa aura <strong>de</strong> h<strong>um</strong>ana nostalgia que os distingue, essasatitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> insatisfação gemente e errabunda, esses enrodilhamentos imóveis esolitários, com os olhos estanhados, esfomeadamente arregalados para o ar, como na<strong>de</strong>sesperada esperança <strong>de</strong> ver cair alg<strong>um</strong>a traga migalha do paraíso perdido!APÊNDICE DO GATOMeu Deus, como a arte <strong>de</strong> escrever é difícil e como eu faço bem <strong>de</strong> nãoescrever senão para mim mesmo! À medida que vou enchendo estas minhascostaneiras <strong>de</strong> almaço, trezentas coisas que eu dantes não suspeitava, se meapresentam, — pequenos e gran<strong>de</strong>s problemas <strong>de</strong> composição e <strong>de</strong> expressão, <strong>de</strong>lógica e <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> método e <strong>de</strong> maneira. Enxergando-os, palpando-os, sentindoosbulir sobre a lauda como insetos <strong>de</strong>scobertos e espicaçados pelo bico da pena,surpreendo-me <strong>de</strong> os ver tão n<strong>um</strong>erosos e tão estranhos; e gozo <strong>um</strong> in<strong>de</strong>finívelprazer: o prazer <strong>de</strong> não ser obrigado por coisa nenh<strong>um</strong>a, a atormentar-me com eles.Um exemplo <strong>de</strong> inadvertência galucha: falando <strong>de</strong> animais bonitos e nobres,<strong>de</strong>i a minha preferência, precipitadamente, <strong>de</strong>pois do gato, ao cavalo e ao elefante.Entretanto, seria tão natural que tivesse refletido em que os vertebrados,geralmente, são belos e que os há tão encantadores como aqueles! Tanto maisquanto Remy <strong>de</strong> Gourmont, nas suas Dissociações, já o fizera notar.Na verda<strong>de</strong>, só há <strong>um</strong> animal feio, é o homem. O Esporte, que se aplica emfomentar a beleza física da espécie, tem nesse ponto fracassado, uniformemente,em toda a parte do mundo. Só apresenta indivíduos bonitos quando os colheu danatureza. Belos, sempre muito raros, ele não os revela em maior número do que osimples Acaso. O aspecto ordinário das suas legiões é <strong>de</strong>sencorajante. — Osesportes particulares <strong>de</strong>formam, dando excessivo <strong>de</strong>senvolvimento a certasaglomerações musculares. Pensou-se em remediar, doutrinando o atletismocompleto: vão-se com isso criando <strong>de</strong>formações generalizadas.Veja-se entretanto <strong>um</strong> coelho, <strong>um</strong> veado, <strong>um</strong>a onça, <strong>um</strong> porco-do-mato emcondições normais <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e saú<strong>de</strong>: cada qual, <strong>de</strong>ntro dos princípios dasua construção respectiva, é <strong>um</strong>a obra <strong>de</strong>liciosa <strong>de</strong> acerto, <strong>de</strong> rêussite, <strong>de</strong> precisãosem sobras e sem falhas. Surge-nos sem traços <strong>de</strong> esforço nem <strong>de</strong> intenção, com acorrente naturalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> <strong>de</strong>scuido! — Conformação e movimento permanecem<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> <strong>um</strong>a lógica infrangível, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a unida<strong>de</strong> perfeita, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a economianecessária, on<strong>de</strong> cada coisa tem <strong>um</strong> valor e entretanto, se engolfa e se dissimula natotalida<strong>de</strong>. Nada que estale, bambeie, <strong>de</strong>scaia, <strong>de</strong>scole, <strong>de</strong>scontinue; <strong>um</strong> admirávelconcerto <strong>de</strong> transições e transformações simultâneas e sucessivas. O jogo dasmassas e dos contornos per<strong>de</strong>-se fluidicamente em si mesmo. Cada imagem21