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Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

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www.nead.unama.brmulheres não <strong>de</strong>vem mais apren<strong>de</strong>r a ler nem escrever? Continua, Aurélio; tensrazão, porque me divertes e porque confias na minha tolerância. Continua sempre.Pensas que a música é a mais insignificante das artes e que a poesia <strong>de</strong>verá serproibida por <strong>de</strong>creto? Fala, fala....A mim tu tens a coragem <strong>de</strong> dizer tudo, e isto significa que tu avaliasafetuosamente a minha capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouvir todos os <strong>de</strong>stampatórios honestos e <strong>de</strong>levar a sério todas as tolices sinceras. Com efeito, nada mais interessante do que<strong>um</strong>a opinião, essa coisa rara, essa coisa inútil e preciosa.Mas, na verda<strong>de</strong>, o que ora mais me interessa não são as tuas opiniões, é ofato <strong>de</strong>, mas expores nessa confiança tranqüila e ri<strong>de</strong>nte, sem reservas e semreceios, à sombra da frondosa Amiza<strong>de</strong>, — a bela, a santa, a benéfica Amiza<strong>de</strong>, oúnico dom dos <strong>de</strong>uses <strong>de</strong>smemoriados, que nunca mais se lembrariam <strong>de</strong> nós, ospobres h<strong>um</strong>anos, ou que, tendo-no-la dado, enten<strong>de</strong>ram ter-nos feito a maior ofertacompatível com o nosso egoísmo e a nossa ruinda<strong>de</strong>".Entrementes, Aurélio discorria. Asseverava, por último, que higiene pública éapenas o negócio dos médicos higienistas e dos fabricantes <strong>de</strong> aparelhos higiênicos.— "Sim, talvez tenhas razão".— "Bem, eu salto aqui, seu Felício. Mais <strong>um</strong>a vez, obrigado pela passagem".Eu tinha-lhe pago a passagem."Ora, ora!"— "Não você nem sabe que favor me fez. Saí <strong>de</strong> casa sem <strong>um</strong> níquel. Mas,quando vi você neste bon<strong>de</strong>, lá da esquina da alameda, disse cá comigo, estougarantido. E eis aí por que você teve <strong>de</strong> me aturar todo esse tempo! Como sabe,esta linha não é a que mais me convém. Mas quem não tem cão... Obrigadinho.Ciao!".— "Té logo, Aurélio..."PROBLEMASHoje, o bon<strong>de</strong> vinha cheio, e tive <strong>de</strong> ce<strong>de</strong>r o meu lugar a <strong>um</strong>a senhora. Esta,ao invés <strong>de</strong> me agra<strong>de</strong>cer, parece que ficou ligeiramente arrufada com a minhagentileza.Creio que a ética do bon<strong>de</strong> manda que, ao ce<strong>de</strong>r o lugar, o passageiro nãodê a isso a mais ligeira aparência <strong>de</strong> <strong>um</strong> ato <strong>de</strong> cortesia faça-o friamente, como por<strong>um</strong>a obrigação regulamentar. Deve ser isso.Mas será? Eis aí <strong>um</strong> dos in<strong>um</strong>eráveis problemas psicológicos que o bon<strong>de</strong><strong>de</strong>para. O bon<strong>de</strong> é <strong>um</strong> saco <strong>de</strong> víspora: é só meter a mão, remexer, pegar, lá vem oproblema psicológico.Infelizmente, esses problemas vão ficando cada vez mais obscuros, àmedida que cresce o número dos psicologistas, número infinito, hoje em dia, sócomparável ao dos sociólogos. Se o futuro do Brasil <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>sse da psicologia dasociologia, estava garantido; e só nos restava lamentar que não pudéssemos vivermais uns cinqüenta ou cem anos, para assistir ao gran<strong>de</strong> fogo <strong>de</strong> vistas dosresultados. Estupenda coisa a ciência!Há dias, vi o Sr. João Cesário a conversar atentamente com <strong>um</strong> mocinhosisudo e altivo. Este falava em coisas difíceis: mentalida<strong>de</strong> primitiva — formaçãoalógena — metabolismo racial — camadas <strong>de</strong> aluvião — i<strong>de</strong>alismo hipocondríaco —64

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