12.07.2015 Views

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

www.nead.unama.br<strong>de</strong>i com eles n<strong>um</strong> banco todo ocupado por mulheres idosas e feias, não sei se maisidosas do que feias, e tinham os cabelos entre o grisalho e o branco amarelado. Masa velhice é <strong>um</strong>a coisa venerável. Contemplei aquelas caras a ver se conseguiaextrair <strong>de</strong> alg<strong>um</strong>a <strong>de</strong>las a imagem reconstituída <strong>de</strong> <strong>um</strong>a beleza <strong>de</strong>composta. Não oconsegui. Teriam talvez <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> beleza interior. Mas por que então não serevelava cá fora ao menos como o l<strong>um</strong>e vermelho e mortiço <strong>de</strong> <strong>um</strong> forno velho?Pus-me a passear os olhos pelo tejadilho, pela rua, pelas pontas <strong>de</strong> meus<strong>de</strong>dos. De repente, quem havia <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir! Lá no fundo, sentadinha entre <strong>um</strong>apreta gorda e <strong>um</strong> bigodudo ven<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> loterias, Rufina! A própria, a autêntica, aúnica, a olhar para mim, sorrindo como antiga conhecida — a boa criatura! Toda elaera <strong>um</strong>a só imagem <strong>de</strong> lin<strong>de</strong>za una e vibrante como <strong>um</strong>a interjeição.Trajava <strong>de</strong> branco e tinha <strong>um</strong>a gola alta que lhe dava ao pescoço, ao ombroe à cabecinha redonda <strong>um</strong> quê <strong>de</strong>ssa graça aconchegada e sólida, que se encontranas frutas perfeitas e nos leg<strong>um</strong>es viçosos. Mergulhei-me na figura <strong>de</strong> Rufina.Nisto, veio <strong>de</strong> lá o prático <strong>de</strong> farmácia, marinhando pelo estribo. Alegou queme queria c<strong>um</strong>primentar, e <strong>de</strong> fato realizou esse rito com a mais intempestivalentidão. Relanceava os olhos para Rufina, uns olhos <strong>de</strong> emplastro, sob cujasapalpa<strong>de</strong>las a moça baixava os seus. Depois, saltou. — Lamentei sinceramente quenão tivesse caído. Senti ganas <strong>de</strong> lhe saltar no rasto como <strong>um</strong>a onça atrás <strong>de</strong> <strong>um</strong>quati, e meter-lhe a garra pelo gasnete, e batê-lo pelo chão e pelas pare<strong>de</strong>s.Quando o bon<strong>de</strong> chegava à primeira esquina, o condutor subiu ao meubanco, que era o da frente, para repor em zero o relógio <strong>de</strong> marcação daspassagens. Incomodado pelo intruso, passei provisoriamente para o banco imediato,dando costas à linda criatura. Tão <strong>de</strong>pressa o condutor se retirou, voltei para o meuprimitivo posto. Mas a moça tinha <strong>de</strong>saparecido. Saltara na esquina, que já ia longe.Precipitei-me para a rua, corri para trás, inspecionei tudo, barafustei; nada.Sacudiu-me então <strong>um</strong>a tal intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero e <strong>de</strong> cólera, que me pus a rir ea rilhar os <strong>de</strong>ntes.Foi este o dia mais negro dos meus últimos <strong>de</strong>z anos. Dei ponto narepartição, e fui fazer <strong>um</strong> passeio <strong>de</strong> bêbedo por bairros distantes e ignorados.DELICADEZATestemunhei <strong>um</strong>a cena <strong>de</strong>sagradável, que infelizmente não teve pioresconseqüências.Ia perto <strong>de</strong> mim <strong>um</strong> cidadão muito gordo. Luxuosamente gordo. Pareciacarregar as banhas com a recolhida empáfia <strong>de</strong> <strong>um</strong> grão-sacerdote afogado em<strong>de</strong>sl<strong>um</strong>brantes vestes talares. Refestelava-se no banco, firmado nas enxúndias dasná<strong>de</strong>gas, como <strong>um</strong>a pesada bóia flutuante indiferente ao balanço das ondas. Exibiao ventre, que lembrava o hemisfério <strong>de</strong> <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> globo, como se <strong>de</strong> propósito<strong>de</strong>sejasse que toda a gente lhe pu<strong>de</strong>sse admirar aquela prenda. Aquilo era o seuprecioso berloque <strong>de</strong> novo rico.A certo ponto da viagem, surgiu do outro lado do hemisfério <strong>um</strong> moço magroe sutil, que procurava passar pela frente do obeso, mas hesitava ante aimpassibilida<strong>de</strong> ou distração <strong>de</strong>ste. Afinal, tocando no chapéu, perguntou-lhe, alto,com verr<strong>um</strong>ante <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za: — "Cavalheiro, não lhe seria muito incômodo ce<strong>de</strong>r-me<strong>um</strong> corredorzinho para eu passar?" O gordo zangou-se. Encolheu como pô<strong>de</strong> ofardo abdominal e, sacudindo a papada, os olhos arregalados: "Passe!"O moço magro, atônito por <strong>um</strong> momento, <strong>de</strong>pois inclinado a reagir, sorriu-seafinal, e disse entre <strong>de</strong>ntes, relanceando <strong>um</strong> olho escarninho pela venerável barriga:32

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!