12.07.2015 Views

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

www.nead.unama.brrapariga que, não sei por que motivo, parecia hesitar sobre o estribo, como <strong>um</strong>abaratinha machucada.O bon<strong>de</strong> estava parado. Quando o homem acabava <strong>de</strong> falar, o carrosubitamente arrancou, e a moça ia per<strong>de</strong>ndo o equilíbrio, soltando <strong>um</strong> <strong>de</strong>ssesguinchos <strong>de</strong> boneca rapidamente apertada na barriguinha. Dei <strong>um</strong> salto, voei, equando caí em mim estava agarrando a jovem por <strong>um</strong> dos braços com a energia <strong>de</strong><strong>um</strong> guindaste, enquanto os passageiros se levantavam à <strong>um</strong>a, como se o bon<strong>de</strong>fosse peneira <strong>de</strong> sururucar em movimento, e eles quisera.Larguei logo a presa, que, cabisbaixa e ruborizada, foi para perto do senhoridoso. Como este me fizera <strong>um</strong>a cortesia, agra<strong>de</strong>cendo a intervenção, aproveitei-meda oportunida<strong>de</strong> para pedir <strong>de</strong>sculpas à menina, ainda arrufada do inci<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong> ater agarrado <strong>um</strong> pouco à bruta, no receio <strong>de</strong> a ver sofrer <strong>um</strong>a queda. Ela riu-se, com<strong>um</strong>a pontinha <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdém.— "Queda? Ah! Disso não havia perigo. Tomo o bon<strong>de</strong> em movimento acada passinho!"Curvei a cabeça com dignida<strong>de</strong>, como quem <strong>de</strong>liberadamente interrompe<strong>um</strong>a situação <strong>de</strong>licada; recostei-me, e recomecei a leitura da minha gazeta. Tenteirecomeçar. Mas não podia dar com o seguimento do artigo em que vieramergulhado. As seções tinham feito <strong>um</strong> chassê-croasê completo. Trechos vistosos,que antes me saltavam aos olhos, agora andavam brincando <strong>de</strong> Maria-condê pelasoito páginas do diário. Cheguei a <strong>de</strong>sconfiar que alg<strong>um</strong>a página se houvesseevaporado. E, na correnteza das minhas emoções embrulhadas, a consciênciaapenas tinha força para me sussurrar:"Toma, burro! Bem feito. Por que é que te meteste? Por que é que não a<strong>de</strong>ixaste periclitar à vonta<strong>de</strong>?"Já então, o gesto da moça, que fora quase imperceptivelmente abespinhado— também, com aquele susto — me reaparecia, em imagem, todo a ar<strong>de</strong>r em puramá criação. Cheguei a sentir por ela <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> ódio. (Digo espécie <strong>de</strong> ódio,porque teria remorso, caso julgasse o meu coração à ligeira, capaz <strong>de</strong> tão grosseirosentimento. O amor da justiça é inato nas almas; todos temos infinitos escrúpulosem sentenciar contra nós mesmos.)Como quer que seja, no aceso da raiva, afastei <strong>um</strong> pouco o meu paravento,isto é, o meu jornal, e dar<strong>de</strong>jei contra a rapariga <strong>um</strong>a torva olha<strong>de</strong>la <strong>de</strong> esguelha. Elaestava agora voltada para mim, <strong>de</strong> <strong>um</strong> modo repassado e calmante, olhando-mecom esse ar <strong>de</strong> complacência <strong>de</strong>sinteressada com que se contempla <strong>um</strong> animal <strong>de</strong>jardim zoológico. Dei imediatamente à minha olhadura envenenada o ar mais neutroe casual que foi possível. Sorri. Ela sorriu. Aquilo foi como se <strong>um</strong> céu borrascoso <strong>de</strong>repente clareasse, todo florido <strong>de</strong> nuvenzinhas recém-nascidas, castas como roupalavada ao sol. Sorri, mais docemente. Ela baixou as pálpebras pestanudas e <strong>de</strong><strong>um</strong>eia volta ao rosto moreno e rosado sobre cuja superfície; dura e lisa como a <strong>de</strong><strong>um</strong>a figura <strong>de</strong> biscuít, o f<strong>um</strong>o <strong>de</strong> <strong>um</strong> cigarro vizinho punha a in<strong>de</strong>cisão aérea <strong>de</strong> <strong>um</strong>tenuíssimo nevoeiro. E ainda sorria; e pu<strong>de</strong> perceber que por entre a franja dos cíliosa sua íris <strong>um</strong>idamente faiscava, enviesada para o meu lado, embutida n<strong>um</strong>a sedosapen<strong>um</strong>bra. E os cílios palpitavam..........................................................................ainsiqu'un noir feuillage où filtre un long rayon d'étoile.8

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!