12.07.2015 Views

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

www.nead.unama.brSomos todos horrendamente egoístas. Nunca tive como hoje a sensação doque valem todas essas florescências admiráveis da vida nobre, as belas idéias, osi<strong>de</strong>ais formosos, os sentimentos altos e <strong>de</strong>licados.Nem bem Rufina <strong>de</strong>saparecera <strong>de</strong> minhas vistas, aquilo <strong>de</strong> eu a tercomparado mentalmente a <strong>um</strong>a alma <strong>de</strong>spojada <strong>de</strong> mundanida<strong>de</strong>s, nua,inteiramente nua, voltou a borboletear-me no espírito como <strong>um</strong> remorso gostoso. Elembrei-me logo daquele meu soneto parado entre os andaimes; como <strong>um</strong>a <strong>de</strong>ssasigrejas que levam anos a construir e ficam anos à espera <strong>de</strong> recursos.Agora, concluiria a obra. Aferrei-me a ela pelo resto da viagem.Rufina, <strong>de</strong> passagem por mim tocando-me <strong>de</strong> leve, pusera-me emmovimento a engenhoca da poesia, como quem toca inadvertidamente n<strong>um</strong> pé <strong>de</strong>"mimosa pudica", ou como quem saco<strong>de</strong> sem o querer <strong>um</strong> relógio engasgado,fazendo-o trabalhar.É essa a finalida<strong>de</strong> dos outros, no sistema especial da nossa vida <strong>de</strong> cada<strong>um</strong>: pôr em movimento alg<strong>um</strong> dos relógios engasgados que temos conosco.O caso é que concluí o soneto. A bem dizer não o concluí no bon<strong>de</strong>: acabei<strong>de</strong> concluir na repartição, apesar <strong>de</strong> <strong>um</strong> parecer urgente que me atenazou o dia.Mas a inspiração é assim: quando vem, vem <strong>de</strong> fato, e não há urgências que se lheoponham.Agra<strong>de</strong>ci ao <strong>de</strong>stino o ter-me <strong>de</strong>parado Rufina, não só porque daí proveio aconclusão do soneto, como porque me permitiu banir <strong>de</strong>le a tal Gabriela. Eu jáandava seriamente implicado com essa negrinha vagabunda, caçada na sarjeta donoticiário. Decididamente, não dava nada. Logo o primeiro verso:Já não tens ilusão, oh Gabriela! Era <strong>de</strong> <strong>um</strong>a inépcia absoluta. Que é quetinha o público que ver com esse nome próprio. E, além do mais, <strong>um</strong> <strong>de</strong>cassílabofrouxo, — que é ainda pior do que <strong>um</strong>a frouxidão <strong>de</strong> bom senso. Pu<strong>de</strong> substituí-locom vantagem. E o resto — foi <strong>um</strong>a sopa:A UMA TUBERCULOSAJá nenh<strong>um</strong>a ilusão tua alma estrela;Nenh<strong>um</strong>a abrolha em teu caminho triste.Tudo te é negro: e em tudo quanto existe,só o que existe <strong>de</strong> mau se te revela.Um dia a Vida apareceu-te à ourelada estrada, e te sorriu. Tu lhe sorriste,E a seus braços voaste. E assim te visteentre as garras da bruxa horrenda e bela.Hoje... Ah! Hoje, aí vais por tua estradacomo <strong>um</strong>a doida que vagasse nua...Não és mais do que <strong>um</strong>a alma — alma <strong>de</strong>spida;E tão indiferente, tão gelada,tão tristonha e remota como a lua,refletindo <strong>de</strong> longe o sol da Vida.Finis truncat opusFIM79

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!