www.nead.unama.brnoite tinha caído <strong>um</strong>a garoinha, coisinha <strong>de</strong> nada, ali pelas sete horas. Quandosaímos às nove, o céu estava limpo como <strong>um</strong> prato. E que luar! Fomos até lá ao altodo morro, <strong>de</strong>scemos pela avenida, passamos pela igreja..."— "Sr. Cesário, leu a notícia daquele crime?"— "Nem fale! Que coisa estúpida! Como se mata <strong>um</strong> homem pacato,trabalhador, boa pessoa! Aqui está <strong>um</strong> caso em que eu, jurado, não tinhacontemplações. Então é assim? Destrói-se <strong>um</strong> pai <strong>de</strong> família como quem acaba com<strong>um</strong>a cobra à-toa, por <strong>um</strong>as questõezinhas <strong>de</strong> nonada?"— "Havia <strong>um</strong>a questão <strong>de</strong> honra, alega o assassino."— "Honra, honra! Pusesse a mulher para fora <strong>de</strong> casa."— "Mas, ele amava a mulher."— "Qual, nada. O seu <strong>de</strong>ver era esse, e nunca matar. Ninguém po<strong>de</strong> matar.A vida, quem a dá é Deus, e quem a po<strong>de</strong> tirar é só Deus".— "Mas o senhor garantirá que não foi Deus quem a tirou à vítima porintermédio do assassino, como a podia tirar por meio do tifo ou do automóvel?"O Sr. João Cesário não respon<strong>de</strong>u; nem pestanejou sequer. Puxou do lenço<strong>de</strong> linho, que trazia dobrado no bolso da direita, escarafunchou as ventas, tornou aassoar-se, dobrou e guardou o lenço. Em seguida tirou <strong>um</strong> outro <strong>de</strong> fina cambraia,que trazia alequeado no bolsinho <strong>de</strong> cima, e passou-o pelos lábios e pelas fossas.Por fim, arr<strong>um</strong>ou-o <strong>de</strong> novo, calcou-o, e, n<strong>um</strong>a <strong>de</strong>spreocupação satisfeita:— "Pois é isso".Pouco adiante, disse-me a<strong>de</strong>us, esperou o carro parar bem parado, <strong>de</strong>sceu,voltou-se para mim a fazer <strong>um</strong>a última cortesia, e partiu, muito apertado no seu ternoazul <strong>de</strong> risquinhas brancas, sopesando com graça a bengala <strong>de</strong> castão <strong>de</strong> ouro.E havia em redor <strong>de</strong>le <strong>um</strong> halo <strong>de</strong> perfeição.Eis aí <strong>um</strong> homem feliz. Acompanhei-o com <strong>um</strong> olhar <strong>de</strong> inveja, enquantopu<strong>de</strong>; mas acabei por me resignar. Coisas que não se apren<strong>de</strong>m, não se adquirem.Que fazer? Limitarmo-nos a admirar.Este indivíduo, como tantos outros aparentemente insignificantes, é <strong>um</strong>averda<strong>de</strong>ira maravilha da h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>. Que assombrosa obra <strong>de</strong> inteligência e <strong>de</strong>técnica magistral, a composição <strong>de</strong>ste mecanismo físico-psíquico, tão perfeitamenteadaptado a todas as condições médias <strong>de</strong> <strong>um</strong>a navegabilida<strong>de</strong> tranqüila!Foi, sem dúvida, fabricado após <strong>um</strong>a série imensa <strong>de</strong> provas e após <strong>um</strong>acolheita e apreciação rigorosa <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> dados experimentais. Diga quem oquiser que é mero produto das forças inconscientes da natureza".DE AMICITIAIa eu muito macambúzio, no meu banco <strong>de</strong> trás, e nem sabia porque.Lembro-me <strong>de</strong> que, em casa, quando me aprontava para sair me haviairritado por causa <strong>de</strong> uns inci<strong>de</strong>ntes minúsculos. Ao vestir o colete, o relógio caíramedo bolso, e ficara suspenso pela ca<strong>de</strong>ia; e alg<strong>um</strong>as moedas que estavam nooutro bolsinho <strong>de</strong>spencaram para o soalho, rolando em todas as direções, comoexpressamente para me fugir. Quando eu passava a escova pelo chapéu, ela<strong>de</strong>ixara pegada à copa <strong>um</strong>a lanugem <strong>de</strong> felpas impalpáveis, <strong>de</strong> seda ou <strong>de</strong> algodão,que tive <strong>de</strong> extrair à unha, <strong>um</strong>a por <strong>um</strong>a.62
www.nead.unama.brSaí quase a correr, e o casaco se me enganchou pelo bolso à maçaneta daporta. Libertei-me, empurrei a porta com <strong>um</strong> safanão, e ela, voltando, soltou <strong>um</strong>relincho tão triste, que me senti subitamente envergonhado da minha estúpidaimpaciência.Que covardia e que ingratidão ser bruto com as coisas! É preciso, aocontrário, amá-las, no recanto em que vivemos, como as boas protetoras einalteráveis amigas. O aspecto or<strong>de</strong>nado, limpo, benévolo e tácito dos objetos queme ro<strong>de</strong>iam, no meu quarto, parece refletir às vezes algo que não é bem <strong>de</strong>stemundo: <strong>um</strong> ambiente <strong>de</strong> estampa, <strong>um</strong>a atmosfera <strong>de</strong> história, <strong>um</strong> casulo <strong>de</strong>intimida<strong>de</strong>s intangíveis, <strong>um</strong>a ilusão <strong>de</strong> permanência e <strong>de</strong> espiritualida<strong>de</strong> — enfim,<strong>um</strong> sonho, <strong>um</strong>a doçura, <strong>um</strong> perf<strong>um</strong>e.Ao tomar o bon<strong>de</strong>, porém, já eu pensava em coisas muito diversas daquelesinci<strong>de</strong>ntes. De modo que não sei porque fiz meta<strong>de</strong> da viagem tão sombrio, a olharpara o mundo com <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> terror inerte. A estupi<strong>de</strong>z e o mal da vida se merevelavam com a evidência <strong>de</strong> <strong>um</strong> aci<strong>de</strong>nte brutal, como <strong>um</strong> sinistro imenso que seacabasse <strong>de</strong> produzir, ali, <strong>de</strong> repente, sob meus olhos.Hei <strong>de</strong> cons<strong>um</strong>ir os anos que me restam, como tantos que já passaram, afazer duas e quatro vezes por dia este mesmo trajeto, a percorrer estas mesmasruas, estas mesmas esquinas, estes mesmos postes, entre as mesmas caras, aseternas caras indiferentes insidiosas, malignas, sornas, fátuas, soberbas, hostis.Hei <strong>de</strong> ir todos os dias à repartição, ver a cara regulamentar do chefe, ver ascaras dos meus cinco ou seis auxiliares, <strong>um</strong>a tola outra escarninha, outra fútil efinória, outra bovinamente resignada e mortiça. E não hei <strong>de</strong> topar muitas vezes naminha frente com alg<strong>um</strong>a cara aberta e sincera, alg<strong>um</strong>a cara il<strong>um</strong>inada e boa,<strong>de</strong>sfranzida e cordial, que me olhe firme e <strong>de</strong> chapa com uns olhos direitos e claroscomo duas espadas, límpidos e quentes como duas chamas.Meu Deus, como pu<strong>de</strong> viver até hoje <strong>de</strong>ste jeito! Meu Deus como é que hei<strong>de</strong> viver ainda, sabei-me lá até quando, nesta triturante estupi<strong>de</strong>z e nesta abjeçãoignominiosa! Matai-me, senhor, matai-me logo. Ou então, dai-me <strong>um</strong>a sorte naloteria, que me permita sair por esse mundo, sem cuidados, livre, errante, como ohomem que per<strong>de</strong>u a sombra, durante os primeiros momentos <strong>de</strong> sua peregrinação."Ia engolfado nestes pensamentos amarelos, quando subiu e veio sentar-se ameu lado o Aurélio <strong>de</strong> Moura. C<strong>um</strong>primentou-me com afabilida<strong>de</strong> mais larga do quea habitual. Acolhi-o com prônubos alvoroços.Auré1io perguntou-me solícito pelas minhas coisas, passando-me o braçopelo ombro, com <strong>um</strong> sorriso <strong>de</strong> páscoa. Deixei-me abraçar, comovidamente, econversamos.Este rapaz é dos que parecem apostados a pensar, no miúdo e no grosso,<strong>de</strong> modo radicalmente diverso do meu; mas esta circunstância, que em outrasocasiões me quizilava, então se me tornou mais <strong>um</strong> motivo <strong>de</strong> satisfação, como <strong>um</strong>bom molho ajuntado a <strong>um</strong> prato já <strong>de</strong> si excelente. Concedi tudo a Aurélio, peloprazer <strong>de</strong> o ver trabalhar em liberda<strong>de</strong>. As coisas vulgares e as coisas estrambóticasque ele dizia, tudo me soava <strong>um</strong>a doce música."Fala, Aurélio! Fala, fala tudo quanto quiseres. Agrada-me pensar que é paramim só que tu falas, que o teu espírito veio verter no meu a esp<strong>um</strong>a generosa doseu mosto vivo — <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> confidência sem gravida<strong>de</strong> e sem segredo, masindiretamente complexa e escancarada.Fala Aurélio! Achas que os postes <strong>de</strong> fios elétricos <strong>de</strong>viam ser pintados <strong>de</strong>escarlate? Muito bem. Achas que o Brasil precisa urgentemente ser invadido peloargentarismo estrangeiro, que é necessário matar todos os leprosos e que as63