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Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

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www.nead.unama.brNo soneto, como os fizeram Petrarca ou Santa Teresa, Du Bellay ouShakespeare, a liga em que se aprisiona a essência <strong>de</strong> poesia é sutil eengenhosamente intelectual. Todos os bons sonetos são obras-primas <strong>de</strong> engenhodiscursivo, tocadas <strong>de</strong> <strong>um</strong> raio <strong>de</strong> poesia. Puzzle, envernizado <strong>de</strong> sonho. Gaiolasdialéticas nas quais, pelo menos, parecem revolutear penugens do pássaro quefugiu, — o tal pássaro fantástico da poesia verda<strong>de</strong>ira.Engenho, eis o que me tem faltado para levar a cabo a minha obra-prima.Também tem faltado oportunida<strong>de</strong>. Feitas as quadras no bon<strong>de</strong>, enten<strong>de</strong>u o meusubconsciente que no bon<strong>de</strong> eu havia <strong>de</strong> fabricar os tercetos.Fora daí, no meu gabinete, na repartição, no teatro, não me aco<strong>de</strong> nem fiapo<strong>de</strong> idéia; mas no bon<strong>de</strong> nem sempre consigo a calma nem os vagaresindispensáveis a esta classe <strong>de</strong> serviço.Como este mundo anda <strong>de</strong>sconsertado!Mas ainda bem. Se os homens tivessem tempo para meditar, <strong>de</strong>certo<strong>de</strong>ixariam <strong>de</strong> fazer muitas asneiras — das pequenas; mas como as premeditariamgran<strong>de</strong>s e terríveis!Hoje, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> várias tentativas, entrei no bon<strong>de</strong> <strong>de</strong>cidido a conquistar omeu sossego.Dei logo <strong>de</strong> cara com o Sr. João Cesário, esse risonho pirata que infesta anossa linha e assalta pobres passageiros para lhes arrancar o único money que elestêm, o tempo. Mas o Sr. Cesário não me viu, porque estava <strong>de</strong>spojando a <strong>um</strong> outro.Fui para o banco mais plebeiamente preenchido, entre <strong>um</strong>a preta <strong>de</strong> xale e <strong>um</strong> cabo<strong>de</strong> polícia.Cerrei os olhos, evoquei a imagem flutuante e <strong>de</strong>lgada <strong>de</strong> Gabriela, recor<strong>de</strong>ias quadras, fui avançando o pé pelo escuro da inspiração informe.Gabriela, como ficou assentado, era <strong>um</strong>a jovem que tinha perdido todas asilusões, coitada! Por necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> rima e falta <strong>de</strong> espaço, não foi possível precisar<strong>de</strong> que ilusões se tratava, sendo certo que em tudo, na vida, a ilusão <strong>de</strong>sempenha<strong>um</strong> papel muito sério e ninguém po<strong>de</strong> jamais gabar-se <strong>de</strong> as haver perdido porcompleto. Já se disse mesmo que o homem vive <strong>de</strong> ilusões. Mas essa imprecisão <strong>de</strong>idéias é muito própria da poesia; e tem a vantagem <strong>de</strong> dar largueza bastante para asimaginações se moverem ao sabor <strong>de</strong> cada temperamento.Gabriela per<strong>de</strong>ra as suas ilusões <strong>de</strong> moça ar<strong>de</strong>nte e sequiosa, porque seatirara aos chamarizes e às insídias do mundo com excessiva sofreguidão enenh<strong>um</strong>a cautela. Isto ficou registado na segunda quadra.Agora, os tercetos é que eram elas!Conviria acentuar que, tendo perdido as suas ilusões, a menina estava comoquem tivesse perdido a túnica através <strong>de</strong> matos e pe<strong>de</strong>rnais, ou em luta com bichosassanhados. Esta idéia é velha, mas pondo-se-lhe <strong>um</strong> revestimento novo, aindaserve. As comparações poéticas essenciais, referentes às verda<strong>de</strong>iras situações emque se po<strong>de</strong> encontrar <strong>um</strong>a alma nesta vida, são bem pouco n<strong>um</strong>erosas, no fundo; eos poetas, por mais que façam, hão <strong>de</strong> sempre voltear-lhes em redor.Hoje, aí vais............................... inteiramente nua........................................Repeti essas palavras vinte vezes, preenchendo os espaços vagos da pautacom sílabas soltas sem significação nem consistência, só para acentuar o ritmo eprovocar a idéia. Uma espécie <strong>de</strong> massagem sobre <strong>um</strong> t<strong>um</strong>or maduro.74

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